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Uma pesquisa-intervenção criando "animação 3D livre" numa escola pública : educação, cinema e ética hacker

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Academic year: 2021

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FACULDADE DE EDUCAÇÃO

KATHARINE RAFAELA DINIZ NUNES

UMA PESQUISA–INTERVENÇÃO CRIANDO

“ANIMAÇÃO 3D LIVRE” NUMA ESCOLA PÚBLICA:

EDUCAÇÃO, CINEMA E ÉTICA HACKER

CAMPINAS

2018

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UMA PESQUISA–INTERVENÇÃO CRIANDO

“ANIMAÇÃO 3D LIVRE” NUMA ESCOLA PÚBLICA:

EDUCAÇÃO, CINEMA E ÉTICA HACKER

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestra em Educação, na área de concentração Educação.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Albuquerque Miranda

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA KATHARINE RAFAELA DINIZ NUNES E ORIENTADA PELO PROF. DR. CARLOS EDUARDO ALBUQUERQUE MIRANDA

CAMPINAS 2018

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FACULDADE DE EDUCAÇÃO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

UMA PESQUISA–INTERVENÇÃO CRIANDO

“ANIMAÇÃO 3D LIVRE” NUMA ESCOLA PÚBLICA:

EDUCAÇÃO, CINEMA E ÉTICA HACKER

Autora: Katharine Rafaela Diniz Nunes

COMISSÃO JULGADORA:

Prof. Dr. Carlos Eduardo Albuquerque Miranda Prof. Dr. Nelson De Lucca Pretto

Prof. Dr. Wencesláo Machado de Oliveira Junior

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

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Agradeço à Escola Estadual Prof. Francisco Álvares, à Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo acolhimento e suporte à realização desta pesquisa. Agradeço a confiança, a abertura e a atenção oferecidas pelo meu amado orientador, Carlos Miranda. E a paciência, a alegria e o amor incondicional de Mainha, Painho e Nino.

Agradeço também ao Laboratório de Estudos Audiovisuais – OLHO/FE e a todos que acompanharam e contribuíram nesta jornada, especialmente aos professores pesquisadores Wencesláo Machado de Oliveira Jr. e Nelson de Luca Pretto, absolutamente sagazes e dedicados às questões tratadas aqui. Também sou muito grata à Profa. Dra Alik Wunder e ao Prof. Dr. Marcelo Pustilnik de Almeida Vieira por aceitarem participar desta Banca Examinadora. Não poderia deixar de agradecer a imensa generosidade de Luís Gustavo Guimarães, cujo apoio foi fundamental nos primeiros passos deste percurso. Já quanto aos últimos, agradeço demais ao Coco Bandolêra por me alimentar, limpar e trazer os cuidados da incrível enfermeira-acupunturista Silvia Mazzolli, em momentos de profundo adoecimento nos dias de finalização deste texto. E a Bruno Pinheiro, que esteve ao meu lado desde as primeiras palavras do projeto de candidatura até as linhas escritas hoje.

Dedico este trabalho ao movimento software livre, às políticas de permanência estudantil e a todas as escolas públicas brasileiras, especialmente aos meus 6 anos de Moradia Estudantil – Unicamp e 7 anos de Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Pernambuco. Dedico também a uma outra escola, a Midialogia – Unicamp, e a todos com quem aprendi nas diversas oficinas de experimentação artística com software livre que articulei em tantas cidades do Estado de São Paulo, seja através da troca de saberes e/ou de hospedagem. Bem como aos colegas de ativismo: Capi Etheriel, Mateus Pavan, Sérgio Amadeu, o pessoal da Metamáquina e do LabCEUs, que me ensinaram profundamente, só por existir junto, convivendo. Também agradeço todas as experiências que tenho vivido como uma das atuais coordenadoras da Rede Kino - Rede Latino-Americana de Educação, Cinema e Audiovisual. Todos esses encontros também tecem o emaranhado “mafuazento” que lhes apresento a seguir.

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Esta pesquisa-intervenção acompanha experimentações estéticas entre cinema e animação 3D de código livre que se deram no ambiente escolar. Elas faiscaram através de/impulsionadas por/provocadas por práticas colaborativas de criação - em contato com plataformas virtuais como Blend Swap e Blender Cloud - entre estudantes do Ensino Fundamental 2 e Ensino Médio da Escola Estadual Prof. Francisco Álvares, situada em Campinas - SP. Feitos com software livre e compartilhados através de licenças Creative Commons, os exercícios de experimentação serviram-se de princípios da Ética Hacker e da noção de dispositivo de criação de imagens apresentada por Cezar Migliorin, para propor reflexões sobre desvios e linhas de fuga que possam surgir na elaboração de projetos abertos quando submetidos a linhas de controle e linhas de abertura. Apoiando-se nas “Pistas do método da cartografia”, organizadas por Eduardo Passos, Virgínia Kastrup e Liliana da Escóssia, e na ideia de “Igualdade das Inteligências”, discutida por Jacques Rancière, observou-se que gestos de experimentação de uma comunidade escolar podem oferecer rearranjos e lançar novos desafios às redes de criação que as culturas de desenvolvimento colaborativo virtuais têm construído até agora. Com esta pesquisa, vislumbra-se contribuir para o debate sobre o lugar da criação e das tecnologias dentro da escola, ao sugerir pistas de potências estéticas escolares para o cinema e para a computação gráfica.

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This work of research-intervention follows a series of aesthetic experiments in a field between cinema and 3D animation on free code that took place in the school environment. They were flashed through / driven by / sparked by collaborative creative practices - in touch with virtual platforms like Blend Swap and Blender Cloud - among Middle School and High School students from State School Prof. Francisco Álvares, in Campinas - SP. Made with free software and shared under Creative

Commons licenses, the experimental exercises used principles of Hacker Ethics and

the notion of image creating devices presented by Cezar Migliorin, to propose reflections on deviations and lines of flight that may arise in the elaboration of open projects submitted to control lines and opening lines. Guided by “The Cartographic Method of Research-Intervention”, organized by Eduardo Passos, Virginia Kastrup and Liliana da Escóssia, and the idea of "Equality of Intelligences", discussed by Jacques Rancière, it was observed that gestures of experimentation of a school community can offer rearrangements and present new challenges to the creative networks that the collaborative virtual development cultures have built so far. It is expected that this research may contribute to the debate on the role of creation and technologies within the school, by suggesting clues of the school's aesthetic potencies for the creation on cinema and computer graphics.

Keywords: public school; cinema; free and open source software; hacker ethic;

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Apresentação | 9

1. Alguns pontos de partida | 17

1.1 Introdução a esta pesquisa-intervenção | 17 1.2 Estrutura de capítulos e apêndices | 21 2. Pistas metodológicas | 25

2.1 Áudios, cineclube e dispositivo como método: ver, produzir e discutir! | 32 2.2 Experiências de rede contribuindo com mais pistas | 38

3. Mafuá | Trabalho de Campo na Escola - Proposta e primeiros contatos | 43 4. Movimentos Colaborativos? Que recorte é esse? | 66

4.1 O que Ética Hacker e aprendizagem têm a ver com isso? | 72 4.2 Mas o que é esse “livre”, afinal? | 76

4.3 Blender 3D | 78

4.4 Blend Swap e Blender Cloud: plataformas atravessadas por comunidades | 82

5. Como esses Movimentos Colaborativos se articulam com o Cinema e com Dispositivos de Criação de Imagens? | 87

6. Mafuá | Trabalho de Campo na Escola - Experimentações e Experiências |105 7. O Cinema como porta de entrada dos Movimentos Colaborativos na Escola: O que juntos podem provocar lá? O que a Escola provoca neles? | 146

7.1 Escola | 148

7.2 Memes e partilha do sensível | 153

7.3 Dinâmicas coletivas e uma Comunidade de Cinema | 165

7.4 Mafuá: estagiários, acasos e cultura dos participantes inundando as oficinas | 177 7.5 O Cinema e a Tecnologia vão “salvar” a Escola? | 198

7.5.1 Carta ao Professor de Sociologia | 201 8. Considerações finais | 212

9. Referências | 215 10. Apêndices | 224

10.1 Plano de trabalho das oficinas na Escola Estadual Prof. Francisco Álvares | 224 10.2 Termo de Consentimento Livre e Esclarecido do Trabalho de Campo | 230

10.3 Termo de Autorização de Imagem referente à publicação do vídeo “Experimentações e Experiências” | 232

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Apresentação

Se começo a exibir um filme na escola e o interrompo, congelando o frame (quadro), para perguntar aos estudantes: “– Esta imagem poderia ser qualquer outra, esta imagem é produto de uma série de escolhas, de vários alguéns… E se pensássemos, juntos, outras escolhas para ela? Que cenários, que paleta de cores, que distância da câmera, quais pontos de vista?”, estou atentando para decisões sobre as formas de se fazer existir e durar na imagem, pistas de realidades em transformação, recortando a ocupação dos espaços, dos tempos, dos ritmos, das conexões e das rupturas.

Como diz Adriana Fresquet1, quando a gente convida o espectador, seja

estudante ou professor, a fazer escolhas para esta mesma imagem que alguém já pensou, estamos convidando a uma espécie de autoria. Uma pedagogia da criação com o cinema, cuja potência vai além da possibilidade de se ter acesso a uma câmera ou não. Esta pedagogia faz o estudante/professor pensar que, se essa imagem poderia ser outra, se ele tem a possibilidade de alterá-la, de imaginá-la diferente, esta perspectiva pode influenciar crucialmente sua atuação no mundo. O mundo não é só o que está sendo dado; é, também, o cruzamento de um conjunto de decisões por quem lhe toma parte. Questionar o que já está em curso e pensar percursos alternativos, é sempre um exercício político de invenção. Ao fechar o enquadramento entre os dedos indicadores para recortar, distanciar, ver o que cai no campo, o que cai no extracampo, o que fica no antecampo, uma pedagogia da criação na escola mobiliza o pensamento de certa maneira. Depois se filma, se não filma, se o filme fica pronto, se gente gosta ou não, se consegue preparar o material para passar em um festival… isto é outra coisa (que tem mais a ver com a produção de filmes que com a experiência do cinema).

A parte do “livre”, no título desta pesquisa, é bem importante. Não só pelas questões educacionais e políticas que ela evoca dentro da cultura hacker, mas pelos desdobramentos estéticos mesmo, pela experimentação.

Uma coisa é poder fazer download de uma animação computadorizada protegida por copyright, como a Shrek (dirigida por Andrew Adamson e Vicky

1 Uma das vezes em que a pesquisadora abordou esta questão foi em sua palestra sobre o tema “Invenções entre cinema, educação e geografias”, realizada em 8 de novembro de 2017, no V Colóquio Internacional “A Educação pelas Imagens e suas Geografias”, que ocorreu junto com o XVII Simpósio de Geografia da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).

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Jenson, 2001), numa extensão de vídeo qualquer, como a .avi. Outra coisa, é cortar partes dela e juntar com as de outros vídeos e, além disso, poder publicar esse “remix” sem ter problemas jurídicos. Embora seja bem difícil vermos os detentores dos direitos autorais de grandes produções cinematográficas permitindo esse tipo de coisa, já seria bem legal que acontecesse. Mas, ainda sim, seria pouco. Não passaria de um corta-e-cola de pedaços

prontos, já renderizados, compilados.

Imagina se, ao assistir/manipular esse pedaço de video, você pensasse, também, em dirigir o Shrek? Se você quisesse voltar no tempo e/ou se deslocar no espaço até o set de filmagem do filme para dizer: “– Ô, ‘boneco do Shrek’, queria que nesta cena você dissesse tal outra coisa, enquanto escorrega, em vez de pular... e que você aprimorasse o estilo dessa risada, fazendo-a mais dramática, entende? E essa sua cor também… verde não tá com nada mais, peço que agora você seja azul, ok? Vamos ver no que dá. Ação!”. Se você pudesse “voltar” (neste caso, talvez a palavra passado nem faça sentido… seria tudo presente?) à realidade em que tudo ainda é possível, porque a cena ainda não foi renderizada.

Antes da renderização, podemos reposicionar todas as lâmpadas, determinar que tipo de luz e que cor emitem, animar sua mudança de intensidade, configurar como todos os corpos se comportam perante essa luz (a superfície da bochecha do personagem tem índice de refração? reflete? espelha? é um pouco transparente?), como as câmeras vão captar essa imagem (que lente usar? que resolução? que distância focal? que profundidade de campo?), suas trajetórias de movimento, etc. Há, também, uma rede cheia de conexões entre os elementos de cena, entre cada um dos bones2 da cadeia de ossos dos personagens, que vão deformar de tal maneira uma parte específica de uma malha poligonal, etc. Um conjunto de inúmeras forças está visível, pois seus controles estão à mostra, tomam parte, dentre as possibilidades sensíveis. Quanto mais aparente e mais aberto (no sentido de permissões não só técnicas, mas legais, envolvidas em sua alteração) este projeto for, mais pistas de experimentações estéticas poderão surgir, mais inteligências (humanas e inumanas) poderão “pitacar” nesta rede. Quando digo “aparente”, me refiro não somente à existência de uma interface de diálogo com o

2 Este termo técnico será retomado posteriormente, refere-se a um conjunto de ferramentas usadas para articular movimentos de objetos segmentados em projetos de computação gráfica.

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usuário/editor que possibilite várias maneiras de se modificar as configurações do projeto dentro do programa (além de permitir que este mesmo usuário reescreva o programa, caso necessário). Mas, principalmente, que haja um cultura de formação/discussão cada vez mais abrangente sobre tudo isso. Ou seja, é preciso que, qualquer um que queira aprender como este software funciona, tenha acesso a todas as informações relacionadas. E possa aplicá-las, inclusive, em computadores simples (fazendo-se necessário que o programa não exija altos pré-requisitos de sistema para abrir) e públicos, de espaços como bibliotecas, escolas, centros comunitários, etc. Do contrário, essa aparência fica limitada, pois, embora sua estrutura torne-se mais transparente (está aí, para qualquer um ver), ela continuaria inacessível, de difícil entendimento. Como uma língua exposta, mas que é pouco conhecida e usada. Até aí, tudo pode, é só projeto, um canteiro de obras, um fórum de discussão, um laboratório de tentativas. Mas, após apertar “Render”, todos os cálculos serão disparados, os planos se concretizarão. Renderizar é o ato de compilar e obter o produto final de um processamento digital, pode durar meses. Será gerado um arquivo (o tal .avi, por exemplo, ou .mp4, .mov, etc) feito para ser executado, ou seja, que sempre desencadeará um conjunto de imagens tal como se “orquestrou” e previu. Nada mais que isso. A diferença entre somente executar um software e ter acesso a seu código-fonte, é parecida com a que existe entre “dar play” neste arquivo .avi pronto e ter acesso ao projeto .blend que o gerou. Código-fonte é uma rotina de comandos que resultam na realização de uma determinada tarefa, a partir das entradas de dados no sistema. Já .blend3 é o formato de arquivo nativo do

software livre Blender 3D4, para criar projetos que serão posteriormente

renderizados. Ou seja, é como se, além de sairmos distribuindo e “mutilando corpos de video”, pudéssemos disponibilizar, também, a alteração de seus “DNAs”. Dentro da Cultura Hacker, o compartilhamento de códigos-fonte tem sido uma prática recorrente (HIMANEN, 2001). O The Hacker Manifesto5, lançado na década 3 Além de objetos 3D, também armazena cenas inteiras, textos, imagens, vídeos, sons e configurações. É multiplataforma, isto é, pode ser executado em qualquer sistema operacional que possua o software Blender, como Linux, Windows, Mac OS, etc.

4 Ele será abordado com mais detalhe nos próximos capítulos. Mais informações em: <https://www.blender.org/>. Acesso: 01/02/2018.

5 Pequeno ensaio escrito em 1986 (após a detenção de seu autor) e publicado pela primeira vez no ezine underground hacker “Phrack”. É uma publicação diferente da “A Hacker Manifesto”, livro escrito pelo professor de estudos de mídia McKenzie Wark, de 2004.

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de 80, criticou várias práticas vivenciadas em ambiente escolar:

Estou no Ensino Médio. Tenho ouvido os professores explicarem pela décima quinta vez como reduzir uma fração. Eu entendo isso. “Não, Sra.

Smith, eu não mostrei o meu trabalho. Eu fiz isso na minha cabeça …”.

Maldito garoto. Provavelmente copiou. Eles são todos iguais. […] temos sido alimentados com colher de comida de bebê, enquanto nossa fome é de

bife ... os pedaços de carne que você deixou passar foram pré - mastigados

e sem gosto. Nós fomos dominados por sádicos ou ignorados pelos apáticos. […] Nós exploramos … e vocês nos chamam de criminosos. Nós buscamos por conhecimento … e vocês nos chamam de criminosos. Nós existimos sem cor, sem nacionalidade, sem preconceito religioso… e vocês nos chamam de criminosos. […] Sim, eu sou um criminoso. Meu crime é a curiosidade. Meu crime é julgar as pessoas pelo que elas dizem e pensam, não por como elas se parecem. Meu crime é ser mais inteligente que você, algo que você nunca vai me perdoar. (THE MENTOR, 1986, traduzido por partidopirata.org e por nós, grifo nosso).

No capítulo 4, levanto algumas pistas de dinâmicas da cultura hacker que poderiam contribuir em situações escolares. Mas, minhas questões não acabam aí. Acredito que a comunidade escolar (ou seja, não só os estudantes, mas a gestão, os professores, os funcionários, os pais, os vizinhos da escola, etc), tendo lutado para sobreviver dentro da estrutura escola (atravessada por diversos agenciamentos institucionais), também teria como contribuir/lançar desafios/instaurar crises nas redes de criação que as culturas de colaboração têm construído até agora. Que desvios, que linhas de fuga de criação poderiam surgir desses encontros?

Como diz Nelson Pretto (2016), “não queremos a internet nas escolas e, sim, as escolas na internet”. A questão não é (somente) sobre os estudantes terem

acesso aos produtos culturais disponibilizados em fóruns, e sim, produzir e

compartilhar seus códigos-fonte também. E, se possível, em sua versão bem de começo, cheia de “erros”. Pois estes últimos são fundamentais para que se oportunize o fenômeno de receber e de inspirar o “pitaco” de outras pessoas. Talvez essa primeira versão germine sozinha (no sentido de não depender somente de um autor), nutrida por uma pequena multidão. Qualquer um pode se aventurar nesse “mar da colaboração”, para sentir se/onde/como consegue surfar. Mas, nesta pesquisa, não estou olhando para qualquer um, e sim, para integrantes de uma escola pública: gente que se conhece a vários anos, que convive por várias horas todo dia, que é “obrigada” a frequentar

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aquele espaço, que almoça lá e cuja experiência rende seu peculiar repertório de brincadeiras, etc... Enfim, uma comunidade cheia de cultura própria compartilhada, cujas práticas/vivências podem dialogar com outras comunidades (sejam escolas ou não).

Para mim, se é para abordar criação na educação, vou pautar sempre a possibilidade de termos acesso aos códigos-fonte (ou de algo ao menos semelhante) das obras culturais e artísticas, além delas mesmas (renderizadas, exportadas, etc). E que as renderizações (os vídeos .avi, os quais executamos através de um botão play, ou seja, não só os projetos .blend) criadas por estudantes possam ser liberadas “cedo e frequentemente”, como incentiva o hacker Eric Raymond em “A Catedral e o Bazar” (1998), para que sejam assistidas e conversadas em cineclubes escolares. Ou seja, comentar renderizações que ainda sejam primeiras versões dos projetos, que poderão ter erros, expor dúvidas, gerar material que guiará novas tentativas. Tentativas que precisam ser novas, tanto para o professor quanto para o aluno, pois é através delas que um sai do lugar de quem ensina para experimentar com o outro.

Do desenho vetorial à contação de histórias

Comecei a trabalhar com educação ministrando oficinas de software livre que experimentavam a criação de arte sequencial: como histórias em quadrinhos que articulavam desenhos, imagens e fotos. As publicações teóricas de Will Eisner e Scott McCloud, foram minhas referências quanto a uma composição gráfica que se aproximasse da elaboração de personagens, de narrativas (ou mesmo de algo que propositalmente fugisse delas) e do cinema. Já quanto à aprendizagem de uma teoria sobre animação 3D, acompanhei os escritos de George Maestri e de outros autores. De qualquer maneira, conheci muitos cursos de desenho quando criança, a maioria no sentido de separar o espaço em formas geométricas “grandes” e, dentro de cada uma, ir inserindo detalhe.

Durante as oficinas, encontrei pessoas de idades muito diferentes se declarando incapazes de desenhar, seja com lápis no papel, seja com o mouse no ambiente digital. Mas que se sentiam cada vez mais confortáveis com a ideia de, através do desenho vetorial (com o programa Inkscape, por exemplo) traçar alguns pontos com o mouse. Esses pontos seriam conectados entre si através de retas

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-feitas pelo software de desenho mesmo – e, depois, o usuário ia deformando cada reta em curvas, para aproximar o conjunto da forma desejada. Quanto mais pontos, mais retas e, consequentemente, elas poderiam ser transformadas em outras curvas, para inserir mais detalhes. Uma senhora idosa me falou que, através daquela “mágica”, não tinha mais nada que ela não conseguisse desenhar no computador, era só pegar prática na escolha dos primeiros pontos: “– Inda mais que tudo que a gente imaginar, o povo já desenhou parecido... a gente só tem que brincar com as curvas, os detalhes, né, fia? Que diversão”, ela disse (várias pessoas diziam frases bem parecidas a essa, na verdade), referindo-se a plataformas de desenhos vetoriais livres (em formato de edição, .svg), como a OpenClipArt6, cujos

projetos poderiam ser estudados e recombinados pelos participantes para criar qualquer outra coisa. Este “conforto” também foi mencionado em exercícios de modelagem 3D (do tipo poligonal, e através de outro tipo de software) ao se tentar criar qualquer tipo de forma a partir do reposicionamento dos vértices de poliedros padrão, como cubos. Os relatos me davam a impressão de que, para todas essas pessoas, o tal “desenho à mão livre” demandaria certa genialidade, coisa de gente “inspirada por Deus”, e que a criação artística estaria afinada a esse movimento. Já o desenho técnico, próximo à geometria, seria algo “funcional”, e não arte.

Durante os exercícios, através do uso de tecnologias e do compartilhamento de projetos livres, conseguíamos ver os caminhos traçados (bem como outros, possíveis), que percorriam as obras de vários artistas (aquelas mesmas, supostamente inspiradas por Deus). Como se fossemos formiguinhas que estivessem autorizadas a caminhar, alterar, bisbilhotar, as engrenagens que vão gerar os cinemas de animação de outras pessoas, por exemplo. Assim, promovíamos desvios a partir do que já existia, do acesso aos mecanismos, estratégias e forças que atravessavam aquelas obras. Neste caso, seria arte ou técnica? Invenção ou cópia?

A cultura é elaborada a partir de cruzamentos que nos atravessam, de diálogos com tudo que já existe, ninguém precisa “reinventar a roda”, como se criasse "do zero". Se assim o faz, é uma pena, pois é bem capaz de boa parte da

6 <https://openclipart.org/>. É um projeto internacional que objetiva criar uma coleção de ClipArts vetoriais livres. Todos os desenhos compartilhados lá estão publicados através da licença CC0 1.0 Universal (public domain dedication), da Creative Commons, mais informações em: <https://creativecommons.org/publicdomain/zero/1.0/>.

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coisa já ter sido inventada por alguém, em outro lugar ou tempo. Porém, temos nos acostumado tanto a lidar com cultura sob uma mentalidade proprietária e fechada, que vamos nos obrigando a fazer engenharia reversa, em vez de beber diretamente dos códigos-fonte das obras. A engenharia reversa tem suas origens na análise de hardware: para deduzir, a partir dos produtos finais (e com pouco ou nenhum conhecimento adicional), os procedimentos envolvidos nos projetos originários. As mesmas técnicas foram sendo aplicadas em sistemas de software, para substituir documentação incorreta, incompleta ou indisponível.

No já mencionado “A Catedral e o Bazar”, Eric Raymond (1998) defende que a “visão bazar”, é mais eficaz que a “visão catedral”, por liberar softwares para uso já em suas primeiras versões, bem como por disponibilizar seus códigos-fonte; pois, assim, distribuindo infinitas cópias do programa, seus muitos usuários podem ajudar a testá-lo e contribuir como codesenvolvedores. A visão catedral, por sua vez, refere-se a um estilo fechado de derefere-senvolvimento, que não libera o código-fonte aos usuários. Além disso, ele é realizado por um grupo pequeno e restrito de pessoas, que publica cada versão do software somente após muito tempo. Isto porque as soluções demoram mais a surgir, por serem desenvolvidas e testadas somente entre poucos. No estilo bazar, quanto mais erros aparecerem, melhor para a evolução do projeto em pouco tempo. Assume-se que “erros são geralmente um fenômeno trivial, ou, pelo menos, eles se tornam triviais muito rapidamente quando expostos para centenas de ávidos co-desenvolvedores triturando cada nova liberação” (RAYMOND, 1998, p. 5). A ideia é que todo problema será transparente e de fácil descoberta pelo menos para alguém, então o desenvolvedor não precisaria ficar quebrando a cabeça para encontrá-lo, caso esteja, potencialmente, em contato com todos esses alguéns. Tenho sempre trabalhado com o Blender 3D porque ele não é somente um programa de computador, e sim, parte de um movimento social, o do software livre7.

Com causas comunitárias de cunho político, não somente técnico8; e criativo. Hoje

ele é sustentado por doações de seus usuários e pela venda de conteúdos

7 Movimento software livre. In: Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Movimento_ software _livre> Acesso em: 01/02/2018.

8 “The free software movement is a political cause, not a technical one.” (o movimento software livre é uma causa política, não técnica) declaração de Richard Stallman sobre a natureza do movimento, na lista de e-mail emacs-devel, em 2008. Disponível em < http://lists.gnu.org/archive/html/emacs-devel/2008-03/msg00635.html>. Acesso em: 01/02/2018.

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educacionais, culturais e artísticos relacionados. Sua história de desenvolvimento tem a ver com práticas colaborativas que surgiram por demandas de experimentações estéticas (e vice-versa), compartilhadas em rede: artista pedindo para programador criar uma nova ferramenta dentro do software, programador virando artista para testar as aplicações, e/ou artista sendo ensinado a programar para dar seus passos lá de dentro do coração do código livre e para conversar melhor com os programadores. Ou seja, qualquer um se transformando tanto em artista como em programador para concretizar seus sonhos em 3D, um cruzamento efervescente de encontros. Há quem diga que não está nem fazendo arte nem programação, mas que se envolve com tudo isso para tomar parte na discussão de como a ferramenta tem funcionado, para observar seu uso, para testá-la, para propor desdobramentos inusitados. Para contribuir nas sucessivas repartilhas do

sensível (RANCIÈRE, 2005) que essas construções coletivas demandam.

Acredito que, quando estudantes se arriscam em participar de movimentos colaborativos, tentando contribuir em algum fórum dedicado à solução de desafios de expressão que possam se relacionar com seus projetos de animação - ou com o desenvolvimento de um software que ajude nessa questão - eles tomam parte naquela autoria sugerida por Adriana Fresquet. Os movimentos podem ser desafiadores: pode surgir trollagem9, pode existir contradição, pode ser difícil de acompanhar, de lidar com gente e com máquinas, pode demandar uma intensa dedicação com destino incerto… Mas são problemas reais, cuja solução realmente afeta a vida dos envolvidos; do contrário, eles nem pisariam, voluntariamente, lá. Talvez, mergulhar neste tipo de aventura, pode fazer virem à tona experiências dignas de saciar aquela tal “fome de bife” [sic], mencionada por The Mentor (1986).

9 Trollar é uma gíria de internet que significa zoar, chatear, tirar sarro. Geralmente, consiste em brincar com os participantes de uma discussão num fórum da internet, através de argumentos sem sentido, com o intuito de provocar e perturbar a conversa.

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1. Alguns pontos de partida

1.1 Introdução a esta pesquisa-intervenção

Este projeto não é sobre arte (e é). Muito menos sobre tecnologia! (claro que é). É sobre criação. É sobre maquinações nas relações entre cinema e escola (MIRANDA, 2016). É sobre Mannequin Challenge, Bottle Flip Challenge, Gartic, o

Epic Sax Guy, o Filósofo Piton, etc. Sobre cinemática inversa nas hierarquias entre

articulações de personagens 3D e de algumas relações escolares. Sobre linhas

maleáveis e linhas de fuga. Sobre um cineclube que provocou a criação de

áudios-carta, de pixilations, de animações 3D, de um curta colaborativo e de memes, num lugar-escola. É sobre reconhecer vários mestres ignorantes (RANCIÈRE, 2015) dentro de uma mesma Sala de Informática.

Esta pesquisa durou dois anos, mas ela integra um estudo que existe desde 201010. Seu trabalho de campo foi de fevereiro a junho de 2017, quando ofereci a

realização de oficinas de criação de animações 3D para todos os estudantes da Escola Estadual Prof. Francisco Álvares (Campinas – SP). O convite propôs participação voluntária; 54 alunos se inscreveram, divididos em 4 grupos. Dois deles compostos por estudantes do sexto ao oitavo ano (turmas “A” e “B”) e da turma “B” do nono ano, do Ensino Fundamental. Os outros dois, formados por estudantes da turma “A” do nono ano, do Ensino Fundamental, e dos primeiros e segundos anos (turmas “A” e “B”), do Ensino Médio. Cada um dos 4 grupos tinha um encontro semanal, em dias/horários distintos entre si. Assim, eu articulava, a cada semana, 4 oficinas distintas (uma com cada grupo), na mesma escola. O propósito das atividades foi vivenciar experimentações estéticas escolares que se dessem na elaboração de animações 3D colaborativas utilizando software livre, e atravessadas por “dispositivos de criação de imagens”. Mas, o que seria esse tipo de dispositivo?

No filme Acidente (Cao Guimarães, 2006), por exemplo, uma das estratégias de abordagem do espaço foi submeter-se a um: a equipe de filmagem se impôs o desafio de visitar, pela primeira vez, 20 cidades mineiras mencionadas num poema. Sem saber o que iria encontrar/acontecer, embora precisasse estar com a “percepção aberta para deixar-se mesclar ao cotidiano de cada lugar e atenta para eleger um acontecimento qualquer, possível de se relacionar com o poema e capaz

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de revelar o quanto a vida é imprevisível e acidental”, como diz parte da sinopse do filme11. Cezar Migliorin aponta que este tipo de dispositivo pode ser: a introdução de linhas ativadoras em um universo escolhido. [...] uma de

extremo controle, regras, limites, recortes; e outra de absoluta abertura,

dependente da ação dos atores e de suas interconexões. Imaginamos o dispositivo como uma forma de entrada na experiência com a imagem sem que a narrativa e o texto estivessem no centro, nem as hierarquias fossem antecipadas, justamente porque o dispositivo é experiência não roteirizável e amplamente aberta ao acaso e às formações do presente. […] O dispositivo instaura uma crise desejada por quem dele participa. (MIGLIORIN, 2015, p. 78, grifo nosso).

Essas linhas de controle e de abertura12 podem ser trazidas para funcionar

dentro de um conjunto de trajetórias, provocando desvios, crises, linhas de fuga, impulsos de emergência. Na escola, nos inspiramos na maneira como foi criado o filme “A Paixão de JL” (Carlos Nader, 2015) para montar as linhas de controle e de abertura do dispositivo ao qual nos submeteríamos para criar nossas animações 3D. Na elaboração deste documentário, o diretor fez uma montagem com os áudios das fitas-diário gravadas (de 1990 a 1993) pelo artista plástico Leonilson e as sobrepôs com imagens de obras dele (Leonilson), além de videoclipes, filmes que circulavam na época, diversas imagens de arquivo (como reportagens televisivas nacionais e internacionais), etc.

Como é recorrente que a elaboração de animações 3D seja bastante centrada na imagem, quis atravessar nossas criações por linhas de controle que forçassem a atenção ao som: tanto no dos áudios dos filmes que assistimos, quanto no dos gravados pelos estudantes.

Em nossos projetos, foi a demanda de uma carta que mobilizou a comunidade escolar: os participantes montaram algumas sessões de cineclube no pátio e na Sala de Informática, para assistir a 3 fragmentos de “A Paixão de JL” e, após isso, cada um gravou um áudio-carta13 “endereçado” ao personagem Leonilson. Os 11 Sinopse disponível em: <http://www.caoguimaraes.com/obra/acidente/>. Acesso: 13/02/2018. 12 Ao longo do texto, mencionarei “linhas de controle” e “linhas de abertura”, extraídas desta citação de Migliorin, por estar trabalhando com a noção de dispositivo de criação de imagens a partir deste autor. Mas vale dizer que há proximidade conceitual dessas linhas com as “linhas duras” e “linhas maleáveis”, propostas por Deleuze e Guatarri em Mil Platôs vol. 3 (1996), que são parte do conjunto referencial utilizado por Migliorin.

13 Este material pode ser acessado através deste link:

<https://www.dropbox.com/sh/xnvibmejr6mk577/AAC-vZsTo77_Qu8AGsWc6oG1a?> ou solicitado através de contato enviado ao endereço anima3dlivre@gmail.com.

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arquivos de áudio foram compartilhados e ouvidos pelos participantes dos 4 grupos de oficinas. Cada um escolheu algum dos áudios-carta (sem ser o gravado por ele mesmo), fez sua montagem sonora, e teve que criar um conjunto de imagens que funcionasse com essa faixa de áudio. Essas imagens foram compostas a partir da busca, alteração e recombinação de elementos presentes em projetos .blend compartilhados nas plataformas “Blend Swap”14 e “Blender Cloud”15, além dos .blend feitos (inclusive de exercícios anteriores) por colegas dos 4 grupos.

Apostei em atuar numa escola pública por achar que interrogar o mundo a partir dela seja fundamental para uma sociedade democrática. Bem como, por acreditar que olhá-la a partir dos problemas cinematográficos – com seus modos de pensar o real e ser afetado por ele – talvez nos permita uma entrada especialmente rica nela, estética e politicamente falando:

Na escola o cinema se põe a trabalhar intensamente, nas formas de mostrar o que constitui a comunidade, seus poderes, identidades, normas, injustiças, mas também como prática que resiste a esses poderes, que se abre ao outro e participa de invenção da própria comunidade. (MIGLIORIN, 2015, p. 186).

Optei por me utilizar de pistas do método da cartografia para dar expressão aos conjuntos de forças que enfrentamos nos percursos desta proposta de vivência de cineclube e de criação de animação 3D livre na escola. Foquei no que encontramos numa escola hoje, das adaptações e das invenções envolvidas nos possíveis que emergiram de diversas situações e problemas. No entanto, de forma alguma abrimos mão de lutar por melhores políticas educacionais dedicadas ao trabalho com cinema e outras artes e tecnologias na escola. É preciso contarmos com uma equipe de suporte que ofereça tanto formação continuada para estudantes, professores e funcionários, quanto manutenção de equipamentos de produção, edição e de projeção; bem como, dispormos de múltiplos espaços de exibição. É imprescindível termos políticas públicas que endossem o uso de softwares livres na escola, possibilitando que as Salas de Informática deixem cada vez mais de ser meros espaços de navegação controlados

14 <http://www.blendswap.com/>. A plataforma será retomada no capítulo 4. Acesso: 13/02/2018. 15 <https://cloud.blender.org/welcome>. Também será retomada no capítulo 4. Acesso: 13/02/2018.

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por sistemas proprietários16 para operarem como laboratórios e estúdios de criação

de conhecimento, arte e cultura a partir do compartilhamento de projetos em formato de edição livres e de Recursos Educacionais Abertos (REA)17.

Desta forma, acredito que, por meio da cartografia, convidar o leitor a acompanhar as tensões e soluções que desbravamos ao lidar com as condições atuais, seja uma maneira vigorosa de pressionar para que elas mudem. Mas, não é só isso. Para além dos recursos e maneiras de se fazer que já conhecemos, vislumbro uma crença nesta pesquisa: de apresentar potências da escola (re)inventar o cinema, produzindo passagens genuínas, incendiando através dele. Que tipo de cineclube surge de um lugar com poucas possibilidades de escuridão e de silêncio? Que tipo de cinema surge do caldeirão de memes, piadas internas e afetos cozinhados entre estudantes, professores e funcionários que convivem no mínimo 4 horas por dia, durante vários anos seguidos? Quando se pode acessar, alterar e recombinar livremente projetos abertos, que cinema acontece entre pessoas que “ainda” (talvez nunca) não precisem necessariamente que suas criações agradem determinada fatia de mercado? A partir de dezembro de 2017 (ano passado), uma empresa de animação se tornou o maior conglomerado de mídia e entretenimento que existe18, dona de boa

parte de Hollywood e dos maiores estúdios de computação gráfica, televisão e cinema do mundo. Neste contexto, o que aconteceria com o cinema de animação se parte da sua produção mais assistida e compartilhada passasse a ser elaborada não só por um dos estúdios ligados a essa corporação gigante, e sim por um estudante de escola pública brasileira? E se, por ventura, esse estudante apostasse mais em gestos de experimentação do que num fazer direcionado a uma finalidade (a de provocar e/ou favorecer comportamentos de consumo específicos, por exemplo, algo extremamente frequente dentro da produção lançada pela indústria

16 Refiro-me a parceria entre órgãos públicos brasileiros da área de educação e empresas de software proprietário para gestionar o acesso dos estudantes ao sistema informático escolar. Este tipo de acordo também permite que essas empresas lidem com os dados pessoais, de desempenho e de rastros digitais desses alunos. Um software proprietário ou não livre é licenciado com direitos exclusivos para o produtor. Essas questões serão retomadas nos próximos capítulos.

17 Os REA são materiais de ensino, aprendizado e pesquisa em qualquer suporte ou mídia que estão sob domínio público ou são licenciados de maneira aberta, permitindo que sejam acessados, utilizados, adaptados e redistribuídos por terceiros. Mais informações em: <http://www.rea.net.br/site/>. Acesso: 04/01/2018.

18 Mais informações em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/The_Walt_Disney_Company>. Acesso: 13/02/2018.

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cinematográfica), será que daria visibilidade a um outro tipo de cinema? Será que faria o próprio cinema ser outra coisa? Desta forma, aqui, além de observar o que falta nas políticas públicas que afetam aquela escola em sua relação com o cinema, dedico minha atenção ao que nela, como comunidade, evidencia diferença e potencializa variação estética. No desenvolvimento desta pesquisa e de todas as experiências anteriores em que atuei como educadora e como pesquisadora, parto da igualdade das inteligências (RANCIÈRE, 2015). Mas não por considerar que essa igualdade está “dada”. Não, ela tem sido efetivada a partir do reconhecimento do lugar de fala e dos direitos de ver e de ser visto, de cada um dos participantes desses encontros. A partir dessa política, foi possível gerar uma reconfiguração do sensível – das possibilidades de ver, sentir, escutar e dizer – para verificar a plena capacidade desses sujeitos de inventarem com o mundo em que vivem: conhecendo, comparando, agindo e usufruindo dos sentidos humanos e das potências de suas comunidades, seja fazendo diferença dentro delas, seja sendo afetados por suas soluções e problemas. Aqui, partir desta ideia de igualdade é importante, pois, do contrário, correríamos “o risco de abstrair a possibilidade de um qualquer, com o grupo, com a comunidade, habitar o conhecimento.” (MIGLIORIN, 2015, p. 66). Segundo Rancière (p. 106), a emancipação intelectual é justamente essa verificação, por isso, ao longo deste texto, direi que não quero emancipar as pessoas a partir da apresentação de um conteúdo antes ignorado, visto que elas já

estão emancipadas. Mas emancipar o próprio cinema: como linguagem, como

prática social, como conjunto de elementos estéticos, etc. E, talvez, até algum aspecto dos conteúdos escolares que permeiem esse fazer cinema e suas criações. Emancipar o inumano. O uso de dispositivos seria um engajamento nessa emancipação.

1.2 Estrutura de capítulos e apêndices

A dissertação se apresenta através deste texto junto ao vídeo “Experimentações e Experiências” (24min50s, que faz parte do capítulo 6), além de quinze “áudios-carta a Leonilson” e um “áudio-carta às Crianças Ikpeng”. Este material pode ser acessado por meio da internet19. 19 Os “áudios-carta a Leonilson” estão disponibilizados neste endereço:

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Assim, o capítulo 6, está sendo apresentando parte em palavras parte em vídeo, pois este último não tem a função de ilustrar o texto ou de exemplificar o que ele diz, como um acessório; e sim, de compor o discurso da pesquisa junto. Por se tratar de um estudo que se utiliza da metodologia cartográfica para provocar e observar encontros, bem como para apresentá-los, algumas coisas estão sendo ditas somente através deste vídeo, ou seja, o presente texto não comporta e não dá conta. Por isso minha ênfase em considerá-lo parte fundamental, pois é preciso assisti-lo para acompanhar este trabalho. A princípio, as imagens foram captadas somente para fins de reflexão, como registro dos processos de criação envolvidos nas oficinas realizadas na Escola Estadual Prof. Francisco Álvares, em Campinas - SP. Depois, pela necessidade de mostrar essas dinâmicas como uma contrapartida aos pais e participantes, bem como para fins de acompanhamento da banca de qualificação e de mesas de discussões acadêmicas, foi editado para tornar-se um vídeo-caderno de campo. Por fim, uma nova versão dele resultou em um documentário, para exibições mais amplas: para todos as turmas da escola, seus professores e funcionários, bem como em situações externas, como para alunos da graduação em Pedagogia. As situações vividas não foram elaboradas e/ou ensaiadas para figurar na câmera, nem a escolha do que seria filmado foi pensada com a finalidade de compor um filme. No entanto, vale salientar que, ao passo que a montagem de seu conteúdo foi mudando, se tornou um dos filmes do cineclube que vivenciamos na escola, tendo sido exibido dezesseis vezes lá (em três dias). Assim, para além de um conjunto de registros, funcionou como uma ferramenta de pesquisa disparadora de conversas dentro da comunidade escolar. O vídeo e os áudios-carta estão publicados sob a licença CC BY-NC-ND20 da

Creative Commons21, permitindo que sejam assistidos e compartilhados por qualquer

<https://www.dropbox.com/sh/xnvibmejr6mk577/AAC-vZsTo77_Qu8AGsWc6oG1a?> e o “áudio-carta às Crianças Ikpeng” pode ser ouvido neste:

<https://www.dropbox.com/s/mwm4nimxnrng24t/audio_criancas_Ikpeng_.wav>. Já o vídeo “Experimentações e Experiências” não está listado publicamente no portal YouTube, só é possível assisti-lo através deste link:<https://youtu.be/KxNyZ6JSKy A>, e/ou solicitando acesso através de contato enviado ao endereço anima3dlivre@gmail.com.

20 Mais informações em <https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/>.

21 Organização não governamental sem fins lucrativos dedicada à flexibilização do compartilhamento de obras criativas, através de licenças alternativas, reconhecidas juridicamente. Mais informações em: <https://br.creativecommons.org/>. Voltarei a abordá-la no capítulo 4.

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pessoa que tenha os links, desde que os créditos sejam atribuídos aos participantes desta pesquisa, mas sem que o material possa ser alterado, nem utilizado para fins comerciais. Diferentemente da licença usada nos projetos criados e compartilhados entre os estudantes (a CC BY-SA 4.022, que é livre), escolhemos para este caso a

mais restritiva, por estarmos lidando com imagens de crianças. O vídeo está publicado através de um link “não listado” para limitar seu público preferencialmente aos leitores desta dissertação. Ao longo do texto, inseri alguns dos desenhos feitos para o caderno de campo de Rafael Ghiraldelli (licenciatura em Artes Visuais, Unicamp), que acompanhou parte das ações desta intervenção junto à estagiária Ursula Chirinian (licenciatura em Letras, Unicamp). Para preservar a identidade dos participantes das oficinas, os menciono através de apelidos, escolhidos por eles mesmos. A proposta inicial da pesquisa foi: “Na busca de tentar solucionar seus desafios de expressão - ao criar animações digitais com o software livre Blender 3D - os participantes compartilharão entre si seus projetos em formato de edição, ou seja, abertos a alterações. Em suas composições, eles incorporarão, também, elementos de outras ‘obras abertas’, disponibilizadas em plataformas de comunidades virtuais (como a Blend Swap) afinadas com práticas de cultura livre (LESSIG, 2005), e licenciadas em Creative

Commons”. Mas ela se transformou, articulando a criação de outros tipos de

animação, como a técnica pixilation23, e de um Mannequin Challenge24 inesperado, que surgiu por “pressão espontânea” de uma das gestoras da escola mais 30 estudantes travestidos (aproximadamente). Bem como, de um curta-metragem, o “Marekito Morreu”25, em que cruzamos princípios de desenvolvimento colaborativo

com o conceito de dispositivo de criação de imagens. Os capítulos 3 e 6 são relatos de experiência sobre o que aconteceu no trabalho de campo realizado de fevereiro a junho de 2017, na escola mencionada. Os apêndices 10.1, 10.2 e 10.3 são documentos referentes à proposta de intervenção aplicada lá e os capítulos 4, 5 e 7 apresentam conceitos e aspectos

22 Mais informações em: <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/>. 23 O termo será explicado no capítulo 7.4

24 O termo será explicado no capítulo 7.4

25 O vídeo “Marekito Morreu” faz parte do já mencionado “Experimentações e Experiências”, está na minutagem 22:09.

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teóricos que escolhi para abordar esses acontecimentos. Escolhi um dos trabalhos – o do “Gandalf Transante” - que teve a colaboração de vários dos participantes e que envolveu memes (uma das surpresas desta pesquisa), para abordá-lo com mais profundidade junto aos conceitos, no capítulo 7. Ele funcionou como um mapa, um rizoma (DELEUZE; GUATARRI, 1995), ou seja, não um produto de um sujeito, mas sim um encontro entre linhas, que passaram a se dispersar-derivar metamorfoseadas. Em outros projetos esse tipo de contágio e propagação também aconteceu, mas os mencionarei de maneira mais breve, para respeitar o que cabe numa dissertação. Já no apêndice 10.4, menciono palestras, oficinas e laboratórios que tenho articulado como educadora - utilizando somente softwares livres - desde 2010 até ingressar neste mestrado. As primeiras fundamentam o propósito deste último, bem como seu caráter de atuação. Sem elas, esta pesquisa não existiria. E, ao final, apresento atividades que ocorreram paralelamente e que são relacionadas a este trabalho, mas que não haviam sido previstas em seu projeto de candidatura. As três se referem a iniciativas de criação a partir de .blends compartilhados em comunidades virtuais: a oficina “Mitologia Afro-brasileira em 3D”, em Sorocaba – SP (novembro de 2016), a roda de conversa “A Canoa Caiçara: Modelando a partir das Linhas Tradicionais”, em Santos – SP (março de 2017), e a apresentação “Criação de Games com Software Livre através de Comunidades Virtuais” (abril de 2017) integrante do curso “Contos de Ifá: Capacitação em Design de Jogos e Ancestralidade”, em Olinda - PE.

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2. Pistas metodológicas

Cartografia

Na realização do trabalho de campo, recorri a procedimentos do método da cartografia - sob uma perspectiva de análise qualitativa dos dados - observando como os envolvidos lidavam com suas descobertas, como interpretavam e expunham referências e dúvidas que surgiam, como formulavam hipóteses e as aplicavam, bem como se convidavam à parceria de criação. Cartografar é acompanhar processos e lugares sempre em construção. O cartógrafo utiliza o que lhe servir de matéria expressiva para operar nos planos dos sentidos e das sensações, lançando mão de variadas fontes para dar visibilidade às intensidades vividas no mergulhar com o real, inventando pontes para fazer sua travessia.

A proposta foi guiada pela leitura do estudo "Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade" - organizado por Passos, Kastrup e Escóssia (2009) - que apresenta oito pistas a partir do conceito de cartografia apresentado por Gilles Deleuze e Félix Guattari na Introdução de Mil Platôs (1995). Elas formam um conjunto de referências e indicações, mesmo que sem predeterminar protocolos ou procedimentos. Através delas, encontrei caminhos que possibilitaram traçar uma configuração dizível da trajetória, bem como atuar em campo não apenas coletando dados, mas os produzindo. Assim, não só testemunhei como as experimentações influenciaram na ativação do imaginar - ao se construírem subjetividades nos fluxos em torno de si e do mundo – mas, também, intervi.

Para Passos e Barros, a pesquisa-intervenção é um método que, ao contrário de propor e aplicar regras, orienta uma atitude de abertura ao que vai sendo produzido, e de ajuste do caminhar a partir do próprio percurso. Sob esta perspetiva, estivemos atentos ao plano da experiência:

Considerando que objeto, sujeito e conhecimento são efeitos coemergentes do processo de pesquisar, não se pode orientar a pesquisa pelo que se suporia saber de antemão acerca da realidade: o know what da pesquisa. Mergulhados na experiência do pesquisar, não havendo nenhuma garantia ou ponto de referência exterior a esse plano, apoiamos a investigação no seu modo de fazer: o know how da pesquisa. O ponto de apoio é a experiência entendida como um saber-fazer. (PASSOS; BARROS, 2009, p. 18).

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múltiplas e singulares, que possam criar deslocamentos e expandir sentidos. Ao apresentar detalhes do trabalho de campo com expressões, paisagens e sensações, o coletivo se faz presente. Não um coletivo identitário, mas um coletivo que é um conjunto de forças.

A cartografia não se encerraria na finalidade de representar ou de reproduzir um real pré-existente, mas de construir e atualizar realidades, um real que está em devir. Este devir relaciona-se ao já mencionado conceito de rizoma, que se refere a algo que cresce de forma desordenada, de forma orgânica (como o tubérculo que lhe dá o nome), escapando da tentativa totalizadora, seguindo sempre outras direções. Não se trata de um formato fechado, mas sempre aberto, sempre em movimento e se deslocando com intensidade. O mapa que pretendemos criar aqui está próximo a esta noção de rizoma:

fazer o mapa, não o decalque.[...] Se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real. O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói. [...] Um mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre ao mesmo (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 19).

Escola como lugar

Esta cartografia acompanhou linhas de reverberação e transformação, pensando a escola menos como instituição e mais como lugar: como um encontro de múltiplas trajetórias, humanas e não-humanas, em permanente negociação. Um lugar que não nos chega pronto, não tem existência por si mesmo, “mas [onde] vamos construindo nossas imagens e nossas ideias acerca deste lugar e é com elas que nós o pensamos e nele agimos” (OLIVEIRA JR., 2011, p. 14). Que se configura num estar com, compondo-se enquanto acontecimento, gestado nas mutações das trajetórias que se conectam e ganham visibilidade nas práticas relacionais. Como também, nas invisibilidades do âmbito das sensações, de pensamentos e sentimentos que configuram possíveis (e que, a todo tempo, estão também se diferenciando).

O pensamento da geógrafa Doreen Massey, mesmo que sem tratar propriamente de cinema e/ou de computação gráfica, tem me ajudado a refletir sobre minha atuação como interventora num lugar-escola, bem como aguçado

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minha atenção sobre o uso de dispositivos para introduzir linhas ativadoras num universo escolhido. A autora indaga como poderíamos buscar uma imaginação alternativa para pensar o espaço junto a ações micropolíticas ligadas ao ordinário da vida social:

Penso que o que é necessário é arrancar o ‘espaço’ daquela constelação de conceitos em que ele tem sido, tão indiscutivelmente, tão frequentemente, envolvido (estase, fechamento, representação) e estabelecê-lo dentro de outro conjunto de ideias (heterogeneidade, relacionalidade, coetaneidade... caráter vívido, sem dúvida) onde seja liberada uma paisagem política mais desafiadora. (MASSEY, 2008, p. 34).

Uma questão importante para ativar e evidenciar o que já está circulando na escola. Isto é, para pensar as políticas envolvidas em seus atos cotidianos, nas misérias encontradas e transformadas nos percursos de uma educação menor26 e/ou

de uma geografia menor (a partir de Oliveira Jr., 2009) neste lugar; onde, a partir da “negociação das relações dentro da multiplicidade, um social é construído” (MASSEY, 2008, p. 35).

Uma educação pensada como menor, se compõe a partir do reconhecimento e da produção de singularidades e de diferenças, para além de modelos centralizadores impostos - e já instituídos - que se interessam em manter as estruturas de poder vigentes. Uma educação outra, gestada nas impossibilidades da já prevista. Uma geografia menor, por sua vez, estaria à margem das concepções de espaço que o consideram unicamente como extensão objetiva (que é a que predomina nos currículos escolares), ou seja, como uma superfície lisa onde se dispõem lugares variados, raramente sobrepostos. Uma geografia menor conceberia o espaço como aberto, heterogêneo e eventual, cheio de justaposições, uma multiplicidade de estórias-até-aqui-e-até-agora.

Considerando que uma educação espacial constitui a formação de um olhar sobre o mundo e as coisas, ela se desdobra numa educação visual. Pois as maneiras através das quais somos ensinados a interpretar e representar o espaço, como, por exemplo, os estudos referentes ao meio social que vivemos (a casa, a escola, o bairro, a cidade, nossos percursos cotidianos), direcionam como vemos e nos relacionamos com o que nos cerca. Assim, é um posicionamento político e

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estético reconhecer as intensidades que atuam na construção de lugares em movimento e arejados aos encontros, pois “trata-se de um mundo sendo feito, através de relações, e aí se encontra a política” (MASSEY, 2008, p. 37). É a partir da perspectiva de gestar geografias menores que vislumbramos experimentar a produção de animações 3D com um lugar-escola, de modo a vivenciarmos um processo de aprendizagem em aberto, apostando que esse movimento dispararia novas relações espaciais e, por conseguinte, novos modos de sentir, pensar e habitar aquele ambiente educacional. Mesmo que evidenciando esse caráter local, singular, não nos opomos à ideia de uma escola de alcance planetário, marcando seu espaço em rede. Sobre isso, aproveito para citar as palavras de uma terceira geógrafa, Leila Dias:

[...] associar contração das distâncias à negação do espaço revela uma perspectiva analítica reducionista – uma redução do espaço à noção de distância. [...] Observamos um espaço que se ordena em função de uma nova diferenciação que poderíamos caracterizar como a diferença entre o virtual e o real – a integração de todos os pontos do território pelas novas redes de telecomunicações, sem consideração de distância, só se materializa em função de decisões e de estratégias. [...] Neste sentido, as redes não vêm arrancar territórios 'virgens' de sua letargia, mas se instalam sobre uma realidade complexa que elas vão certamente transformar, mas aonde elas vão igualmente receber a marca. (DIAS, 1995, p. 156, grifo nosso).

Ademais, acreditamos que o cinema feito através da computação gráfica tem grande potencial de agenciar experiências espaciais, para além mesmo de seu caráter representacional ou de entretenimento.

Intervenção

Este capítulo 2 se desdobra nos capítulos 3 e 6, pois aqui apresento os princípios do método da cartografia que me guiaram, enquanto os outros dois pretendem traçar um mapa dos caminhos percorridos. Esses relatos tentam indicar e contextualizar os planos de forças e seus deslocamentos, como quando nomeio de “linha de ensino” a pressão que senti de uma das professoras sobre a possibilidade de abordarmos conteúdos curriculares nas oficinas de animação, por exemplo. Algumas coisas optei por mencionar somente através do vídeo “Experimentações e

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Experiências”, por isso digo que ele compõe o discurso do capítulo 6, em vez de ilustrá-lo.

O capítulo 7 também conversa com este bloco, pois reflete sobre o que surgiu a partir dos cruzamentos das linhas desse mapa, traçando, assim, mais caminhos. Um mapa inacabado, passível de fazer novas conexões a partir da sua capacidade de afetar, de produzir outros sentidos para o lugar que nele ganhou expressão, incitando-nos a “imaginar o espaço como sempre em processo, nunca como um sistema fechado, implica[ndo] insistência constante, cada vez maior, dentro dos discursos políticos, sobre a genuína abertura do futuro” (MASSEY, 2008, p. 31). Assim, ao longo deste capítulo, estou destacando as estratégias que elegi para intervir, em vez de apresentar detalhes sobre como coletei os dados do trabalho de campo: como organizei os relatos diários de seu caderno, suas fotos e vídeos de registro, além dos projetos .blend e áudios-carta criados por cada estudante. De qualquer maneira, esses procedimentos e o levantamento de seus números constam nos capítulos 3 e 6.

Para a escrita destes últimos, uma das referências foi a maneira como Cézar Migliorin (2015) apresenta, em “Inevitavelmente Cinema: Educação, Política e Mafuá”, algumas das oficinas que realizou no projeto “Inventar com a Diferença”27.

Neste sentido, optei por escrever através de um relato de experiência, como recurso que pudesse dar expressão às relações espaço-temporais tecidas nos encontros, me permitindo destacar elementos que talvez passassem despercebidos por outra forma de descrição. Pois sinto que precisei forçar a língua a dizer a partir de um “estilo”, que fizesse sentir as forças que nos atravessaram no percurso. Estilo não como algo individual, mas referente ao modo como as matérias de expressão se organizam para exprimirem o mundo. Como diz Oliveira Jr. - apoiando-se em estudos de Ana Godinho (2007) e Eugénia Vilela (2010) - estilo como uma maneira de testemunhar, como a criação de um intervalo entre o vivido e ele mesmo; onde o acontecimento vem se fazer linguagem, permitindo que, através dele, a rede cartográfica seja tecida também. Como um:

27 MIGLIORIN, Cezar; PIPANO, Isaac; GARCIA, L.; GUERREIRO, A.; NANCHERRY, C.; BENEVIDES, F. Inventar com a diferença: cinema e direitos humanos. 1. ed. Niterói: Editora da UFF, 2014.

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ato inaugural na e da linguagem, sendo algo aquém e além dela, o (im)possível a que se chega, não a partir de uma intenção prevista, mas que se encontra quando se é forçado a ir de encontro à linguagem para criar um ato-linguagem que escapa às palavras e significados já existentes. (OLIVEIRA Jr, 2015, p. 122).

Tentar manter reverberando no texto o que esteve vibrando nas experiências vividas na escola. Imersa na criação com o real, como cartógrafa, precisei deixar meu corpo estremecer com aquilo que me afetava, me deixando conduzir pelo inesperado da travessia pelo território, como ressalta Virgínia Kastrup:

a atenção do cartógrafo acessa elementos processuais provenientes do território – matérias fluídas, forças tendenciais, linhas em movimento – bem como fragmentos dispersos nos circuitos folheados da memória. Tudo isto entra na composição de cartografias, onde o conhecimento que se produz não resulta da representação de uma realidade preexistente. Mas também não se trata de uma posição relativista, pautada em interpretações subjetivas, realizadas do ponto de vista do pesquisador (KASTRUP, 2009, p.49).

Quis convidar à experimentação provocando encontros e acompanhando seus contágios. Encontro entendido como um ponto em que certa situação comum pode ceder lugar a uma configuração ou entendimento diferente. Não demarquei exatamente tudo o que gostaria que acontecesse, mas tracei pontos de partida -como vetores: dotados de ângulo, direção, sentido e módulo – com propostas de cruzamento, considerando que algo sempre pode sair dos parâmetros estabelecidos de início e abrir caminhos outros. Ao apostar na experimentação, intencionei desviar de verdades únicas e absolutas sobre o fazer audiovisual, bem como de expectativas sobre os processos de criação seguirem uma estética ou uma lógica pré-existente. Optei por uma imersão na experiência que agenciasse tanto sujeito como objeto, como também teoria e prática. Experiência pensada como um saber que emerge do fazer.

A intervenção com o cinema pode ativar e impregnar a escola, possibilitando transitar por novos jeitos de ser e estar no mundo. O cinema já habita a escola a muitos anos, não é novidade que nela se passem filmes: seja para preencher a vaga de um professor que faltou, seja para ilustrar o conteúdo de uma aula ou algo nesse sentido. A questão seria propiciar situações em que nos relacionemos com o cinema de forma mais ativa e mais sensível. Parafraseando o que foi dito naquela já

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mencionada palestra de Adriana Fresquet: para que o cinema na escola seja mais fértil, mais procriador, é preciso erotizar a relação do cinema com a escola, pois a educação é como uma mulher velha que existe desde que existe o mundo, enquanto o cinema é um jovem de pouco mais de cem anos. Então, o cinema poderia alagar a educação, para revitalizá-la, procriá-la. Não só com projeções de filmes, mas trabalhando com a imaginação, propondo exercícios que pensem e discutam a alteração de enquadramentos e de cenas.

Articulei todas as atividades deste trabalho de campo, seja como educadora, pesquisadora e/ou cartógrafa. Parte delas foram acompanhadas e tiveram intervenção de dois estagiários das licenciaturas na Unicamp: Rafael Ghiraldelli (Artes Visuais), com carga horária de 60 horas presenciais na escola e Ursula Chirinian (Letras), em 30 horas. Rafael esteve mais horas na escola por conta de seu estágio estar sendo acompanhado por 2 disciplinas, uma da Faculdade de Educação e outra do curso de Artes Visuais.

Ao partir da igualdade das inteligências, essa igualdade não quer dizer que meu papel é igual ao dos participantes das oficinas:

A emancipação do estudante não é uma igualdade de posição entre sujeitos, mas uma igualdade produtiva, fruto da produção do coletivo que não existe sem o trabalho e a igualdade de inteligências – a possibilidade de um sujeito qualquer fazer parte e diferença na criação. O lugar do estudante não é assim de reproduzir o que o mestre sabe, mas transitar nas formas que com o mestre, com a escola e com tudo que ele possui, lhe possibilita construir novos conhecimentos. (MIGLIORIN, 2015, p.71).

Mas vale salientar que trabalhamos sob a perspectiva de que a pesquisa não se processa como uma investigação realizada somente por um único pesquisador, mas pertence a todos os envolvidos no processo: como os estudantes, seus pais, os professores e os funcionários da escola, neste caso, mesmo que tensionando níveis hierárquicos que existam entre os colaboradores. A intervenção esteve aberta à multiplicidade de visões, num campo receptivo a discussões e a trocas de experiências. O que se quer fazer e como se pode fazer se construiu sem a ideia de uma diretriz curricular, preferindo lidar com o conhecimento de maneira transdisciplinar, propiciando aprendizagens pautadas por caminhos de questionamentos e experimentações.

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2.1 Áudios, cineclube e dispositivo como método: ver, produzir e discutir!

Para pensar a aplicação de dispositivos de criação de imagens funcionando na escola, consultei MIGLIORIN (2015), XAVIER (2005), e LINS (2007). Em “1.1 Introdução esta pesquisa-intervenção”, apresento uma noção de dispositivo a partir de Cezar Migliorin, através de linhas de controle e de linhas de abertura. Essas linhas podem ser deslocadas de uma situação de fazer cinematográfico para outra. Por exemplo, no exercício do dispositivo “Minuto Lumière”, proposto no projeto “Inventar com a diferença” é preciso realizar um plano de um minuto, com a câmera parada, sem utilizar zoom, nem considerar a captação de som. Dessa maneira, trazemos para tal realidade (atual) um contexto de cinema vivido pelos irmãos Lumière, no final do século XIX: câmera fixa sobre tripé, sem som e um plano de, no máximo, 53 segundos. Ou seja, essas linhas não são como regras de um jogo, somente. São forças que atuavam em tal situação de cinema e que podem ser trazidas para funcionar dentro de/com outro conjunto de forças, provocando desvios, crises, desterritorializações. Eles podem nos permitir ver e mostrar coisas do mundo que antes não pareciam disponíveis ao olhar.

Neste texto, estou chamando de “sessões de cineclube”, as exibições - que ocorreram em diversos espaços da escola - de fragmentos (escolhidos por mim) destes três filmes:

Avenida Brasília Formosa (Gabriel Mascaro / 2010/ 85min/ híbrido)

• Fragmento que vai da minutagem 00:18:31 a 00:20:46

Das Crianças Ikpeng para o Mundo (Kumaré, Karané e Natuyu Txicão /

2001/ 35min / Documentário), do projeto “Vídeo das Aldeias”28

• Fragmento 1 – de 00:04:45 a 00:07:20 • Fragmento 2 - de 00:22:45 a 00:26:37

• Fragmento 3 – de 00:31:17 a 00:35:02

A Paixão de JL (Carlos Nader/ 2015/ 82min/ documentário)

• Fragmento 1 – de 00:00:20 a 00:04:53 • Fragmento 2 - de 00:05:14 a 00:07:54

• Fragmento 3 – de 00:12:13 a 00:13:35

Referências

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