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4. Movimentos Colaborativos? Que recorte é esse?

4.2 Mas o que é esse “livre”, afinal?

Diz-se que um software é livre quando podemos utilizá-lo, copiá-lo, modificá- lo e redistribui-lo, sem limitações. Ou seja, se ele permite a seus usuários os quatro direitos (também chamados de liberdades) essenciais77.

Isso contrasta com o esquema de licenciamento da maior parte dos pacotes de softwares proprietários, nos quais temos permissão (geralmente sujeita a um pagamento) de somente executar o software, e em um único computador. Além disso, neste segundo caso, não é permitido fazer cópias, nem visualizar seu código fonte. O “Free Software” ou “Software Livre” possibilita uma liberdade incrível ao usuário final. Por seu código fonte ser universalmente disponível, existem muito mais chances de um problema (como um defeito) ser encontrado e consertado. A primeira publicação conhecida com essa definição de software livre foi feita na edição de fevereiro de 1986 do atualmente descontinuado “boletim GNU”, da

Free Software Foundation (FSF). GNU78 é um sistema operacional de software livre

completo, compatível com o Unix, seu anúncio inicial foi feito em 1983. GNU é um acrônimo recursivo que significa “GNU's Not Unix” (GNU Não é Unix). Já a GNU General Public License (Licença Pública Geral), GNU GPL ou simplesmente GPL, é a designação da licença para software livre idealizada por Richard Matthew Stallman em 1989, no âmbito da execução do projeto GNU. Em retorno àqueles quatro direitos mencionados, há algumas responsabilidades envolvidas em distribuir um programa com licença GPL, que são projetadas para

77 Mais informações sobre as 4 liberdades e a GNU/General Public License (GPL), em: <https://docs.blender.org/manual/pt/dev/getting_started/about/license.html>. Acesso: 31/01/2018. 78 Mais informações em “Visão Geral do Sistema GNU”, da Free Software Foundation. Disponível em: <https://www.gnu.org/gnu/gnu-history.pt-br.html>. Acesso: 31/01/2018.

proteger as suas liberdades e as liberdades dos outros:

• É preciso fornecer uma cópia da GPL com o programa, para que o destinatário esteja ciente de seus direitos sob a licença.

• É preciso incluir o código-fonte ou tornar o código fonte disponível gratuitamente.

• Se for modificar o código e distribuir a versão modificada, é preciso licenciar suas modificações sob a GPL e tornar o código fonte de suas mudanças disponível. (Não se pode usar código GPL como parte de um programa proprietário.)

• Não se pode restringir o licenciamento do programa para além dos termos da GPL. (Você não pode tornar um programa com licença GPL em um produto proprietário.)

Já o termo "código aberto" (open source, em inglês) foi popularizado pela organização Open Source Initiative (OSI) e se difere do que seria um software livre por não necessariamente respeitar as quatro liberdades essenciais. Qualquer licença de software livre já garante direitos suficientes para que seja considerada também de código aberto (Open Source), mas o contrário não é sempre verdade79.

Enquanto a FSF usa o termo "Software Livre" envolto de um discurso baseado em questões éticas, a OSI usa o termo "Código Aberto" sob um ponto de vista puramente técnico (a disponibilização do código-fonte), evitando, propositadamente, princípios relacionais (éticos) que envolvem direitos e demandam responsabilidades. Esta nomenclatura e este discurso foram cunhados pelo hacker Eric Raymond80 e

79 Mais informações sobre isso no artigo “Por que o Código Aberto não compartilha dos objetivos do Software Livre”, da Free Software Foundation, de 25 de Abril de 2014. Disponível em <https://www.gnu.org/philosophy/open-source-misses-the-point.pt-br.html>. Acesso: 31/01/2018. 80 Eric Steven Raymond é um hacker e escritor americano, autor de “A Catedral e o Bazar” (1998). Através desta publicação, Raymond popularizou a frase "Havendo olhos suficientes, todos os erros são óbvios" - que é o enunciado da “Lei de Linus” (que será mencionada posteriormente) - e foi, por alguns anos, frequentemente citado como um porta-voz extraoficial do movimento código aberto. Também foi responsável pela atualização do Jargon File (conhecido como Hacker's Dictionary e disponível em <http://www.dourish.com/goodies/jargon.html>), através da publicação New Hacker's

outros fundadores da OSI com o objetivo de apresentar o software livre a empresas de uma forma mais comercial.

4.3 Blender 3D

Um software "proprietário" ou não livre é licenciado com direitos exclusivos para o produtor. Conforme o local de sua comercialização, ele pode ser abrangido por patentes e direitos de autor, assim como limitações para a sua exportação. Seu uso, redistribuição ou modificação pode envolver proibições, ou requerer que se peça permissão. A expressão foi criada em oposição ao conceito de software livre. Vários softwares dedicados à algum tipo de elaboração cultural, tanto os proprietários quanto os livres, têm um formato próprio de edição. Por exemplo, o .docx, é um arquivo de edição nativo do software proprietário Microsoft Word81, que é

um processador de texto. Já o .blend é a extensão de arquivo de edição do software livre Blender 3D, programa dedicado à criação de animações 3D, jogos, efeitos gráficos, edição de vídeos, etc.

Do mesmo jeito que um projeto .docx pode produzir uma versão exportada em formato .pdf, um .blend pode gerar uma animação 3D, exportando um arquivo de vídeo (nas extensões .mp4 ou .avi, por exemplo). Este último processo, se chama renderização. É como se o .blend fosse o “código-fonte” do arquivo de vídeo que ele gerará. O termo código-fonte se refere a linguagens de programação de software, mas aqui estou fazendo uma analogia entre as linguagens de programação compiladas - que geram programas executáveis - com projetos .blend, que geram vídeos reproduzíveis a partir dos cálculos envolvidos no processo de renderização.

O Blender foi criado para atender as necessidades do estúdio holandês

NeoGeo Studio, cofundado por Ton Roosendaal, em 1988. Devido a problemas

financeiros, em 2002, Ton criou a Blender Foundation e iniciou uma campanha chamada “Free Blender” - para arrecadar €100.000 – pois, assim, seus investidores concordariam em liberar o programa como código aberto. A campanha arrecadou todo o dinheiro em apenas sete semanas. Em 13 de outubro de 2002, o Blender foi lançado sob uma licença dupla, a GNU General Public License (GPL) e a Blender

License (BL). Em 2009, Ton recebeu um Doutorado Honorário em Tecnologia pela

Universidade Metropolitana de Leeds, por sua contribuição à tecnologia criativa. Mas em 2009, a interface do Blender era feia e assustadora, de tão difícil de operar. Daí, pessoas de várias partes do mundo se juntaram para fazer um curta- metragem de animação independente chamado “Sintel” (Colin Levy/ 2010/ 14min/ Fantasia), um pretexto artístico que forçou o desenvolvimento colaborativo do programa radicalmente. Foi preciso quase que reescrever todo o software para criar ferramentas e recursos que dessem conta das necessidades estéticas que surgiram desse encontro. Hoje, 9 anos depois, o Blender já é reconhecido como o ambiente digital de criação 3D mais completo que existe, concentrando funcionalidades - modelagem, rigging, animação, composição, efeitos especiais, criação de jogos, edição de video, etc - que nenhuma outro programa é capaz e... cabendo em qualquer pen drive, de tão pequenino (sua versão mais nova “pesa”, no máximo, 300MB).

Antes disso tudo, foi lançada, em 2006, a Elephants Dream82 (Bassam Kurdali/ 9min30s/ Ficção científica), considerada a primeira animação 3D livre do mundo. A motivação de sua concepção foi provar – principalmente para os próprios desenvolvedores, artistas e apoiadores envolvidos – que era possível fazer um curta-metragem inteiro em 3D somente com o Blender e outros softwares livres, financiado através de doações, pré-venda do DVD e parcerias, e cujo lançamento seria através de uma licença Creative Commons (permitindo que qualquer um pudesse assistir, exibir, fazer download e remixar), junto com todos os arquivos de edição envolvidos nele (7 GB de dados). Ou seja, a obra poderia ser toda alterada e refeita, com a utilização somente de um computador e os arquivos mencionados. Curiosidade: sua renderização levou 125 dias, consumindo até 2.8GB da memória para cada frame. Atualmente, o Blender Institute está trabalhando no lançamento do

primeiro longa-metragem de animação livre do mundo, o Cosmos Laundromat83.

82 É possível assistir, fazer download do filme e acessar todos os arquivos envolvidos em sua produção em <https://cloud.blender.org/p/elephants-dream/55f2d0dd2beb33006e43dd86>. Já “Sobre o Elephants Dream” (em inglês), disponível em <https://orange.blender.org/background/>, é uma das referências em que ele é citado como “primeira animação 3D livre do mundo”. Acesso: 31/01/2018.. 83 Uma versão piloto (12 min), já foi lançada. É possível assisti-la, bem como ter acesso aos arquivos envolvidos em sua produção e acompanhar tutoriais e making ofs sobre como ela está sendo elaborada em <https://cloud.blender.org/p/cosmos-laundromat/>. Acesso: 31/01/2018.

Atualmente, o Blender 3D é desenvolvido pela Blender Foundation84, sendo suportado por vendas de conteúdos relacionados, como camisetas, livros, DVDs, etc85 e doações de sua comunidade, que se ajuda e se comunica através de portais

como o “Blender Brasil”86, o “Blender Total”87, o “Blender Artists”, o “Blender Guru”88,

o “Blender Nation”89, dentre vários outros. Além de plataformas como a “Blend Swap”

e a “Blender Cloud”, já mencionadas.

Mesmo sem ser um desenvolvedor do Blender, qualquer usuário pode estender drasticamente as funcionalidades do software escrevendo scripts na linguagem Python a partir de sua API (Application Programming Interface), que é livre e altamente integrada: ou seja, ela não dialoga somente com uma parte pequena dele, como acontece convencionalmente com vários programas. Uma API é uma espécie de língua franca através da qual nos comunicamos com um software, fazendo coisas serem executadas nele - como rotinas que têm a ver especificamente com o que acontece dentro de tal projeto - sem precisar interferir diretamente em seu código-fonte (e recompilar), embora sejam interações avançadas. É como se eu conversasse com o Blender para fazer funcionar um programinha dentro dele que automatizará tarefas e ajustará suas funções já existentes para instaurar regras relacionadas aos hábitos próprios do meu projeto de animação.

Pelo fato do Blender ser livre – ou seja, não somente de “código aberto” - sabemos que esse fluxo de interações que o transformam cada vez mais não poderá ser estancado por qualquer patenteamento, seja por parte de uma pessoa, uma empresa, uma instituição ou mesmo de uma política governamental. Ele é tipo uma praça ou uma horta pública... da qual fazemos questão de cuidar muito bem, pois cada contribuição que trazemos ao seu uso reverbera dentro da comunidade - dá aquela “tremida” - e volta, com inovações técnicas e estéticas multiplicadas. Quem participa dessa dinâmica, percebe o quão cheia de vida ela é.

84 Uma organização independente e sem fins lucrativos. Mais informações em: <https://www.blender.org/foundation/>. 31/01/2018

85 Mais informações em: <https://www.blender.org/get-involved/>. Acesso: 31/01/2018. 86 <http://www.blender.com.br/>. Acesso: 31/01/2018.

87 <http://blendertotal.com.br/>. Acesso: 31/01/2018. 88 <https://www.blenderguru.com/>. Acesso: 31/01/2018. 89 <https://www.blendernation.com/>.Acesso: 31/01/2018.

Quando digo que trabalho com computação gráfica numa escola pública, várias pessoas me perguntam:

– Nossa, quanto custa à escola usar um programa que faz animação 3D? Você leva seu computador para mostrar para eles? Os alunos não fazem nada?

– Não, eles fazem tudo o tempo todo, e o software é livre – … ah, que bom que o programa é gratuito, então!

Existem muitos softwares gratuitos por aí, mas trabalho com o Blender na escola não por ele ser “grátis”, mas por ser livre90. Emprestando frase de Stallman

(2002), fundador do Movimento Software Livre, não é como o “free” de “free beer” (cerveja “liberada”, grátis), mas como o de “free speech” (liberdade de expressão), ou como em “freedom” (liberdade). Isto é fundamental.

A maioria dos educadores com quem converso sobre software livre acha que este movimento luta para que “não precisemos pagar pelo software”. Mas o cerne da questão não é a gratuidade sobre o uso de uma criação fechada elaborada por uma empresa privada, ou mesmo por uma instituição ou política estatal. Faz todo sentido que as horas trabalhadas no desenvolvimento de um software sejam remuneradas (o que vale para qualquer outra criação cultural, técnica, artística, etc). E ainda sim a obra resultante desse trabalho pode ser livre, pois o que não faz sentido algum é restringir e controlar as decisões de qualquer usuário sobre seu uso (a não ser que ele queira torná-la fechada, enfim). Simplesmente porque este tipo de atitude mata a possibilidade essencial para uma linha de código (e, como produtora cultural, radicalizo/amplio para “qualquer pedaço de cultura”) de ser atravessada pelos olhos, pelos testes e pela edição por parte de outrem, por parte da diferença.

O software livre não é propriedade das iniciativas de mercado, nem do Estado, do terceiro setor ou mesmo da comunidade que o fomenta. É que ele é justamente tudo que pudermos imaginar (inclusive um conjunto imenso de autorias, todas devidamente creditadas e reconhecidas juridicamente), menos propriedade. Ainda pensando mais na importância do surgimento/emergência da diferença e menos em garantir “gratuidade”, bem como, valorizando o conceito de público como algo que não necessariamente esteja ligado a um Estado, provoco, trazendo uma

reflexão de Migliorin sobre escola pública (mesmo que ele não estivesse escrevendo sobre programas livres de computador):

A aposta na educação pública que passa não somente pela ideia de que ela é igualitária e gratuita, mas também pela ideia de que seu fim não é um sucesso privado organizado pelas grandes corporações ou pelo Estado, mas pela diferença, frequentemente caótica e inapreensível, mas que precisa de bases igualitárias e democráticas para se inventar em sua plena potência. (MIGLIORIN, 2015, p. 184).