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3. DIREITO À IMAGEM

3.1. Contextualização histórica

A maior ocorrência das questões sobre o direito à imagem resulta do desenvolvimento tecnológico ocorrido a partir do séc. XIX, mas é possível apontar em tempos remotos situações que envolveram o tema.

Na Grécia Antiga durante o século IV a.C., Frineia, uma cortesã famosa por sua beleza foi levada a julgamento por difamações de um admirador rejeitado. Em sua defesa o orador grego Hipérides, sem argumentos suficientes para persuadir os juízes, a despiu a fim de que vissem sua imagem e se convencessem de sua inocência, pois tanta beleza só poderia ser

atribuída a um favor dos deuses161.

Outro acontecimento envolvendo imagem ocorreu na época do Renascimento. Sem ter recebido autorização, o artista Michelangelo pintou o

mestre de cerimônia papal Sr. Biagio de Cesano (Braz de Casena) — que

criticava o trabalho do pintor na Capela Sistina, em Roma —, reproduzindo sua

figura na pintura do fundo da sala da Capela em que retratava o afresco intitulado O Juízo Final, colocando-o no inferno na figura de Minos com uma grande serpente enrolada nas pernas, fazendo que o próprio fosse reclamar

diretamente ao Papa162.

Entretanto, as primeiras decisões judiciais oriundas de um poder jurisdicional sobre o tema da imagem datam da metade do século XIX na França, envolvendo questões de retrato e fotografia.

161 Exemplo citado por Jacqueline Sarmento DIAS, O direito à imagem, p. 65, e por Álvaro

Antonio do Cabo Notaroberto BARBOSA, Direito à própria imagem: aspectos fundamentais, p. 2. Fato narrado por Olavo Bilac em seu poema “O Julgamento de Frineia” (Sarças de Fogo, in Poesias, 14ª ed., Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1930).

Segundo Silma BERTI, a primeira decisão judicial sobre proteção à imagem ocorreu em 16 de junho de 1858, ocasião em que o Tribunal de Seine julgou o caso da reprodução em desenho da fotografia de uma célebre atriz e

comediante francesa da época, Elisa Felix — conhecida pelo nome artístico de

Rachel —, no seu leito de morte. No caso examinado pelo Tribunal, os

fotógrafos contratados pela família permitiram que uma pintora reproduzisse em desenho a fotografia póstuma da famosa atriz e os comercializasse. Inconformada com a divulgação, a família da comediante reclamou alegando que os fotógrafos descumpriram o compromisso de resguardo. O Tribunal deu razão aos familiares, determinando a apreensão e a destruição do negativo e das cópias, declarando que a reprodução e a publicação dos traços fisionômicos de uma pessoa em seu leito de morte apenas podiam ser

realizadas com a autorização da família, ainda que a pessoa fosse — no modo

de dizer de hoje — uma celebridade163.

Nota-se que esse primeiro enfrentamento judicial sobre o direito de resguardar a imagem ocorreu em razão da invenção da fotografia, um modo de reproduzir imagem utilizando-se de um equipamento específico de captação de luz, ou seja, de tecnologia. Antes de tal invento, a reprodução dos traços fisionômicos de uma pessoa ficava a cargo de pintores, que normalmente possuíam autorização do retratado no momento do ato de pintar.

A invenção da fotografia não é atribuída a uma única pessoa. Ao longo do século XIX, vários cientistas se interessaram em desenvolver um mecanismo de captação e fixação de imagem. O primeiro a obter êxito foi o francês Joseph Nicèphore Niépce, em 1826 (ou em 1827; não se conhece o ano de modo preciso), mas apesar do reconhecimento histórico a imagem

obtida era de pouca qualidade — os contornos só eram percebidos se

observados por ângulo específico e com luz adequada —, de modo que o

próprio autor não ficou satisfeito com o resultado. Assim, continuou com as pesquisas e em 1829 firmou sociedade com o também francês Louis Jacques Mandé Daguerre, e juntos trabalharam para obter uma reprodução de imagem

163 Silma BERTI, Direito à própria imagem, p. 20. O mesmo episódio é citado com maior

riqueza de detalhes, mas sem indicação de fonte, por Serrano NEVES no livro A tutela penal

com nitidez e fixação, o que aconteceu meio por acaso após a morte de Nicèphore Niépce, em 1837, sendo a descoberta anunciada na Academia de

Ciência de Paris em 7 de janeiro de 1839164.

O sucesso de Daguerre deixou para trás muitos outros cientistas que desenvolviam o mesmo projeto, dentre eles a história da fotografia destaca os ingleses Willian Fox Talbot e John William Frederick Herschel, que conseguiram desenvolver a técnica para a reprodução em papel, embora com imagem ruim. O francês Hercules Florence, tendo vivido no Brasil entre 1824 e 1879, na Vila de São Carlos (atualmente a cidade de Campinas), também se dedicou a encontrar um meio de capturar e fixar imagem, e, se não conseguiu a notoriedade dos demais, ao menos se deve a ele o nome da técnica, a

origem da palavra “fotografia” 165.

A popularidade da fotografia, contudo, ocorreu apenas a partir de 1888, quando o inglês George Eastman conseguiu reproduzir imagem em uma base flexível de nitrocelulose que poderia ser enrolada e colocada dentro de câmara apropriada. Assim, foi possível a captação de várias imagens. Eastman fez em laboratório a revelação positiva dessas imagens, possibilitando-lhe criar o filme em rolo e a câmara fotográfica própria para seu

invento, ao qual chamou de Kodak166.

Com seu invento George Eastman conseguiu unir praticidade na captação da imagem, qualidade da imagem e possibilidade de reprodução,

tornando todos os outros processos obsoletos. E com eficiente discurso de

marketing, enfatizando que qualquer pessoa poderia fotografar – “você aperta o

164 Filipe SALLES, Breve história da fotografia. Escrito: seg., 22 de Setembro de 2008, 09:56.

Disponível em: < http://mnemocine.art.br/index.php/fotografia/33-fotohistoria/168-histfoto>. Acesso em 19/mar./2013.

165 Consta que Florence resolveu investigar os efeitos de materiais fotossensíveis para

encontrar uma maneira de reproduzir tipos gráficos. Desenvolveu um método de impressão em papel por contato em negativo que foi chamado de Fotografia, nome dado por ele e por um colaborador, o boticário Joaquim Corrêa de Mello. Segundo consta, foi a primeira vez que se utilizou o termo e, ao que tudo indica, cabe a ele o mérito da nomenclatura. Conforme Filipe Salles, idem.

166 De acordo com Filipe SALLES, reza a lenda que o nome Kodak é uma onomatopeia, pois

botão, nós fazemos o resto” foi o anúncio por ele divulgado –, a fotografia

tornou-se popular167.

Em pouco mais de 60 anos, 1826 (27) a 1888, passou-se do borrão à nitidez, da imagem única à possibilidade de reproduções infinitas. E foi justamente no final do século XIX que a doutrina jurídica começou a se debruçar sobre o tema.

Voltando aos exemplos do julgamento de Frineia e do episódio do pintor renascentista Michelangelo, é preciso ressaltar, no entanto, que a proteção da imagem não se restringe à fotografia, mas também à pintura, à escultura ou a qualquer outro modo de captura da imagem, pois como bem alertou Adriano de CUPIS sob o ponto de vista jurídico é indiferente o modo de

confecção do retrato da pessoa168.

O primeiro trabalho tradicionalmente reconhecido como o precursor dos estudos sobre o direito à imagem é o do jurista alemão KEYSSNER, que publicou a monografia Das Recht em eigenen Bilde em 1896. Walter MORAES e Silma BERTI, entretanto, apontam outros escritos anteriores, como os de BIGEON (La photographie devant la loi et la jurisprudence, 1892; e La

photographie et le Droit, 1893), Joseph KOHLER (Autorrecht, 1880, e Das individualrecht als Namenrecht, 1895?) e VAUNOIS (La liberté du portrait,

1894)169. Já Manuel GITRAMA GONZÁLEZ170 cita vários outros autores que

ainda no século XIX e antes de Keyssner analisaram o assunto.

167 Filipe SALLES, idem.

168 Adriano de CUPIS, Os direitos da personalidade, p. 144.

169 Walter MORAES, Direito à própria imagem (I), in RT 443, set. 1972, p. 65, e Silma BERTI,

Direito à própria imagem, p. 21.

170 Manuel GITRAMA GONZÁLEZ cita os autores: AMAR, Dei diritti degli autori di opera

dell’ingegno, Turin, 1874; BREDIF, Étude théorique et pratique sur la protectiondes aeuvres photographiques, Paris, 1894; COPINGER, The law of copyright, Londres, 1893; FERRARI Y ZAMBELLINI, Principes et limites de la protection légale due aux produits de la photographie, Milão, 1892; FRAIPONT, La photographie au Palais de Justice, Bruxelas, 1890; KRAMER, Ueber das Recht in Besug auf den menschlichen Körper, Berlim, 1887; LENTNER, Das Recht der Photographie nach dem Gewerbe- Press- und Nachdrucksgesetz, Viena, 1886; ROMANELLI, N., Il diritto di proprietà sul ritratto, in Foro Napolitano, 1897, p. 84 e seg.; ROSMINI, Le droit d’àuteur, 1893 e Se si possa fare, esporre e vender il ritratto di uma persona senza il consenso di essa o dei suoi eredi, in Monitore dei Tribunali, Milão, 1894; SAUVEL, La propriété artistique em photographie, spécialement em matiére de portaits, Paris, 1897;

No curso do século XX, o tema obteve ainda mais interesse com a invenção do cinema, em que a imagem em movimento pôde ser captada e utilizada para publicidade e divulgação de bens e ideias. As questões jurídicas tornaram-se mais frequentes nos Tribunais e a doutrina não se furtou em desempenhar seu papel de elaboração teórica. No Brasil, merecem destaque os estudos de Walter Moraes e Antonio Chaves.

A legislação sobre o direito à imagem se expandiu acompanhando a positivação do direito do autor. Ensina Walter MORAES que a primeira lei que dispôs sobre fotografia foi de origem alemã, datada de 10 de janeiro de

1899171. GITRAMA GONZÁLEZ destaca, ainda no século XIX, as leis sobre

propriedade intelectual da Bélgica (22 mar. 1886) e do Japão (04 mar. 1899), e no século XX as da Áustria (9 abr. 1936), do Uruguai (17 dez. 1937), da Grã- Bretanha (7 nov. 1956) e do México (20 dez. 1956). E em relação ao direito de autor, as leis da Alemanha (9 jan. 1907), da Suíça (7 dez 1922), dos Estados Unidos (Estado de Nova Iorque, em 1930), da Argentina (26 set. 1933), da Itália (22 abr. 1941), da Bulgária (12 nov. 1951), da Checoslováquia (22 dez

1953) e do Egito (24 jun. 1954)172.

Antonio CHAVES menciona especialmente o Código Civil Italiano de 1942, que, ao tratar do abuso da imagem alheia, no Art. 10, engendrou

produção bibliográfica sobre o tema173.

Em geral, todos esses diplomas legais possuem a mesma estrutura. Primeiramente, proíbem a reprodução, a divulgação e a exposição de retrato sem o consentimento da pessoa retratada. Em seguida, estabelecem o rol dos sucessores neste direito de consentir e finalmente estabelecem a hipótese em

SCHEELE, Das Deutsche Urheberrecht na literarischen, künstlerischen und photographischen Werken, Leipzig, 1892; SCHRANK, Des Schutz des Urheberrechts an Photographien, Halle, 1893; SHAEFER, Das Recht am eigenen Bilde, in Gewerbliche Rechtschutz und Urheberrecht, 1897, t. II, p. 206 e seg.; STOLZE, Zum Schutze der Photographie, in Photographische Nachrichten, 1891, p. 449 e segs. WAECHTER, Das Recht der Briefe und Photographien, Berlin, 1863. Verbete: Imagen (Derecho a la propia). In: Nueva enciclopedia jurídica. T. 11, p. 371 a 376.

171 Walter MORAES, Direito à própria imagem (I), in RT 443, set. 1972, p. 66.

172 Manuel GITRAMA GONZÁLEZ, Imagen (Derecho a la propia). In: Nueva enciclopedia

jurídica. T. 11, p. 369 a 371.

que o consentimento é dispensado (como interesse judicial, policial, artístico e científico, fotografado em local público, ou, ainda, se for pessoa que goza de grande notoriedade em razão de função pública ou de interesse do público) e a hipótese em que é presumido em favor do autor do retrato, por exemplo no

caso de remuneração do retratado174.

Nas hipóteses em que essa legislação previu a dispensa do consentimento há, no entanto, a ressalva: a honra, a reputação, o decoro ou qualquer outro legítimo interesse deverão sempre ser resguardados, como se verifica na legislação acima referida da Alemanha, do Egito, da Itália, do

México e da antiga Checoslováquia175.

É certo que a curiosidade da Ciência do Direito a respeito do tema do direito à imagem foi aguçada pelo desenvolvimento tecnológico. Mas ainda que pareça ser a tecnologia o ponto de partida para as questões jurídicas sobre imagem, não é nela que se encontra o direito e tampouco não é na tecnologia que se encontrará o limite. O estudo do direito à imagem não significa apenas e tão somente direito à fotografia ou ao retrato.