1. CONCEITO DE PESSOA, PERSONALIDADE E NATUREZA HUMANA
1.3. Natureza humana
A fim de fixar parâmetros para o trabalho que aqui desenvolvemos, importa conhecer e identificar a natureza humana, pois reconhecer que o homem (ser humano) é pessoa não explica, todavia, o que significa ser homem, ou, de outro modo, o que significa o ente com a natureza humana. A compreensão do significado do que seja ser homem não se encontra no sentido de pessoa, mas no de natureza humana.
Saber em que consiste a natureza humana é mais uma das contribuições tomistas à história do pensamento filosófico. Tomás de AQUINO ensina que a natureza é a diferença específica que informa cada coisa. Conhecer essa diferença é conhecer a natureza do objeto, e a função da
natureza é a de completar a definição da coisa66.
Desse modo, compreender a natureza humana importa para determinar o que faz o homem ser homem (ou ser humano, se assim se preferir), ou, em outras palavras, o que no homem o diferencia de Deus e dos demais seres vivos, “o que” o caracteriza.
Na concepção aristotélica, Natureza é o movimento que todas as
coisas existentes possuem67, sendo “ao mesmo tempo, término e princípio do
movimento que resulta naquilo ‘que nasce’, ‘que é gerado’”68. Tomás de Aquino recupera esse sentido de movimento, de agir para um fim, para explicar que
65 Rosa Maria de Andrade NERY, Noções preliminares de direito civil, p. 160.
66 Tomás de AQUINO, Suma teológica: Parte I – Questões 1 a 43, q. 29, a. 1, r. 4, p. 524. 67
As expressões “Permitir a ação da natureza”, “Entregar-se à natureza” ou “Seguir a natureza” decorrem desse conceito, conforme o verbete “Natureza” do Dicionário de Filosofia, de Nicola ABBAGNANO, p. 814.
68 Marie-Joseph NICOLAS, Verbete: Natureza, Vocabulário da Suma teológica, in: Suma
natureza é o que age para que o ser realize seu fim69. Para que seja o que se é, causa e fim.
Assim, dizer “natureza” é revelar o que é, ou qual é a essência do ser.
Para Tomás de Aquino, ser significa existir70. Existir em uma forma,
para que se situe esse ser em uma espécie determinada, e existir no ato que lhe dá origem, na sua essência. O que significa que cada ente tem sua própria essência e que deve existir conforme essa essência.
Mas natureza e essência são conceitos distintos. A essência que existe do ser é estática, enquanto a natureza como “aquilo que age” é dinâmica. Daí que os conceitos se complementam para significar que cada ente deve agir de acordo com a sua natureza, com seus limites, suas
particularidades, suas possíveis deficiências71.
A natureza humana é um composto de matéria e forma. Matéria significa, no sentido aristotélico, “puro princípio de indeterminação, de
pluralidade e de dispersão72”, matéria pode ser assim qualquer coisa. Já forma
significa “princípio de determinação, de atualização e de especificação”73. A
forma é no ser vivo o princípio vital que dá à matéria específica unidade, autonomia e espontaneidade, que faz com que deixe de ser indeterminada.
A concepção tomista de que o homem é um composto de matéria e forma é a aplicação ao ser humano do hilomorfismo grego, que afirma que tudo
que é compõe-se de matéria e forma74. Nesse sentido, uma não existe sem a
outra; para a existência de uma coisa qualquer é necessário a união da matéria
69 Marie-Joseph NICOLAS, Verbete: Natureza..., p. 88.
70 Marie-Joseph NICOLAS, Verbete: Ser (Esse, ens)..., p. 97.
71 Maire-Joseph NICOLAS, Introdução à Suma teológica, In Suma teológica: teologia, Deus,
Trindade. V. 1. Parte I – Questões 1- 43, p. 43.
72 Maire-Joseph NICOLAS, op. cit., p. 46 e Nicola ABBAGNANO, verbete Matéria, in Dicionário
de Filosofia, p. 744.
73 Maire-Joseph NICOLAS, idem, ibidem.
com a forma. Transportando essa ideia de hilomorfismo para compreender a natureza humana, significa que, como um composto de matéria e forma, o ser humano não é apenas uma coisa ou outra, ele é a unidade de matéria e forma.
O homem é corpo75 e espírito.
De modo que “quando o homem pensa, é o composto inteiro que
pensa, embora seja pela atividade própria e espiritual da alma que, pensando, se torna livre da matéria que ela informa, mas não a ponto de abrir mão dela e das atividades de que é inseparável”76.
Ao explicar a intrínseca relação entre esses dois elementos, Edvino A. RABUSKE comenta: “(...) é difícil encontrar a terminologia adequada. Não
posso dizer simplesmente: ‘eu sou o meu corpo’, porque sou mais que isto. Também não é exato dizer: ’Eu tenho um corpo’. O verbo ‘ter’ não é apropriado para exprimir a relação de transcendência e de imanência do espírito com o corpo. Igualmente é insuficiente falar em ‘expressão ‘ ou ‘verbalização’: que o espírito ‘se exprime’, ‘se verbaliza’ no corpo”77.
Para Tomás de Aquino, espírito significa consciência e liberdade (livre-arbítrio). Consciência é conhecer e pensar, para compreender o ser em sua amplitude, e por consequência, amar. Liberdade é ser livre para agir e querer. De modo que, por meio de atos intelectivos e volitivos, o espírito humano se manifesta.
Como ato intelectivo, a antropologia aponta a consciência, que se caracteriza pela percepção do “eu”, que simultaneamente percebe que não é o outro ― essa consciência produz o conhecimento que se realiza pelo ato de pensar. Mas não é apenas a consciência e o pensamento que definem o
75 Para José de Oliveira ASCENSÃO corpo humano é tudo o que é expresso pelo mesmo
genoma. (Dignidade da pessoa e o fundamento dos direitos humanos, In: Revista Mestrado
em Direito, p. 88).
76 Maire-Joseph NICOLAS, op. cit., p. 47.
espírito, pois ele também se manifesta pela vontade, e a característica
fundamental da vontade é a liberdade78.
Assim, a natureza humana é espiritual, pode pensar e é livre para
agir. Muito diferente das outras naturezas, como a dos animais e vegetais79,
que não possuem escolha e, assim, estão fadadas a agir conforme sua
natureza. Conclui, então, Maire-Joseph NICOLAS: “(...) daí vem que a natureza
humana, mesmo única e constante nas pessoas e através dos tempos, é capaz de diversificações mais profundas que as das naturezas puramente materiais”80.
Possuir consciência e liberdade permite ao homem escapar do determinismo do universo, porque ele é responsável pelo seu próprio destino, e esta diferença específica o distingue dos animais. Graças à razão e à liberdade, o homem é o único ser dotado de inteligência e vontade capaz de, a partir da sua interioridade, buscar e realizar os valores que sua natureza lhe
permite realizar81. Essa diferença específica faz com que o homem seja
pessoa.
Mas o que faz do homem ser humano? Se, para os estudos
tomistas, pessoa é o que há de mais perfeito em toda a natureza82, e, por isso,
é o nome que cabe para designar Deus, o que faz a pessoa humana ser humana?
A resposta encontra-se também na natureza, nessa diferença específica que caracteriza o homem como o ser a se realizar, o homem em toda a sua magnífica imperfeição.
78 Edvino A. RABUSKE, Antropologia filosófica: um estudo sistemático, p. 68 e 87.
79 Na concepção aristotélica-tomista todos os seres vivos são matéria e forma, mas como
explica Maire-Joseph NICOLAS no animal a forma é um princípio psíquico, que dá lhe a sensibilidade, a aptidão para captar as qualidades das coisas sem ser modificado por elas, mas também sem retirá-las de seu condicionamento material. Enquanto no homem a forma é espiritual. (Introdução à Suma teológica, In Suma teológica: teologia, Deus, Trindade. V. 1. Parte I – Questões 1- 43, p. 46.).
80 Op. cit., p. 48.
81 Jacy de Souza MENDONÇA, Introdução ao estudo do direito, p. 180.
Como demonstrado nos parágrafos anteriores, o homem é composto de duas substâncias incompletas: espírito (anima, psique, eu, consciência) e matéria (corpo). A união dessas substâncias forma o ser humano, é essa sua natureza. E é tal união de espírito/matéria que possibilita a vida, o movimento, ele é o que é (causa), e o que se torna (fim).
Tornar-se o que já se é, é ser em essência ou ter a potência (a
faculdade, a capacidade)83 de ser.
As potências, conforme a classificação, podem ser vegetativa, sensitiva e intelectiva. A potência vegetativa corresponde ao poder de nutrição, crescimento e procriação dos seres vivos; a potência sensitiva é própria dos animais e compreende a sensibilidade ― sensação, percepção, imaginação e memória; e a potência intelectiva abrange atenção, ideia, juízo e raciocínio. A potência sensitiva realiza-se em atos de instinto, prazer e dor, já a potência intelectiva realiza-se em atos de vontade (apetite e desejo) e de intelecto, propriamente dito.
Evidentemente que no ser humano todas as potências (vegetativa, sensitiva e intelectiva) estão presentes, porque é um ser vivo (potência vegetativa), porque pertence como espécie ao reino dos animais (potência sensitiva), mas é a potência intelectiva, como potência característica dos seres humanos, que o faz o ser admirável que é. A vontade como ato da potência intelectiva tem como propriedade essencial a liberdade. O que significa que o ser humano ao ser livre para conhecer, agir e querer tornar-se aquilo que já é, cumpre com sua natureza.
Assim, o que há de mais humano no homem é ser em potência, é ser um ser a se realizar. Destaca-se que a potência é potencialmente infinita, mas cada homem está de algum modo limitado em sua potência. De modo que para a compreensão da natureza humana é necessário entender que ela somente se realiza na pluralidade, em si ilimitada, de indivíduos.
83
Aqui as palavras “faculdade” e “capacidade” são utilizadas em sentido filosófico e não no sentido jurídico.