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– PósGraduação em Letras Neolatinas

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Academic year: 2018

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VARGAS LLOSA REESCREVE EUCLIDES: UMA PROPOSTA DE BRASIL

por

Tarciso Gomes do Rego

(Aluno do curso de Mestrado em Letras Neolatinas)

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VARGAS LLOSA REESCREVE EUCLIDES: UMA PROPOSTA DE BRASIL

Tarciso Gomes do Rego

Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação

em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro Requisito para a obtenção do título de Mestre em

Letras Neolatinas. Área: Estudos Literários Neolatinos. Opção: Literaturas Hispânicas.

Orientador: Víctor Manuel Ramos Lemus

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FICHA CATALOGRÁFICA

REGO, Tarciso Gomes do.

VARGAS LLOSA REESCREVE EUCLIDES: UMA PROPOSTA DE BRASIL/Tarciso Gomes do Rego. Rio de Janeiro, 2010. Xx fls.

Dissertação(MestradoemLetras Neolatinas, Estudos Literários, opção Literaturas

Hispânicas). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 2010.

Orientador: Victor Manuel Ramos Lemus

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4 Vargas Llosa reescreve Euclides: uma proposta de Brasil

Orientador: Professor Doutor Victor Manuel Ramos Lemus

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas,

Área de Estudos Literários, opção Literaturas Hispânicas.

Aprovada por:

Presidente, Prof. Doutor Victor Manuel Ramos Lemus

Prof. Doutor Júlio Dalloz – UFRJ

Prof. Doutor Ronaldo Lima Lins – UFRJ

Prof. Doutor Ary Pimentel – UFRJ, Suplente

Prof. Doutor Luís Alberto Nogueira Alves – UFRJ, Suplente

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5 A todos os Severinos desta imensa terra que, de uma forma ou de outra, trabalharam e continuam trabalhando para torná-la menos Severina.

Aos Severinos que originaram a minha vida. Meu avô, João Severino do Rego, um típico Severino dentre os muitos que, com as mãos calejadas pela enxada e o rosto queimado pelo sol do Nordeste, trabalharam a terra para sobreviver, apesar do latifúndio. Meu pai, Manuel Severino do Rego, um migrante na cidade grande, outro Severino dentre os muitos que, com as mãos sujas de graxa e o macacão tomado pela ferrugem, ajudaram a construir a estrutura do Brasil industrial. Devo a ele minhas primeiras noções de História do Brasil e o início de minha consciência política e social.

A minha mãe, Geralda, a ela devo minhas primeiras noções de literatura quando, na segunda infância, pôs-me em contato com o cordel, transportando-me ao mundo da fantasia e da imaginação através das inúmeras histórias que me contava e

cantava, dentre as quais, o inesquecível “pavão misterioso”.

A minha avó, uma Maria, nome de luta, de força e de fé. Suas inúmeras histórias do nordeste também ajudaram a povoar a imaginação da minha infância.

A Benvinda Maria, minha esposa e companheira, também uma Maria, de muita luta, força e fé. Ela esteve sempre presente com sua compreensão e seu estímulo, principalmente naquelas horas em que a vontade de não seguir em frente na realização deste sonho parecia me dominar.

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AGRADECIMENTOS

Ao Professor Doutor Victor Manuel Ramos Lemus, agradeço o forte incentivo à participação neste curso, desde a Especialização, além da leitura detalhada e constante deste trabalho, a orientação segura, as muitas sugestões e, acima de tudo, a grande compreensão a mim dedicada no decorrer da confecção desta dissertação.

Ao Professor Doutor Júlio Dalloz, agradeço o apoio, iniciado também na Especialização, bem como os inúmeros conhecimentos referentes à literatura hispano-americana obtidos por mim a partir de suas exposições e indicações.

Ao Professor Doutor Ronaldo Lima Lins, agradeço o enriquecimento e o amadurecimento conseguidos a partir de suas aulas e da leitura da bibliografia por ele sugerida para a realização das mesmas, pois foram vitais para a culminância deste projeto.

Ao Professor Doutor Ary Pimentel, um agradecimento especial pelo incentivo, também desde a Especialização, bem como pelas sugestões oferecidas para esta pesquisa, pela vasta bibliografia apresentada e pelo crescimento obtido nos constantes debates fomentados ao longo de suas aulas.

Às Professoras Doutoras Maria Lizete dos Santos e Maria Aurora Consuelo Alfaro Lagorio, agradeço as primeiras observações a respeito deste texto, todas de suma importância para que eu pudesse desenvolvê-lo de forma organizada.

À Professora Bella Karacuchansky Josef, agradeço os muitos comentários sobre literatura hispano-americana, com ênfase para Vargas Llosa, dados importantes para que eu pudesse me aprofundar neste trabalho.

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7 À Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman, agradeço a descoberta da força do poder retratada nas obras de ficção, tema fundamental para o amadurecimento nas minhas reflexões sobre esta dissertação.

À Professora Doutora Cláudia Luna Ferreira da Silva, agradeço a ampliação dos meus conhecimentos sobre a literatura dos viajantes e exilados da América Latina.

A todos os meus companheiros de jornada, alguns que comigo estão desde a Especialização e outros que só recentemente chegaram, não importa, a todos meus sinceros agradecimentos por ter tido a oportunidade de compartilhar com eles os momentos mais marcantes na consecução deste objetivo.

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SINOPSE

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RESUMO

REGO, Tarciso Gomes do. Vargas Llosa reescreve Euclides: uma proposta de Brasil. Rio de janeiro, 2010. Dissertação (Mestrado em Literaturas Hispânicas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A presente dissertação tem o objetivo de mostrar como a interpretação feita por Mario Vargas Llosa sobre a guerra de Canudos pode nos trazer novas contribuições no que diz respeito ao papel da literatura como instrumento de análise do processo histórico. Neste caso, haverá uma ligação com a obra Os Sertões de Euclides da Cunha, visto ter o escritor brasileiro pretendido fazer uma abordagem objetiva do fato citado, com o intuito de criar uma proposta de construção do Brasil num momento em que a jovem República buscava auto-afirmação. Este trabalho mostra que, consoante com as perspectivas abertas pelos estudos da nova história e consolidado pela pós-modernidade, Vargas Llosa trouxe novos encaminhamentos para a compreensão deste episódio, tendo em vista a multiplicidade de representações criadas por ele com o intuito de apresentar o texto literário como repositório da subjetividade de uma época. Será destacado o fato de o romancista peruano ter sido um dos expoentes do chamado “boom” do romance latino-americano, momento em que os escritores desse grupo apresentavam uma literatura cujos postulados deveriam estar aliados a uma proposta revolucionária no aspecto político, econômico e social. Será enfatizada a idéia de, no caso de La Guerra del fin del Mundo, Vargas Llosa pretender questionar as chamadas verdades imutáveis e eternas, ressaltando que tudo é discurso e representação, o que conduzirá à conclusão de que, tal qual Euclides da Cunha, o escritor peruano também apresenta uma proposta de, neste caso, reconstrução do Brasil, estendendo-a, porém, para toda a América Latina.

Palavras-chave: Mário Vargas Llosa, Euclides da Cunha, Canudos, Literatura Peruana,

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ABSTRACT

REGO, Tarciso Gomes do. Vargas Llosa reescreve Euclides: uma proposta de Brasil. Rio de janeiro, 2010. Dissertação (Mestrado em Literaturas Hispânicas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

This thesis aims to show how the interpretation made by Mario Vargas Llosa about the war of Canudos can bring in new contributions regarding the role of literature as a tool for analysis of historical process. In this case, there will be a link with the work Os Sertões made by the Brazilian writer Euclides da Cunha, intended to make an objective approach to the fact mentioned, in order to create a proposal to build Brazil at a time when the newly created republic sought self-assertion. This work shows that, depending on the prospects opened up by new studies of history and consolidated by post-modernity, Vargas Llosa has brought new directions to understand this episode, in view of the multiplicity of representations created by him with the intention of presenting the text as a repository of literary subjectivity of an era. It will be highlighted the fact that the Peruvian novelist was one of the exponents of the so-called boom of Latin America novel, when the writers of this group had a literature whose principles should be combined with a revolutionary proposal in the political, economic and social aspects. It will be emphasized the idea that, in the case of La guerra del fin del mundo, Vargas Llosa wants to question the so called immutable and eternal truths, pointing out that everything is discourse and representation, leading to the conclusion that, like Euclides da Cunha, the peruvian writer also presents a proposal that, in this case, is a reconstruction of Brazil, extending it for all Latin America.

Key words: Mário Vargas Llosa, Euclides da Cunha, Canudos, Peruvian Literature,

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RESUMEN

REGO, Tarciso Gomes do. Vargas Llosa reescreve Euclides: uma proposta de Brasil. Rio de janeiro, 2010. Dissertação (Mestrado em Literaturas Hispânicas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Esta tesis tiene como objetivo mostrar que la interpretación hecha por Mario Vargas Llosa sobre la guerra de Canudos nos puede traer nuevas aportaciones con respecto a la función de la literatura como una herramienta para el análisis del proceso histórico. En este caso, habrá un vínculo con la obra Os Sertões del escritor brasileño Euclides da Cunha, pues es visible su intención de hacer un enfoque objetivo del hecho mencionado, a fin de crear una propuesta para la construcción de Brasil en un momento en que la República, muy joven todavía, buscaba su autoafirmación. Este trabajo demuestra que, en función de las perspectivas abiertas por los nuevos estudios de la historia y consolidado por la post-modernidad, Vargas Llosa ha traído nuevas orientaciones para entender este episodio, en vista de la multiplicidad de las representaciones creadas por él con la intención de presentar el texto como un repositorio de la subjetividad literaria de una época. Se pondrá de relieve el hecho de que el novelista peruano fue uno de los máximos exponentes del así denominado “boom” de la novela latinoamericana, cuando los escritores de este grupo hacían una literatura cuyos postulados tendrían que combinarse con una propuesta revolucionaria en las esferas política, económica y social. Se enfatizará la idea de que, en el caso de La Guerra del Fin del Mundo, Vargas Llosa pretende cuestionar las llamadas verdades inmutables y eternas, afirmando que todo es discurso y representación, lo que lleva a la conclusión de que, como Euclides da Cunha, el escritor peruano también se presenta una propuesta de, en este caso, reconstrucción de Brasil, que se aplicará también para América Latina como un todo.

Palavras-llave: Mario Vargas Llosa, Euclides da Cunha, Canudos, Literatura Peruana,

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SUMÁRIO

01.Introdução ... 14

02.Capítulo 1: Euclides e o Brasil do início da República ... 23

02.01. Os intelectuais e a Republica ... 24

02.02. Euclides e o conflito de Canudos ... 29

03.Capítulo 2: Vargas Llosa e o romance na América Latina ... 37

03.01. A trajetória intelectual de Vargas Llosa ... 38

03.02. Vargas Llosa e a construção da narrativa ... 45

04.Capítulo 3: Vargas Llosa, leitor de Euclides ... 51

04.01. Discussão do Novo Romance Histórico ... 52

04.02. Os personagens em Euclides e em Vargas Llosa ... 65

05.Capítulo 4: Vargas Llosa, Euclides e o Brasil de hoje ... 76

05.01. A literatura do pós-modernismo ... 77

05.02. A materialização das propostas burguesas ... 86

05.03. A proposta de Vargas Llosa e a de Euclides ... 92

06.Conclusão ... 98

07.Bibliografia ... 107

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HINO NACIONAL

Precisamos descobrir o Brasil Escondido atrás das florestas, com a água dos rios no meio, o Brasil está dormindo, coitado. Precisamos colonizar o Brasil. O que faremos importando francesas muito louras, de pele macia,

alemãs gordas, russas nostálgicas para

garçonettes dos restaurantes noturnos,

E virão sírias fidelíssimas.

Não convém desprezar as japonesas...

Precisamos educar o Brasil. Compraremos professores e livros, assimilaremos finas culturas,

abriremos dancings subvencionaremos as elites.

Cada brasileiro terá sua casa

com fogão e aquecedor elétrico, piscina, salão para conferências científicas. E cuidaremos do Estado Técnico.

Precisamos louvar o Brasil. Não é só um país sem igual. Nossas revoluções são bem maiores

do que quaisquer outras; nossos erros também. E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões... Os Amazonas inenarráveis... os incríveis João Pessoas...

Precisamos adorar o Brasil!

Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão no pobre coração já cheio de compromissos...

se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens, por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!

Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado, ele quer repousar de nossos terríveis carinhos. O Brasil não nos quer! Está farto de nós!

Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil. Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?1

Carlos Drummond de Andrade

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01. INTRODUÇÃO

OS SERTÕES

Marcado pela própria natureza O Nordeste do meu Brasil Ó solitário sertão De sofrimento e solidão A terra é seca,

Mal se pode cultivar

Morrem as plantas e foge o ar A vida é triste nesse lugar

Sertanejo é forte, Supera miséria sem fim Sertanejo, homem forte, Dizia o poeta assim.

Foi no século passado, No interior da Bahia

Um homem revoltado com a sorte Do mundo em que vivia

Ocultou-se no sertão, Espalhando a rebeldia Se revoltando contra a lei Que a sociedade oferecia

Os jagunços lutaram Até o final

Defendendo Canudos

Naquela guerra fatal2

Edeor de Paula

No último quarto do século XIX, começou a engatinhar no Brasil um processo de industrialização. A guerra civil americana ocorrida na década de 60 estimulou aqui a cultura do algodão, abrindo caminho para a indústria têxtil, setor que, gradativamente, tornar-se-ia muito importante durante boa parte do século XX. A decadência do trabalho escravo gerou uma sobra de capital que passaria a ser aplicado nesse nascente setor industrial. Junto a esse quadro, acrescente-se o crescimento da cafeicultura no oeste paulista e a chegada dos imigrantes, fatores que ajudaram a provocar grandes transformações na estrutura sócio-econômica do país, pois faria surgir uma mão de obra

(15)

15 assalariada e, de acordo com Florestan Fernandes, o “fazendeiro do café”.3

Ainda segundo o sociólogo, esse elemento, com o tempo, começou a se afastar do protótipo do senhor rural tradicional, adquirindo uma mentalidade burguesa, o que seria fundamental para fazer aumentar, posteriormente, o número de indústrias neste país.4 Esse quadro produziu, pouco a pouco, mudanças significativas no pensamento político das classes médias urbanas, as quais, influenciadas pelas notícias do forte progresso científico e material ocorrido na Europa, passaram a guiar o pensamento para novas formas de governo, supostamente mais condizentes com a Modernidade. Deste modo, muitos setores intelectuais e também da elite agroexportadora iniciaram, progressivamente, a retirada de seu apoio ao regime monárquico. Junte-se a isso o aumento do prestígio conseguido pelos militares após a Guerra do Paraguai, e estes, cada vez mais, numa maioria crescente, influenciados pelo pensamento positivista, viriam tornar-se defensores de um governo republicano centralizado.

Na última década desse século então, depois de um período de muitas convulsões, esses grupos conseguiram promover a tão ansiada mudança de regime. A Monarquia decadente dava seus últimos suspiros, abrindo caminho para o início da República, cujo nascimento fora estimulado pela já citada visão positivista presente nas forças armadas e em grande parte dos intelectuais brasileiros da época, dentre eles, a figura emblemática de Euclides da Cunha. Na verdade, havia sido um início muito difícil, já que a jovem República provinha de um processo de formação muito deficiente, carregando consigo séculos de abandono e de exploração, capazes de continuar trazendo desdobramentos posteriores. O surgimento da figura de Antônio Conselheiro, o crescimento de Canudos e a atitude desafiadora desse povoado rústico em relação ao novo governo atiçaram negativamente a imaginação da burguesia emergente do Rio de Janeiro, a então capital do Brasil. Exaltaram também os ânimos de boa parte do país, o que significa restringir-se ao litoral, não apenas no Sul e no Sudeste, mas, de certa forma, no Nordeste também. A presença de Euclides na região conflagrada e a posterior publicação de sua obra Os sertões, expondo à nação a tragédia de Canudos, mostrou ao país oficial, o Brasil do litoral, que o Brasil do sertão também existia.

Quase 80 anos depois, encontramos Vargas Llosa, escritor peruano, no sertão da Bahia, tentando recompor a epopéia de Euclides, reconstruindo pedra por pedra, tijolo

3

FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil, p. 103.

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16 por tijolo, madeira por madeira, taipa por taipa, o arraial de Canudos, corporificando Antônio Conselheiro e todos os personagens envolvidos naquele episódio marcante para a história do Brasil. A presença desse escritor, um dos maiores representantes do chamado “boom” do romance latino-americano, trouxe uma nova contribuição para o debate suscitado por Euclides quando da publicação de seu livro. Afinal, Vargas Llosa, cujos romances anteriores traçavam um painel da sociedade peruana ao longo do século XX, sempre se mostrara de acordo com a idéia da literatura participativa evidenciada por outros escritores latino-americanos, como Carlos Fuentes, Alejo Carpentier, Gabriel García Márquez, Julio Cortazar, dentre outros. Seus textos pareciam ratificar a intenção de denunciar a miséria, a opressão e a exploração, ou seja, tudo que mostrasse o absurdo da herança colonial ainda presente na América Latina. Pareciam ir mais além, já que, no auge da guerra fria, enxergavam-se, em seus escritos, propostas quase sempre afinadas com as profundas transformações sociais, econômicas e políticas necessitadas por esse continente.5

Além dos traços políticos e sociais, outro fator marcante na literatura de Vargas Llosa refere-se aos aspectos inovadores na construção do romance. A leitura de suas primeiras obras, como La ciudad y los perros, La casa verde e Conversación en la catedral põe o leitor diante de um formato gestado desde as primeiras décadas do século XX e que atingiria aqui, na América Latina, com os autores do “boom” já expostos no parágrafo anterior, um alto grau de elaboração. A ficção criada pelo escritor peruano assume essa herança, fazendo sobressair a subjetividade exacerbada de personagens que não passavam de peças da engrenagem da máquina capitalista. Destacava-se, neste caso, a figura do inadaptado à sociedade burguesa, o “perdedor”, enfim. Técnicas modernas de apresentação da narrativa foram utilizadas, causando estranheza a princípio para, depois, tornarem-se práticas correntes. O fluxo de consciência, os diversos planos narrativos, os vários pontos de vista com um grande número de narradores, o esvaziamento do tempo cronológico, todo esse arsenal de recursos foi largamente empregado por ele nestes romances iniciais, assumindo posturas narrativas amadurecidas ao longo desse século. Afinal, elas provocavam o leitor, faziam-no pensar na montagem e na construção do texto, aguçando-lhe os sentidos. E Conversación en la catedral parece ser o ápice da utilização desses métodos. Ao escrever La guerra del fin del mundo, entretanto, percebemos um abandono desses recursos aplicados por Vargas

(17)

17 Llosa, já que a estrutura desse romance é muito mais conservadora do que tudo que ele havia feito até então.

Na verdade, esta transformação na escrita desse escritor serve exatamente como metáfora para as mudanças também ocorridas em sua visão política, o que pode ser notado claramente em La guerra del fin del mundo. Quando da publicação desse livro nos anos 80, em plena era Reagan-Thatcher, muitos países da América Latina estavam numa fase de transição entre ditaduras de fundo fascista e uma democratização de cunho neo-liberalizante. Eram repúblicas em crise permanente, já que não conseguiam resolver seus problemas seculares. Havia uma falta de perspectiva muito grande, pois não se tinha idéia de como mudar tal estado de coisas. Se a chamada literatura do “boom”, de certo modo, trazia como componente algumas propostas com o intuito de provocar alterações de cunho social, La guerra del fin del mundo, de forma alguma se alinha com tal ideário, uma vez que, neste romance, Vargas Llosa parece assumir uma postura crítica em relação aos chamados “fanatismos de todo tipo”6

, incluindo, neste caso, o que ele pretende denunciar como “cegueira dos movimentos ditos de esquerda ou que, pelo menos, encampavam ideais de tal tipo”7

. Teria ele se rendido completamente à retórica da “nova ordem mundial” encabeçada por Ronald Reagan e Margaret Thatcher? Estaria ele acreditando que assumir a “modernidade” trazida pelo aprofundamento do processo de globalização seria a melhor saída para as repúblicas latino-americanas?

Uma leitura atenta do romance aprofunda essa convicção. Não se pode esquecer que Vargas Llosa volta ao início do Brasil republicano e, retomando Euclides, coloca o leitor diante do momento do nascimento da jovem nação. Cada personagem que vai se concretizando se assemelha, de certo modo, não apenas a observadores distantes, mas a cientistas ou, estreitando a metáfora, a médicos presentes no parto daquela “criança doente”. E cada um parece ter o remédio adequado para curar-lhe os males. Deste modo, a presença, logo no início da narrativa, de um personagem importante para o romance, Epaminondas Gonçalves, diretor do “Jornal de Notícias”, veículo mais importante de divulgação das idéias republicanas na cidade de Salvador, é bem exemplar, pois ele assume uma postura política nada diferente do que viria a ser posto em prática no Brasil ao longo do século XX, quando o chamado quarto poder passou a exercer uma influência muito forte na condução dos caminhos políticos do país.

6

MENTON, S. La nueva novela histórica , p. 69.

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18 O Barão de Canabrava, outro personagem fundamental, seria a antítese de Epaminondas. Metaforizando o período monárquico, estaria buscando uma saída honrosa, uma vez que poderia abandonar tranqüilamente o cenário, desde que alguns privilégios, seus e de sua classe, fossem mantidos. O Brasil, naquele momento, surgia com um ideário em tudo semelhante ao que seria fixado mais tarde pelo austríaco Stefan Zweig em seu livro lançado em 194l, intitulado Brasil: nação do futuro, precisando, então, libertar-se de uma série de práticas que ainda o atavam ao século XIX. Urgia trazer a modernidade, urgia concretizar os ideais de uma república que havia cantado “liberdade, abre as asas sobre nós” e que havia cunhado na bandeira nacional o lema positivista “Ordem e Progresso”. Mas como fazer para efetivar as promessas de uma república que realmente merecesse esse nome?

Em meio a todo esse processo, surgiu e cresceu o arraial de Canudos, provocando um grande questionamento. Afinal, o Brasil do litoral não conseguia entender como nem por que poderia ter surgido uma comunidade de fanáticos em pleno sertão. A intelectualidade republicana não conseguia entender como nem por que funcionaria uma comunidade destituída de todas as benesses da civilização moderna. Vargas Llosa, então, tenta encontrar respostas para isso, começando por apresentar os dois lados mais importantes da questão. E se Antônio Mendes Maciel, O Conselheiro, era visto como um fanático por todos aqueles que julgavam ser a república o remédio necessário para modernizar o Brasil, incluindo Euclides da Cunha, em La guerra del fin del mundo, esse personagem é objeto de uma análise muito mais ampla, muito mais complexa, embora a imagem do fanatismo não tenha sido descartada em nenhum momento. Já o coronel Moreira César não é poupado nem por Euclides e muito menos por Vargas Llosa, pois ambos atribuem o desastre de sua expedição à “cegueira fanática” desse personagem.

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19 como é apontada no romance, somente a morte do sedutor não seria suficiente para desagravar a honra manchada de um sertanejo. O fanatismo cego acabaria por destruir os dois.

É lógico que a figura de Antônio Conselheiro é de suma importância para o desenvolvimento de La guerra del fin del mundo. Sua capacidade de liderança e seu carisma são expostos de maneira contundente neste romance, levando o leitor a perceber por que motivos era capaz de aglutinar tanta gente em torno de uma causa. Suas idéias pareciam contrapor-se à lógica e à racionalidade do pensamento positivista então preconizado pela intelectualidade brasileira. Mas lá estava ele, destituído de tudo, numa postura considerada exemplar por aqueles que o viam, num ascetismo considerado comovente por aqueles que o seguiam, sendo, por isso mesmo, capaz de convencer quem dele se aproximava. Seu estilo de vida era coerente com suas exortações, daí a massa de seguidores que conseguira arrebanhar. Criou na comunidade de Belo Monte, ou de Canudos, para os republicanos, um ideal de moral atrelado ao bem, à bondade, à solidariedade e a compreensão, numa concretização da ética cristã. Acrescente-se a isso a religiosidade mística, uma idéia constante em grande parte do povo brasileiro, principalmente quando se pensa nos bairros pobres das grandes cidades ou nas vastas regiões do interior. Tais valores, impulsionados pelas palavras do pregador, brotaram e se desenvolveram com bastante força em Belo Monte, sendo o fermento que manteria a população local unida e disposta a resistir até o fim.

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20 da Libertação” levou muitos setores católicos para práticas políticas mais à esquerda. Estimulou-se então outra opção para a discussão do legado cristão, reforçando a conscientização do povo na luta por seus direitos e no incentivo deste a uma vida comunitária.

O catolicismo dominante, entretanto, começou a perder espaço para diversas seitas protestantes, cuja pregação de uma ética individual parecia muito mais alinhada às práticas políticas que sobressaíram a partir do predomínio do neoliberalismo. É preciso relembrar que tais seitas têm, quase sempre, origem nos Estados Unidos, e que, nesse país surgiu também, posteriormente, numa reação católica, uma variante desse pentecostalismo, que tanto sucesso faz hoje em muitos pontos da América Latina. Trata-se do movimento carismático católico, de fundo completamente conTrata-servador, pois valoriza o individualismo burguês, opondo-se de forma integral ao comunitarismo preconizado pela já citada “Teologia da Libertação”, cujos mentores e praticantes foram acusados de envolvimento político constante e de tentarem fazer uma ligação entre Cristianismo e Marxismo. É lógico que o crescimento descontrolado das grandes cidades, inchadas a partir da migração em massa, proporcionou a perda de referencial de muitos de seus habitantes, os quais, desamparados pelo movimento acelerado e constante da grande máquina do sistema capitalista, passaram a enxergar nessas práticas religiosas uma provável saída para seus dilemas, não apenas existenciais, mas financeiros também.

A esquerda tradicional começou a desconfiar dele, pois passou a enxergar em seus escritos a presença do espírito burguês, já que Vargas Llosa parecia abandonar a proposta de uma mudança de cunho político e social tão presente em seus livros iniciais, mostrando uma rendição total à ideologia neoliberal resultante da chamada nova ordem mundial. Ele parecia acreditar, também, que só a aceitação desses valores éticos já mencionados seria a única forma possível para produzir uma grande transformação na sociedade brasileira e, conseqüentemente, latino-americana. La guerra del fin del mundo explicita tal idéia, ratificando-a como a verdadeira força de Canudos. Por que não serviria para o Brasil também? Ou será que não deveríamos aprofundar a discussão e pensar numa outra proposta?

(21)

21 a postura daqueles que Nicolau Sevcenko chamou de os “mosqueteiros intelectuais”.8 De acordo com o crítico, esses homens de letras buscavam uma participação efetiva nos rumos do país, o qual, segundo eles, tinha, naquele momento, uma oportunidade única de ascender ao progresso tão desejado por todos, além de se firmar de um modo mais contundente no cenário mundial. Euclides da Cunha estava nesse grupo e pretendeu, ainda segundo Sevcenko, desenvolver “o exercício intelectual como atitude política”, já que acreditava fazer parte de um grupo de “Escritores-cidadãos”9.

No capítulo seguinte, observaremos a leitura de Os sertões feita por Vargas Llosa. Para que tal ocorresse, analisaremos a trajetória intelectual desse escritor, mostrando sua intensa participação, desde a juventude, nos destinos políticos e sociais do Peru. Focalizaremos a importância da leitura de Sartre como base de seu entendimento no compromisso com a sociedade e os acontecimentos vivenciados por ele. Ressaltaremos a subseqüente releitura de Camus como de suma importância para as mudanças que ocorreriam em seu pensamento posterior. Destacaremos, também, o quão fundamental foi para seu desenvolvimento, no que se refere ao aspecto literário, o conhecimento da literatura francesa, com destaque para Flaubert, além da descoberta de diversos escritores norte-americanos, William Faulkner à frente, todos de singular importância para a construção do romance moderno. Por outro lado, acompanharemos sua inserção nos grupos de esquerda, muito presentes no meio universitário ao longo da ditadura de Odría no Peru, seu desencanto com tais movimentos, até sua mudança de pensamento ocorrida a partir de meados dos anos 70, culminando com sua candidatura à presidência no final da década de 80, como líder e grande representante das idéias neoliberais que, naquele momento, pareciam dominar, não apenas o Peru, mas toda a América Latina.

Na seqüência, procuraremos mostrar como Vargas Llosa leu Euclides da Cunha, levando o estudo para o âmbito da discussão a respeito do “Novo Romance Histórico”. Frisaremos o fato de que o escritor peruano, como outros autores latino-americanos, todos frutos do “boom”, punham sua literatura como instrumento de análise dos aspectos sociais, históricos, culturais econômicos e políticos da América Latina como um todo. Cada um, evidentemente, voltava-se para seu país, seu povo, sua região, sua cultura, enfim. Mas havia uma ponte estabelecendo uma completa ligação entre eles. Vargas Llosa, inclusive, foi além, buscando em outros países, como o Brasil, por

8

SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 78.

(22)

22 exemplo, que é o caso de La guerra del fin del mundo, embasamento para sua proposta de mudança político-social nesta parte do continente. Estabeleceremos, então, comparação entre o tratamento dado ao tema e aos personagens em Euclides da Cunha e em Vargas Llosa, acentuando a diferença de objetivo entre os dois, pois se o primeiro achava que se estava atendo aos fatos históricos, o segundo assumiu claramente a proposta de estar criando um texto ficcional.

(23)

23

02. CAPÍTULO 1

EUCLIDES E O BRASIL DO

INÍCIO DA REPÚBLICA

AS CATAS (fragmento)

Que outros adorem vastas capitais Aonde, deslumbrantes,

Da Indústria e da Ciência as triunfais Vozes, se erguem em mágico concerto; Eu, não; eu prefiro antes

As Catas desoladas do deserto,

– Cheias de sombra, de silêncio e paz...

[...]

Não invejo, porém, os que se vão Buscando, mar em fora,

De outras terras a esplêndida visão... Fazem-me mal as multidões ruidosas E eu procuro, nesta hora,

Cidades que se ocultam majestosas Na tristeza solene do sertão.10

Euclides da Cunha

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24

02.01. OS INTELECTUAIS E A REPÚBLICA

D. QUIXOTE

Assim à aldeia torna o da triste figura Ao tardo caminhar do Rocinante lento; No arcabouço dobrado um grande desalento, No entristecido olhar uns laivos de loucura.

Sonhos, a glória, o amor, a alcantilada altura, Do ideal e da fé, tudo isto num momento, A rolar, a rolar, num desmoronamento, Entre risos boçais do bacharel e do cura.

Mas certo, ó D.Quixote, ainda foi clemente, Contigo a sorte ao pôr no teu cérebro oco, O brilho da ilusão do espírito doente;

Porque há cousa pior: é o ir-se a pouco e pouco Perdendo qual perdeste um ideal ardente E ardentes ilusões e não se ficar louco.11

Euclides da Cunha

O início da República trouxe muitas esperanças à incipiente burguesia brasileira, levando essa parcela da população, guiada pela visão positivista dominante na época, a preconizar um ideal de progresso, capaz de, por si só, produzir as mudanças necessárias para modernizar o país. É possível afirmar seguramente que, neste caso, a elite intelectual, pelo menos uma boa parte dela, havia participado da criação do novo regime e assumia o projeto de construção de uma nova nação. Esses intelectuais, oriundos da luta pelas causas abolicionista e republicana e de formação liberal, absorveram o desenvolvimento da vanguarda científica na área do conhecimento responsável pelo desenvolvimento material do continente europeu. O darwinismo, a revolução sanitária produzida pela microbiologia e as pesquisas no campo da física e da química aplicada haviam sido os germes da segunda revolução industrial, provocando um crescimento material jamais visto até então no velho continente. Eles passaram a se julgar responsáveis pelo encaminhamento na construção da república, acreditando que o modelo europeizante seria responsável pela elevação cultural e material da população.

Havia, no entanto, outro aspecto a ser considerado: o surgimento dos estados modernos havia provocado um forte nacionalismo, capaz de produzir, a curto prazo, uma crescente disputa hegemônica. O desenvolvimento das Ciências Humanas,

(25)

25 financiadas pelos Estados com o intuito de legitimar raça, história, língua, religião, tradições, dentre outros estudos, seria mais um combustível a ser acrescentado a essa visão nacionalista estimulada pela mentalidade burguesa, gerando a inclusão de teses racistas capazes de justificar, não apenas a supremacia do “mundo civilizado” sobre os “bárbaros”, mas também de uma nação sobre as demais.12

O resultado de todo esse processo deixou presente na memória da humanidade a tragédia provocada pelo grande paradoxo montado ao longo do século XIX: as conquistas científicas e materiais em contraposição às injustiças, às desigualdades e aos sofrimentos produzidos pela busca dessas conquistas. O ápice seria a mortandade provocada pelas duas grandes guerras que ocorreriam no século vindouro.

Não era de se esperar, igualmente, que essa sociedade tivesse tolerância com as formas de cultura e religiosidade populares. Afinal, a luta contra a “caturrice”, a “doença”, o “atraso” e a “preguiça” era também uma luta contra as trevas e a “ignorância”; tratava-se da definitiva implantação do progresso e da civilização.13 Evidentemente que o foco desses intelectuais, bastante influenciados pelas idéias provenientes da Europa, provocou uma série de atitudes capazes de manter imobilizadas as estruturas sociais herdadas do regime monárquico. Destaque-se, neste caso, o menosprezo à cultura popular e a intolerância diante de qualquer manifestação de religiosidade fora dos padrões aceitáveis pelo Estado.14 Cite-se como exemplo a perseguição aos praticantes das religiões de origem africana, aos capoeiristas e aos tocadores de violão. O carnaval era aceito, desde que seguisse o estilo da Belle Époque. Havia, evidentemente, uma panela de pressão sempre pronta a explodir, com maior ou menor intensidade, a qualquer momento, dependendo da situação, uma vez que as classes populares, acrescidas agora dos ex-escravos, ansiavam por ascensão econômica e participação democrática, o que lhes era tolhido.15 Nesse quadro de miséria social, a polícia reprimia de forma violenta e indiscriminada qualquer tentativa esboçada pela massa da população pobre de tentar fazer-se ouvir. Essa repressão se tornava ainda mais aguda quando, instigada pela imprensa, era direcionada para bêbados, supostos vadios e loucos presumíveis.16

12

BAUMAN, Z. Modernidade e ambivalência, p. 74.

13 SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 33. 14 Ibid., p. 32.

15

Ibid., p. 53-54.

(26)

26 A consciência da presença de ter um Estado sem possuir necessariamente uma Nação evidenciava-se cada vez mais. Isso causava uma preocupação muito forte nessas elites intelectuais, as quais, conscientes do poder das potências européias e de suas respectivas ações imperialistas na África e na Ásia, temiam uma invasão estrangeira ou, pelo menos, a perda da autonomia de uma parte do nosso território17. Era necessário, então, segundo o pensamento dominante nessa elite intelectual, um alinhamento com o mundo do progresso, o que implicava assumir posturas excludentes em relação à grande massa da população, formada em sua maioria por negros, morenos e mulatos. Deste modo, era fundamental uma europeização de nossa cultura e de nosso comportamento, com a conseqüente negação de tudo aquilo que remetesse a uma origem popular.

As reformas de Pereira Passos, prefeito do Rio de Janeiro no início do século XX, eram nada mais nada menos do que uma das concretizações mais importantes desse ideário. A destruição dos cortiços e a expulsão dos pobres e deserdados para os subúrbios faziam parte da assepsia utilizada pelas reformas promovidas por uma burguesia, que buscava a todo custo dar um toque cosmopolita ao Distrito Federal. Afinal, como poderia ser capital da jovem República uma cidade que, em muitos aspectos, assemelhava-se a um aglomerado qualquer presente em diversos pontos do continente africano ou asiático? A burguesia sentia-se envergonhada com a imagem constante daquela ralé grosseira e mal-educada. Um “choque de ordem” era necessário para impor normas ao coração do Brasil, afastando ou eliminando o “entulho humano”, que insistia em se fazer presente na vida diária. Tudo isso sob os aplausos de boa parte da nata intelectual, dentre os quais Olavo Bilac, o príncipe dos poetas, que se reunia na Confeitaria Colombo para extravasar a veia parnasiana diante dos holofotes da sociedade burguesa18.

Havia, entretanto, alguns intelectuais que não se deixavam levar pelo artificialismo dominante naquele ambiente. Dentre eles, estava Euclides da Cunha. Sua formação militar e seu autodidatismo moldaram-lhe o arcabouço cultural e embasaram-lhe o comportamento. O enciclopedismo difundido pelo Positivismo de Benjamim Constant, seu professor na Escola Militar, havia imprimido marcas profundas naquele jovem, cujos atos marcados por um desprendimento, muitas vezes considerado exagerado e até ingênuo, ao contrário da grande maioria, já o levara, ainda de forma prematura, no auge de seu ardor republicano, ao confronto direto com o regime

17

Ibid., p. 140.

(27)

27 monárquico. A posterior queda da Monarquia o reconduziria ao exército, mas seu espírito inquieto jamais o deixaria tornar-se um burocrata, preso a regras e disciplinas não consoantes com seu caráter. Ele também estava consciente do perigo representado por nosso imenso vazio territorial diante da gula imperial das potências do velho continente. Deste modo, ele acreditava que era de extrema importância conhecer o país e acelerar a colonização do interior. Para isto seria necessária a construção imediata de uma rede interna de comunicação viária, com o intuito de facilitar o deslocamento da população e das riquezas provenientes dessas regiões, proposta que se coadunava com a do Marechal Cândido Mariano Rondon, o qual, após ter sido nomeado chefe do Distrito Telegráfico de Mato Grosso, havia começado um trabalho de construção de linhas telegráficas com a finalidade de estabelecer algum tipo de comunicação entre o litoral e o grande e inexplorado território que se estendia ao longo do oeste e do norte do Brasil. A República deveria, de maneira urgente, concentrar seus esforços na integração do país.

Inicialmente, Euclides compactuava com a postura daquele grupo intelectual dominante, principalmente no que se referia ao apoio incondicional ao nascente regime republicano. Deslumbrado com o desenvolvido espetacular da Ciência e maravilhado com o que ele chamava de “esplendor da revolução vitoriosa”19

, ele acreditava piamente que a força do progresso científico e material desbravaria os caminhos da jovem república, conduzindo-a para o mesmo nível das nações européias.20 Desde modo, o escritor aceitava propostas de fundo racista, as quais viam aspectos extremamente positivos na chegada dos imigrantes, pois eles seriam fundamentais nessa caminhada para um futuro de transformações, cujo fim seria conseguir atingir o mesmo patamar dos países europeus.

Seus artigos contra o tratamento desumano dado aos prisioneiros na revolta da armada provocaram seu afastamento progressivo do exército, distanciando-o aos poucos do governo de Floriano e de todos aqueles que apoiavam o regime ditatorial conduzido pelos militares. O desencanto do escritor com aquele governo havia começado a engatinhar. Suas inquietações afloravam a olhos vistos, levando-o a um trabalho de campo poucas vezes concretizado por outros intelectuais. Começara a se apartar daquele ambiente, cuja mediocridade deixava-o desesperado. Segundo Sevcenko “o destino que se pode legar a um mosqueteiro é não incumbi-lo de nenhuma missão. Sua vida toda

19

SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 123.

(28)

28 perde sentido; sua condição existencial se dilui.” 21

Como podia a jovem república estar valorizando espertalhões de todo tipo, deixando no limbo algumas das melhores cabeças pensantes do país? Euclides da Cunha acreditava firmemente no modelo platônico, o qual preconizara um governo dos sábios.22 Para ele, investir na educação e em tudo aquilo que pudesse trazer para a sociedade as conquistas da civilização deveria ser o norte do governo republicano. Mas nada disso ocorria, e as contradições provocadas pelo jogo de interesses continuavam, numa constância e firmeza, para ele, exasperantes. “A ver navios! Nem outra coisa faço nesta adorável República, loureira de espírito curto que me deixa sistematicamente de lado..”23

Começou a percorrer o Brasil, num misto de engenheiro e jornalista, e, por isso mesmo, vendo, desbravando, trabalhando, criando, mas, principalmente, escrevendo, pois o poder da palavra escrita havia-se tornado um dos recursos mais importantes naqueles tempos em que o progresso se fazia presente.

O engajamento de Euclides o levaria a montar Rocinante, passos lentos e tardos, como o que havia conduzido o cavaleiro da triste figura. Afinal, só assim se poderia trilhar aquele Brasil gigantesco, mas com uma estrutura social e econômica perversa e excludente, sem falar nos sistemas viário e de comunicação, nenhum deles condizente com as necessidades que o país tinha para entrar na chamada modernidade. E como ele não apreciava “as multidões ruidosas”, começou a procurar, naquela hora, os locais, “as cidades, que se ocultavam majestosas, na tristeza solene do sertão”.24

Deste modo, ele assumiu o projeto de conhecer o país, desprezando a idealização européia tão valorizada pela maior parte dos intelectuais brasileiros naquele momento crucial de nossa história. Suas convicções, inúmeras vezes, caíram por terra, conflitando com seus valores e prejudicando, quase sempre, sua vida pessoal. Ele, no entanto, manteve seu projeto, brandindo uma lança precária e protegendo-se com um escudo assustadoramente frágil, mas investindo contra um inimigo que se mantinha inabalável. Urgia não perder as ilusões. Urgia combater. Importava mesmo, segundo Euclides, concretizar mudanças que pudessem conduzir o país aos trilhos do progresso, fazê-lo chegar à chamada modernidade.

21 Ibid., p. 93.

22 PLATÃO, A república. Livro VII 23

CUNHA, E. Cartas a Oliveira Lima. Apud SEVCENKO, N. p. 92.

(29)

29

02.02. EUCLIDES E O CONFLITO DE CANUDOS

PÁGINA VAZIA

Quem volta da região assustadora De onde eu venho, revendo inda na mente Muitas cenas do drama comovente Da Guerra despiedada e aterradora,

Certo não pode ter uma sonora Estrofe, ou canto ou ditirambo ardente, Que possa figurar dignamente

Em vosso Álbum gentil, minha Senhora.

E quando, com fidalga gentileza, Cedeste-me esta página, a nobreza Da vossa alma iludiu-vos, não previstes

Que quem mais tarde nesta folha lesse Perguntaria: “Que autor é esse

De uns versos tão mal feitos e tão tristes”?25

Euclides da Cunha

O conflito de Canudos, entretanto, provocou o temor do ressurgimento da Monarquia, e a idéia de um retrocesso iminente começou a povoar o imaginário social. Deste modo, era imprescindível combater as forças do “atraso” e do “obscurantismo”. Depois do fracasso da primeira força militar, uma segunda, bem maior, foi enviada para esmagar os “revoltosos”. A derrota fragorosa dessa expedição acendeu a luz vermelha nas hostes governistas. O Exército, instigado pela imprensa, enviou, do Rio de Janeiro, aquela que seria a terceira expedição. Comandada pelo Coronel Moreira César, militar acostumado a sufocar revoltas, tornara-se famoso pela brutalidade contra os adversários, pois, quando governara Santa Catarina, havia debelado a ferro e fogo a Revolução Federalista de 1894. Moreira César era o grande ídolo dos chamados jacobinos, grupo formado principalmente por jovens, dentre os quais muitos militares. Esse movimento atingiu seu apogeu em meados do governo de Floriano Peixoto, tendo como grande momento impulsionador a “Revolta da Armada” ocorrida em 1893, perdurando até 1897. Pode-se afirmar que a inspiração maior do “espírito jacobino” era o “florianismo”, pois sua saída da presidência em 1894, substituído por Prudente de Morais, um civil, havia legado uma série de inquietações no Exército, com muitos

(30)

30 pregando um governo “forte”, como o que havia sido liderado pelo “saudoso” Marechal de Ferro.

A derrota e a humilhação sofrida pela tropa comandada por esse oficial, possível sucessor de Floriano para os jacobinos, causaram uma surpresa muito grande em todo o território brasileiro. A comoção nacional foi bastante intensa e, instigada pela imprensa republicana, ocasionou vários motins e revoltas no Rio de Janeiro e na cidade de São Paulo. Euclides também sentiu o revés e, como os outros jornalistas, escreveu furiosamente contra aqueles “bárbaros”, chegando a comparar o processo de construção do regime republicano com os desdobramentos ocorridos na França após a revolução. Canudos seria a nossa Vendéia, e era necessário eliminá-la. A quarta expedição seria deslocada numa mobilização jamais vista em todo o país. Depois de uma luta árdua e sangrenta, o exército conseguiu, finalmente, invadir e destruir a “urbs monstruosa”, a “civitas sinistra do erro”,26

denominações dadas por Euclides a Belo Monte, a comunidade fundada por Antônio Conselheiro. Era uma opinião compartilhada pelas elites dominantes, como bem expressa uma carta do Coronel José Américo Camelo S. Velho, um dos maiores latifundiários do Nordeste, ao Barão de Jeremoabo, regozijando-se a respeito do massacre perpetrado pelo exército.

O tal monstro Vilanova fugiu encontrado na Formosa. Tranquilino monstro malvado pegado sangrado e queimado. Houve para mais de duzentos degolados de dois para três dias seguindo assim, e assim tem seguido. Muitas mulheres e crianças em Monte Santo, seguindo para Bahia para dar maior dispêndio ao Estado!! Que devia era tudo ser degolado, mas assim não quer o tal marechal, que diz retirar todas as forças deixando o sertão contaminado com mais de 2 a 3 mil jagunços; [...] Considero que agora vamos em perigo porque eles se reunirão em grupos para roubar. Já escrevi duas vezes ao tal ministro em vista do Oscar mandar-me dizer que oficiava ao tal marechal para ele dar-me força para desalojar a jagunçada de Massacará até Buracos.27

Euclides, no entanto, ao acompanhar o exército como repórter do jornal O Estado de São Paulo, começou a perder os conceitos elitistas, discriminatórios e racistas previamente adquiridos, pois, ao constatar de perto a vida dos sertanejos e ver seus problemas, conseguiu entender suas angústias e carências. Ele percebeu que Canudos apenas aglutinava os anseios de um povo não disposto a se submeter a uma república, cuja miopia a tornava incapaz de perceber o total abandono vivido pelos habitantes daquela imensa região. A explosão era inevitável; e ocorreu. As feridas se abriram, provocando o conflito entre o Brasil do litoral e o Brasil do sertão. Naquele momento,

26

CUNHA, E. Os sertões, p. 291

(31)

31 aquele Brasil das cidades, Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador à frente, buscaria, usando todos os meios a seu dispor, subjugar o Brasil do interior.

Na verdade, os moradores daquela região haviam sido excluídos do Brasil de esperanças, haviam sido descartados da expectativa alimentada por parte da elite intelectual e oferecido à classe média emergente dos já citados centros urbanos. Houve um encontro entre duas culturas muito diferentes entre si. Mas esse encontro, em vez de provocar união, causou um afastamento brutal e traumático. O sertanejo não quis abrir mão de seus valores e reagiu à aproximação daquela cultura alheia a seu “modus vivendi”, a qual procurava se apossar dele sorrateiramente. A presença de Antônio Conselheiro e sua pregação viriam a calhar naquela região “estranha”, pois o chamado progresso, tão entusiasticamente apresentado no Rio de Janeiro e em algumas capitais, estava apartado do homem do sertão. Afinal, o novo regime em nada havia alterado a estrutura fundiária do país, deixando aflorar o paradoxo de uma república liberal e discricionária, já que a oligarquia, como ocorrera no regime anterior, continuava a ditar as regras políticas, sociais e econômicas.

Quando da publicação de Os sertões, era pública e notória a proposta de Euclides da Cunha de traçar um “painel real” daqueles acontecimentos que estavam mexendo com o Brasil naquele momento. Sua presença como jornalista no lugar onde as ações se desenrolavam já dá o tom da pretensão desse escritor: ser legítimo representante da imprensa numa nova sociedade que surgia naquele Brasil de então e, como tal, ser fiel aos fatos. A linguagem jornalística representava na época o ápice da modernidade, numa sociedade que começava a se urbanizar aceleradamente, impondo um padrão cosmopolita à população. Sua formação positivista conduzia-o para uma trilha, a qual, para ele, conteria todos os elementos de uma mudança que tanto havia preconizado. Neste caso, a jovem República deveria impor suas diretrizes, eliminando tudo aquilo que simbolizasse o “atraso” e o “obscurantismo”.

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32 região de Contendas, todos criticando ou menosprezando aquela campanha, causaria nele, também, um impacto muito forte. O escritor chegaria a afirmar que aqueles “graffitti” eram “palimpsestos ultrajantes” feitos por “mercenários inconscientes, autores de um crime que em Canudos se cometem”28

. Seu deslocamento para Queimadas, sua visão dos aspectos geográficos locais e a imagem projetada pelos habitantes daquelas paragens aprofundaram esse choque, o qual se tornaria muito mais agudo a partir do momento em que conseguiu visualizar Canudos e presenciar a terrível carnificina que se desenrolava em seu entorno.

Fizera-se uma concessão ao gênero humano: não se trucidavam mulheres e crianças. Fazia mister, porém, que se não revelassem perigosos.

[...]

A degolação era, por isto, infinitamente mais prática, dizia-se nuamente. Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada. Não era a ação severa das leis, era a vingança. Dente por dente. Naqueles ares pairava, ainda, a poeira de Moreira César, queimado; devia-se queimar. Adiante, o arcabouço decapitado de Tamarindo; devia-se degolar. A repressão tinha dois pólos – o incêndio e a faca.

[...]

Ademais, não havia temer-se o juízo tremendo do futuro. A História não iria até ali.

[...]

A animalidade primitiva, lentamente expungida pela civilização, ressurgiu, inteiriça. Desforrava-se afinal.

Mas que entre os deslumbramentos do futuro caia, implacável e revolta; sem altitude, porque a deprime o assunto; brutalmente violenta, porque é um grito de protesto; sombria, porque reflete uma nódoa – esta página sem brilhos...29

A História, no entanto, estava lá, fixando os acontecimentos naquela “página sem brilhos”. Embora não o percebesse, Euclides estava levando ao resto do país uma imagem que ficaria para a posteridade. O massacre estava sendo denunciado, e sua motivação, questionada. De certo modo, ele estava mostrando que, na construção de uma nação existe a idéia da identidade nacional, através, não apenas da língua, mas também de toda uma assimilação cultural. Tal pode ser percebido na terceira parte da obra, chamada por Euclides de “A Luta”, quando este narra o embate encarniçado entre o exército e os jagunços de Antônio Conselheiro. A chegada dos soldados à região do conflito havia provocado neles um misto de torpor e apreensão, e a derrota das expedições anteriores em muito contribuía para esse quadro. Afinal, eles pareciam estar invadindo um país estrangeiro, longínquo, uma região desconhecido para eles. Eram viajantes estrangeiros na caatinga – terra estranha – lugar onde o inferno era absoluto,

28

CUNHA, Os sertões, pp. 685-686.

(33)

33 pois não havia alternativa. Eles eram apenas o braço executor do Estado, legítimos representantes da República, a qual não reconhecia os habitantes de Belo Monte, e seus moradores, sentindo-se completamente desterritorializados, também não a reconheciam. Esta, em sua cegueira congênita, havia entendido que aquele povo fazia parte de uma outra nação.

Está-se no ponto de tangência de duas sociedades, de todo alheias uma à outra. O vaqueiro encouraçado emerge da caatinga, rompe entre a casaria desgraciosa, e estaca o campião junto aos trilhos, em que passam, vertiginosamente, os patrícios do litoral, que não o conhecem.

Os novos expedicionários ao atingirem-no perceberam esta transição violenta Discordância absoluta e radical entre as cidades da costa e as malocas de telha do interior, que desequilibra tanto o ritmo de nosso desenvolvimento evolutivo e perturba deploravelmente a unidade nacional. Viam-se em terra estranha. Outros hábitos. Outros quadros. Outra gente. Outra língua mesmo, articulada em gíria original e pinturesca. Invadia-os o sentimento exato de seguirem para uma guerra externa. Sentiam-se fora do Brasil. A separação social completa dilatava a distância geográfica; criava a sensação nostálgica de longo afastamento da pátria.30

Na primeira parte de Os sertões, Euclides, demonstrando um profundo conhecimento geológico, destacou a influência do meio no comportamento das pessoas daquela região, conforme citação no capítulo IV, “As secas. Hipóteses sobre a sua gênese, As caatingas”31

. Na segunda, através de um estudo antropológico, ressaltou a questão do mestiço, do caboclo, como fundamental para a construção do modo de ser do jagunço. Era uma visão bastante carregada dos preconceitos dominantes naquele final do século XIX. Afinal, a mestiçagem seria responsável também pela religiosidade mística e indefinida do caboclo.

Não seria difícil caracterizá-la como uma mestiçagem de crenças. Estão ali, francos, o antropismo do selvagem, o animismo do africano e, o que é mais, o próprio aspecto emocional da raça superior, na época do descobrimento e da colonização. Este último é um caso notável de atavismo, na História.32

Mas ele teve a felicidade de perceber a integração daquele homem a um meio inteiramente adverso. A descrição do sertanejo agigantou a presença desse elemento aos olhos da sociedade brasileira de então, pondo por terra aquela visão preconceituosa a qual atribuía os males do país ao predomínio de uma sub-raça, oriunda de uma mestiçagem descontrolada. Afinal, Euclides, a partir de suas observações, estava afirmando, peremptoriamente, que aquele homem era, “acima de tudo, um forte”, pois “não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.” E acrescenta

30 Ibid., p. 677. 31

Ibid., p. 109.

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34 que esse homem “é desgracioso, desengonçado, torto”, resultando num “Hércules -Quasímodo”, neologismo que, por si só, reforça a antítese de um ser que concentrava em si “a fealdade típica dos fracos”. Mas “colado ao dorso do cavalo”, o sertanejo conseguiria realizar, segundo o escritor, “a criação bizarra de um centauro bronco” capaz de surgir rapidamente, concretizando a imagem de um homem cuja “compleição robusta ostentava-se, naquele momento, em toda a plenitude33.

Uma leitura atenciosa do livro nos leva a perceber a visão euclidiana a respeito do poder da palavra escrita como motor de progresso e transformação. Ele acreditava que a história deveria servir como consciência crítica do presente, mas a sua análise poderia ser usada também para transformar o futuro de um povo ou de uma região, como era o caso de Canudos. E melhor ainda, de todo o imenso Sertão. Deste modo, somente a chegada do conhecimento e das conquistas da civilização moderna a esses lugares poderia libertar o sertanejo de sua ignorância e de seu atraso. Questionou, também, algo diferente naquele momento, o uso desmedido e arbitrário da força militar para destruir um povoado nos confins do sertão. Sua obra provocou discussões acirradas na época, visto a pretensão da crítica em querer enquadrar todo trabalho escrito dentro de um parâmetro. Reportagem, ensaio sociológico, o que seria afinal aquele livro tão peculiar adentrando nossas Letras tão vertiginosamente?

Decididamente era indispensável que a campanha de Canudos tivesse um objetivo superior à função estúpida e bem pouco gloriosa de destruir um povoado dos sertões. Havia um crime inútil e bárbaro, se não se aproveitassem os caminhos abertos à artilharia para uma propaganda tenaz, contínua e persistente, visando trazer para o nosso tempo e incorporar à nossa existência aqueles rudes compatriotas retardatários.

[...] Fechemos este livro.

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.34

Euclides, um intelectual bastante atuante, preconizava a construção da Nação, consoante com o modelo republicano, daí ter procurado enfatizar sempre a importância de um projeto educacional para poder impulsionar o País e, conseqüentemente, modificar suas estruturas por completo. No caso de Canudos, o escritor diria posteriormente, numa reflexão amarga, porém consciente, que “a República não deveria

33

Ibid., p. 207.

(35)

35 ter enviado soldados, e sim mestres-escolas”35. Ele acreditava mesmo que tudo se resolveria com a inserção do Brasil nos moldes europeus, embasados, evidentemente, nos padrões cientificistas, recheados com a então dominante ideologia positivista. Sua percepção da realidade de Canudos havia-lhe produzido uma profunda desilusão com o regime ao qual havia dedicado sua vida desde os arroubos da juventude. “Não era essa a República dos nossos sonhos”36

, confessaria mais tarde.

A partir da realidade presenciada, entendeu que havia uma grande distorção, pois aquele Brasil tão defendido por ele desconhecia o que se poderia chamar de “um outro Brasil”. Urgia então denunciar a invasão de Canudos como um crime e mostrar que tudo aquilo havia sido uma carnificina inútil, uma vez que a única modernidade apresentada pela república naquele fim de mundo se materializava apenas nos modernos fuzis e na famosa “matadeira”. Por que, em vez disso, a República não havia levado àquelas pessoas a educação acompanhada das benesses científicas tão em voga naquele momento? Esta é a modernidade de Euclides: mostrar claramente que o Brasil oficial precisava descobrir o Brasil do abandono, que o Brasil da jovem República precisava transformar, de maneira urgente, o Brasil do atraso e da miséria.

Enfim, arrasada a cidadela maldita! Enfim, dominado o antro negro, cavado no centro do adusto sertão, onde o Profeta das longas barbas sujas concentrava a sua força diabólica, feita de fé e de patifaria, alimentada pela superstição e pela rapinagem!

Cinco horas da madrugada, hoje. Num sobressalto, acordo, ouvindo um clamor de clarins e um rufo acelerado de caixas de guerra. Corro à janela, que defronta o palácio do governo.

Uma escura massa de gente, na escuridão da ante-manhã, está agrupada na rua. Calam-se os clarins e as caixas de guerra. Há um curto silêncio. E, logo, dos instrumentos de hipercinesia, rompe, alto e vibrante, o hino nacional. É uma banda militar, que toca à alvorada, em frente do palácio, para celebrar ainda uma vez a grande nova, transmitida ontem à nossa ansiedade pelo telégrafo.

Todos os galos da vizinhança acordam, ajuntando o estridor de seu canto ao estridor das trompas da banda. Longe, um pedaço do céu, tocado de rosa e pérola, anuncia o dia.

Como é bom despertar assim, em pleno júbilo, já com o coração livre daqueles sustos dos dias passados, – quando a gente abrindo os jornais, sentia o coração pressago, cheio de medo, temendo o horror de novas catástrofes, de novos morticínios, de novas derrotas!

Enfim, assaltada e vencida a furna lôbrega, onde a ignorância, ao mando da ambição, se alapardava perversa! Enfim, desmantelada a cidadela-igreja, onde o Bom Jesus facínora, como um cura Santa Cruz de nova espécie, oficiava, tendo sobre o espesso burel a coronha da pistola assassina!... 37

35ABREU, Regina. O enigma da permanência. In: Revista de História da Biblioteca Nacional, nº47, p.

23.

36

Ibid., p. 23.

(36)

36 A crônica de Olavo Bilac exaltando a vitória do governo expressa o pensamento dos intelectuais da época, que viam Canudos com horror. Segundo Walnice Nogueira Galvão, as matérias jornalísticas que trataram do conflito podem ser classificadas em: representação galhofeira, representação sensacionalista, representação ponderada, mas todas contra Canudos38. Euclides também chegou a fazer parte desse grupo. Sua pretensão era ser fiel aos fatos; agir como o historiador; mostrar a verdade. Foi muito mais além, pois de suas páginas emergiu um painel de nossa terra e de nossa gente, construindo uma epopéia até então ausente em nossas Letras. Só que ele queria ver uma coisa, mas conseguiu enxergar outra. E dessa realidade vista, criada e projetada por esse grande escritor, Vargas Llosa criará sua realidade, transformando-a e transfigurando-a. Mantendo-a, porém, pois é possível reconhecer muito de Os sertões em La guerra del fin del mundo.

(37)

37

03. CAPÍTULO 2

VARGAS LLOSA E O ROMANCE

NA AMERICA LATINA

A pesar de su orientación decididamente marxista, Vargas Llosa no es un militante político. “Después de la injusticia”, dice, “lo que más detesto es el dogmatismo”. Además, agrega, en el Perú, donde seis millones de personas – el 50% de la población –no votan, la “política” es una caricatura. Sin embargo, lo angustiaba la posibilidad de tener que someterse a los intereses minoritarios de una prensa o una radio que podría servir sin mala conciencia. Lo que importaba era poder escribir, y para ese propósito le convenía perfectamente París, aunque como a todos los exiliados, lo obsesionaba el problema del lenguaje. Lo perseguía a diario, dice, el temor de perder el contacto con el español. Pero en su caso el peligro no llegó a ser nunca inminente. Leía y trabajaba en español, y en cierta forma, dice, el exilio, la sensación de ser un extranjero en una sociedad lingüísticamente hermética, hasta intensificaba, “apasionaba” su relación con su idioma materno. 39

Luis Harss

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