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Eficácia do princípio da dignidade humana no âmbito do direito

2. DIREITOS DA PERSONALIDADE

2.3. Eficácia do princípio da dignidade humana no âmbito do direito

O reconhecimento da dignidade da pessoa humana como fundamento constitucional, como princípio normativo que tem um fim a ser

atingido, permite que a doutrina admita de forma implícita – já que nesse

sentido existe uma omissão constitucional – a consagração de um direito ao

livre desenvolvimento da personalidade110.

De modo que o direito fundamental de inviolabilidade da intimidade, da vida privada, honra e imagem (Art. 5, X), por exemplo, em que cada qual é objeto dos direitos da personalidade, deve ser interpretado e aplicado de forma conjunta: dignidade da pessoa humana, direitos e garantias fundamentais e direito da personalidade, para que efetivamente reconheça-se o conteúdo normativo do texto constitucional e se cumpra o princípio determinado no Art. 1 inc. III, da Constituição Federal.

Dessa forma, ocorre a chamada irradiação das normas de direitos

fundamentais a todo o sistema jurídico111. A irradiação do direito constitucional

para os demais ramos do direito pode, à primeira vista, parecer trivial, mas é uma construção historicamente recente no estudo do direito privado, que tradicionalmente ao codificar assumiu um caráter patrimonialista e fundamentou seus dispositivos na autonomia privada.

No que se refere à irradiação das normas constitucionais quanto aos direitos fundamentais, significa dizer que estes direitos não se restringem apenas à relação Estado/cidadão, mas igualmente às relações

109 Ingo Wolfgang SARLET, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na

Constituição Federal de 1988, p. 93.

110 Ingo Wolfgang SARLET, op. cit., p. 103.

cidadão/cidadão. A esse efeito deu-se o nome de “efeito perante terceiro” ou de

“efeito horizontal dos direitos fundamentais”112.

Este efeito é relevante para o Tribunal Constitucional Alemão,

consagrado no chamado Caso Lüth (Erich Lüth em 15 de janeiro de1958)113.

Entretanto, no Brasil deve ser considerado com ressalvas, porque da análise da Constituição de 1988 verifica-se que certos direitos são compreendidos no âmbito da relação entre cidadão/cidadão, como os direitos relativos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem (Art. 5º, X), que são oponíveis contra possíveis violações oriundas de atos de particulares e a previsão de que a liberdade de expressão (Art. 5º, IV) está sujeita ao direito de resposta (Art. 5º, V). Isso permite o entendimento de que sua aplicação ocorre na relação entre

particulares114.

Para Rosa NERY chama-se eficácia civil dos direitos fundamentais “o fenômeno de as disciplinas do direito privado respeitarem os direitos

fundamentais insculpidos na Constituição e todos os regramentos que ela adota, como maneira de realização do bem comum de produção de efeitos jurídicos compatíveis com o respeito aos direitos fundamentais, essenciais à preservação da dignidade do ser humano”115.

112 Robert ALEXY, op. cit., p. 523.

113 Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, p.

381/382. Nas palavras de Virgílio Afonso da SILVA: “Em 1950, Erich Lüth, presidente de uma associação de imprensa em Hamburgo, na Alemanha, em uma conferência na presença de diversos produtores e distribuidores de filmes para cinema, defendeu um boicote ao filme Unsterbliche Geliebte (Amantes imortais), do diretor Veit Harlan, que, na época do regime nazista, havia dirigido filmes antissemitas e de cunho propagandístico para o regime em vigor. Diante disso, o produtor do filme ajuizou ação, considerada procedente pelas instâncias inferiores, contra Lüth, com o intuito de exigir indenização e proibi-lo de continuar defendendo tal boicote, com base no § 826 do Código Civil alemão, segundo o qual “aquele que, de forma contrária aos bons costumes, causa prejuízo a outrem, fica obrigado a indenizá-lo”. Em face do resultado, Lüth recorreu ao Tribunal Constitucional, que anulou as decisões inferiores, sustentando que elas feriam a livre manifestação do pensamento de Lüth. Mas a decisão não se fundou em uma aplicabilidade direta do direito à manifestação do pensamento ao caso concreto, mas em uma exigência de interpretação do próprio § 826 do Código Civil alemão, especialmente do conceito de bons costumes, pois, segundo o Tribunal, “toda [disposição de direto privado] deve ser interpretada sob a luz dos direitos fundamentais” (A

constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares, p.

80).

114 Virgílio Afonso da SILVA, op. cit., p. 22.

115 Rosa Maria de Andrade NERY, Introdução ao pensamento jurídico e teoria geral do

O reconhecimento da superioridade hierárquica do dispositivo constitucional e de que os princípios constitucionais irradiam em todos os setores da ordem jurídica, inclusive sobre as situações civis, não significa, no entanto, que se adotou a tese de existência de um “direito civil

constitucional”116.

A expressão “direito civil constitucional” pode indicar a existência de um sub-ramo de direito constitucional, um novo ramo de direito civil, e até um terceiro ramo do direito que envolva aspectos civis e constitucionais. Nenhuma dessas acepções é aceitável, pois as normas de direito civil não deixam de ter natureza civilista apenas porque podem, eventualmente, estar presentes no texto constitucional.

Ao se qualificar o direito civil como “constitucional”, pressupõe-se que há uma parte do direito civil “não constitucional”, no sentido de que há um

direito civil que está ao largo da Constituição117, o que também é inaceitável.

Isso porque o sistema jurídico deve ser visto como um todo harmonioso, em que as diversas normas se integram.

Assim, não há um novo ramo do direito civil (direito civil constitucional) ou novo ramo do direito constitucional (direito constitucional civil). O direito civil continua a ser a fonte imediata no domínio das situações civis, mas deve ser interpretada levando em conta as diretrizes constitucionais, como, aliás, deve ocorrer com toda a regra jurídica, independente do ramo do direito ao qual está inserida.

116

José Oliveira Ascenção explica a razão e a origem dessa expressão: “(...) foi desenvolvida na Itália a tese da existência de um Direito Civil Constitucional. (...) A tese teve grande repercussão no Brasil, por meio de juristas de relevo, como Gustavo Tepedino. Haverá uma circunstância que explica esta aceitação da doutrina italiana. Num caso e noutro, uma nova ordem constitucional entrava em choque com um Código Civil que não refletia os valores constitucionais, pois fora elaborado em regime político diferente. O Código Civil italiano é de 1942: é um documento notável, mas fora aprovado em pleno regime fascista. Algo semelhante acontece no Brasil, mesmo perante o Código Civil de 2002, uma vez que o Projeto, embora em si muito valioso, datava de 1975”. Panorama e perspectivas do direito civil na União Europeia, in V Jornada de Direito Civil, p. 32.

117 Virgílio Afonso da SILVA, A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas

A delimitação entre o direito privado e o direito constitucional, embora muito criticada, guarda bastante relevância, até mesmo para preservar suas respectivas forças normativas, pois se cabe ao direito privado a tarefa de regular as situações jurídicas privadas, o faz com base em leis, que, por sua vez, são produto do processo legislativo que parte de uma legitimidade democrática, criada e autorizada constitucionalmente.

A constitucionalização de todo o ordenamento enfraquece o direito constitucional, que perde sua força normativa de servir de parâmetro de controle da instância política legislativa (do Poder Legislativo) em face das diretrizes firmadas no texto constitucional, comprometendo sua autonomia e o

cumprimento de função118.