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– PósGraduação em Letras Neolatinas

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Academic year: 2018

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

DISCURSIVIDADES EM CONTATO NO JOGO DE INTERAÇÃO FILME-ESPECTADOR EM AULAS DE ESPANHOL LÍNGUA ESTRANGEIRA

Julia Caldara Pelajo

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Julia Caldara Pelajo

DISCURSIVIDADES EM CONTATO NO JOGO DE INTERAÇÃO FILME-ESPECTADOR EM AULAS DE ESPANHOL LÍNGUA ESTRANGEIRA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Linguísticos Neolatinos)

Orientador: Prof. Doutor Antonio Francisco de Andrade Júnior

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PELAJO, Julia Caldara

Discursividades em contato no jogo de interação filme-espectador em aulas de Espanhol Língua Estrangeira/ Julia Caldara Pelajo. –Rio de Janeiro: UFRJ/ CLA, 2015.

vii,241f.:

Orientador: Antonio Francisco de Andrade Júnior

Dissertação (mestrado) – UFRJ/ CLA/ Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas, 2015.

Referências bibliográficas: f. 152-154

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Julia Caldara Pelajo

DISCURSIVIDADES EM CONTATO NO JOGO DE INTERAÇÃO FILME-ESPECTADOR EM AULAS DE ESPANHOL LÍNGUA ESTRANGEIRA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como um dos requisitos necessários à obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Linguísticos Neolatinos – Opção: Língua Espanhola)

Aprovada em 9 de março de 2015.

_______________________________

Prof. Dr. Antonio Francisco de Andrade Júnior (UFRJ)

_______________________________

Prof. Dr. Antonio Ferreira da Silva Júnior (UFRJ)

_______________________________

Prof. Dra. Vera Lucia de Albuquerque Sant’Anna (UERJ)

(5)

RESUMO

DISCURSIVIDADES EM CONTATO NO JOGO DE INTERAÇÃO FILME-ESPECTADOR EM AULAS DE ESPANHOL LÍNGUA ESTRANGEIRA

Julia Caldara Pelajo

Resumo da Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Linguísticos Neolatinos)

Esta dissertação pretende apresentar resultados de uma pesquisa de campo que objetiva analisar, em aulas de Espanhol LE, as interações discursivas entre enunciadores situados em diferentes contextos socioculturais. Utilizando a metodologia da pesquisação (Moita Lopes, 1996), em uma instituição escolar federal, localizada no Estado do Rio de Janeiro, são apresentados os filmes “Un cuento chino” e “El hombre de al lado”, ambos argentinos, aos alunos de duas turmas do 1° ano do Ensino Médio. A partir da perspectiva da Análise do Discurso, com ênfase especial para as noções de formações discursivas (Foucault, 2008) e ressonâncias discursivas (Serrani, 2010), são examinados os sentidos construídos na interação filme-espectador e os movimentos de aproximação e distanciamento dos estudantes em relação às práticas enunciativas que se realizam nos filmes, a fim de compreender como os alunos brasileiros interagem com uma discursividade em língua estrangeira e, mais especificamente, com as discursividades próprias do contexto argentino. Para tal exame, são analisados questionários, transcrições das gravações em áudio e debates travados em sala de aula a partir dos filmes, produções resultantes das atividades desenvolvidas neste âmbito, além de entrevistas com estudantes.

Palavras-chave: Discurso, Interação, Ensino/Aprendizagem de Espanhol/LE, Cinema, Argentina/Brasil.

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ABSTRACT

DISCOURSES IN CONTACT WITH THE INTERACTION BETWEEN MOVIE AND SPECTATOR IN SPANISH FOREIGN LANGUAGE CLASSES

Julia Caldara Pelajo

Abstract da Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requesitos necessários à obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Linguísticos Neolatinos)

This paper intends to present the results of a field study that aimed to analyze in Spanish classes the discursive interactions between enunciators located in different socio-cultural contexts. Using the methodology of participatory action research (Moita Lopes, 1996), in a federal educational institution located in the State of Rio de Janeiro, Argetinian films were presented to students from two classes in the 1st year of high school. From the perspective of discourse analysis, with particular emphasis on the notions of discursive formations (Foucault, 2008) and discursive resonances (Serrani, 2010), the meanings constructed in the movie-viewer interaction and the students’ movements of approach and distancing in relation to the enunciative practices that take place in the movies are examined in order to understand how Brazilian students interact with a discourse in a foreign language and, more specifically, with the discourses found within the Argentinian context. For this examination, questionnaires, transcripts of audio recordings and debates from the classrooms about the films, productions resulting from activities under this heading, as well as interviews with students, were analyzed.

Kew-words: Discourse, Interaction, Spanish Education, Movies, Argentina/Brazil

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SUMÁRIO

Introdução - - - 10

I. As formações discursivas enquanto sistemas de dispersão - - - 14

1. Operando com a noção de formações discursivas em aulas de línguas - - - -14

2. A ordem do discurso - - - -15

2.1. Os procedimentos de controle do discurso - - - 16

2.2. Procedimentos de sujeição do discurso - - - 16

3. A Arqueologia do Saber - - - 18

3.1. Regras de formação - - - 21

3.2. A formação dos objetos discursivos- - - 22

3.3. Formação das modalidades enunciativas - - - 26

3.4. A formação dos conceitos- - - -27

3.5. A formação das estratégias- - - -29

3.6. Sistema de dispersão- - - - - - -30

II. Ressonâncias discursivas no Ensino do Espanhol no Brasil- - - 34

1. O privilégio do aspecto lexical no ensino de ELE - - - 34

2. Gêneros do discurso em sala de aula: contradições entre a prática e a teoria- - - 36

3. Leitura: paráfrase e polissemia - - - -40

4. Ressonâncias discursivas e alteridade - - - 42

III. Brasil e Argentina: comunidades imaginadas- - - 46

1. Discurso fundador e espaços de identidade- - - 46

2. A nação imaginada- - - 47

3. O surgimento das ficções-diretrizes na Argentina- - - -48

3.1. Criollos: uma disputa entre elitistas e localistas na América espanhola - - - 49

3.2. O desenvolvimento das cidades argentinas - - - 49

3.3. Buenos Aires e a formação da burguesia portenha - - - 50

3.4. O paternalismo e a liberdade de discordância - - - -52

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3.6. O surgimento do populismo argentino - - - 54

3.7. O elitismo e as instituições sociais na Argentina - - - 55

4. O surgimento das ficções-diretrizes no Brasil - - - 56

4.1. Ausência de uma hierarquia organizada e desordem social - - - -57

4.2. A identificação dos portugueses com o Brasil - - - 58

4.3. O ruralismo e o desenvolvimento das cidades coloniais - - - -58

4.4. A família patriarcal e o nascimento do homem cordial - - - 60

4.5. Hipóteses explicativas - - - -- - - 61

IV. Filmes: realidade-ficção e memórias discursivas - - - 66

1. Realidade-ficção e memória pública - - - 66

2. A cinematografia e suas texturas - - - 69

2.1. Cinema e montagem - - - 69

2.2. A montagem no roteiro - - - 70

2.3. Montagem na realização - - - 71

2.4. A montagem propriamente dita - - - 74

3. O eu, o outro e a interação discursiva através dos filmes - - - 74

3.1. O enunciado e a alternância dos sujeitos do discurso - - - 75

3.2. Ecos, ressonâncias e assimilações da palavra do outro - - - 76

4. Fabricando realidades nos filmes “Un cuento chino” e “El hombre de al lado” - - - 77

V. Em sala de aula: analisando os dados - - - 88

1. A pesquisa-(em)-ação - - - -- - - -- - - -88

2. Perfil sociocultural dos alunos - - - - - - 89

3. O processo em sala de aula - - - 90

3.1. Motivação - - - 91

3.2. Introdução - - - 92

3.3. Visualização - - - 94

3.4. Interpretação - - - 95

3.5. Debate - - - 95

4. Análise das atividades escritas desenvolvidas na etapa da interpretação - - - 96

5. Análise dos debates orais desenvolvidos em sala de aula - - - 122

(9)

Considerações finais - - - - - - 148

Referências Bibliográficas - - - -152

Anexos - - - 156

Anexo1: Modelo do questionário - - - -- - - 158

Anexo 2: Modelo do termo de consentimento - - - -162

Anexo 3: Reportagens utilizadas na motivação do filme “Un cuento chino” - - - 166

Anexo 4: Reportagem utilizada na introdução do filme “Un cuento chino” - - - - 182

Anexo 5: Atividades Didáticas de Interpretação - - - 186

Anexo 6: Convenções das transcrições - - - 200

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Introdução

Esta pesquisa tem como objetivo analisar os processos de interação discursiva motivados por atividades relacionadas à utilização de filmes argentinos em contexto escolar de ensino/aprendizagem de Espanhol Língua Estrangeira (ELE), a partir da perspectiva da Análise do Discurso, com ênfase especial para a noção de formações discursivas, desenvolvida por Michel Foucault (2008), e para a noção de ressonâncias discursivas, desenvolvida por Silvana Serrani (2010). Para tal, foi realizada, ao longo de seis meses, uma pesquisa em uma instituição escolar federal, localizada no Estado do Rio de Janeiro (RJ), nas aulas de Espanhol ministradas pela própria pesquisadora. Tendo em vista essa condição, foi utilizada a metodologia da pesquisação, que pode ser definida pela atuação do pesquisador não somente enquanto aquele que olha com determinado distanciamento, ou seja, que observa, mas, também, enquanto aquele que conduz às ações, refletindo constantemente sobre elas.

A presente pesquisação consistiu na apresentação dos filmes “Un cuento chino” (2011) e “El hombre de al lado” (2009) aos alunos de duas turmas do 1° ano do Ensino Médio. Partindo do princípio de que quem vê um filme está em atividade de compreensão de um texto que mistura modalidade oral e escrita, linguagem verbal e não verbal, buscou-se, então, examinar, através de atividades realizadas a partir dos filmes, os sentidos construídos na interação filme-espectador em contexto pedagógico e os conflitos entre os diferentes gestos de leitura perceptíveis a partir do posicionamento dos alunos. Além disso, tendo em vista que quando lemos (ou interagimos com qualquer texto, seja ele impresso ou audiovisual) em uma língua estrangeira, entramos em contato com outras formas de estruturar as significações do mundo, e, portanto, com outras formações discursivas (Serrani, 2010), através da análise dos movimentos de aproximação e distanciamento dos estudantes em relação às práticas enunciativas que se realizam nos filmes argentinos, buscou-se avaliar o processo de interação dos alunos com as discursividades próprias da segunda língua e encontrar os possíveis fatores envolvidos no processo de adesão e/ou resistência em relação ao discurso do outro. Para tal exame, foram analisadas as transcrições das gravações em áudio dos debates travados em sala de aula a partir dos filmes, as produções resultantes das atividades desenvolvidas neste âmbito, as entrevistas feitas com os alunos e questionários respondidos por eles.

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de formação discursiva, proposta por Foucault, devido à importância que sua concepção de discurso possui nesta pesquisa. O autor compreende o discurso enquanto práticas que obedecem a determinadas regras, como um conjunto de enunciados que se apoia em um mesmo sistema de formação, o qual é entendido sempre como contingente e variável. Esta concepção implica jamais admitir qualquer discurso fora do sistema de relações materiais que o estruturam e o constituem. Trata-se da existência de sistemas de procedimentos ordenados que têm por fim produzir, distribuir, fazer circular e regular enunciados, e se ocupa em isolar o nível das práticas discursivas e formular as regras de produção e transformação dessas práticas.

No segundo capítulo, levando em consideração que o ensino do Espanhol no Brasil, desde a década de 90 (quando, então, começou a ocupar um espaço significativo no país) vem sofrendo mudanças, buscou-se observar, através do olhar de alguns pesquisadores da área, como Fanjul e Celada & González, algumas concepções de língua e de ensino predominantes ao longo das últimas duas décadas. Verificou-se, então, a existência de práticas que não levam em consideração as dimensões culturais, sociais e discursivas envolvidos no processo de ensino/aprendizagem de LE. Deste modo, buscamos expor a relevância destas dimensões nas propostas de trabalho com a leitura em sala de aula e no processo de construção/produção dos sentidos. Além disso, também foi exposta a noção de ressonância discursiva, desenvolvida por Silvana Serrani (2010), com a qual trabalharemos nesta análise das interações dos alunos brasileiros com os filmes argentinos. Serrani, a partir de pesquisas que vem desenvolvendo em torno das tendências discursivas do Espanhol rioplatense e do Português do Brasil, afirma que, no contexto brasileiro, predominam formações discursivas de transição, caracterizadas por um modo de enunciar através de mecanismos implícitos, ao passo que, no contexto argentino, predominam formações discursivas de abrupção, caracterizadas por um modo de enunciar explícito. De acordo com a autora, essas ressonâncias discursivas são atravessadas por fatores sócio-históricos de formação de ambos os países, constituindo-se como memórias discursivas.

No terceiro capítulo, a fim de estabelecer uma análise comparativa entre as discursividades próprias do contexto argentino e brasileiro, foi realizado um exame das semelhanças e diferenças histórico-culturais e sociais de ambos os países. Para colaborar com a reflexão acerca do surgimento de uma nação, foram abordadas as noções de discurso fundador (Eni Orlandi), comunidades imaginadas (Anderson Benedict) e ficções-diretrizes

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conflitos, dentre os quais destacamos a rivalidade entre a cidade de Buenos Aires e as demais províncias do país, visto que estas últimas almejavam conquistar sua independência frente ao domínio e soberania dos portenhos. Já no Brasil, a partir das pesquisas desenvolvidas por Sérgio Buarque sobre as raízes do Brasil, verificou-se que há uma tendência por parte dos brasileiros em evitar o conflito nas relações interpessoais e estabelecer laços afetivos, devido ao modo de convívio rural e patriarcal, regido pelos valores da família, dominante na história do país. Ao final, levando em consideração esses fatores, foram estabelecidas hipóteses explicativas em torno da predominância das formações discursivas em cada um dos contextos socioculturais analisados.

No quarto capítulo, partir da noção de realidade-ficção, desenvolvida por Josefina Ludmer, discutiu-se acerca dos limites entre a realidade e a ficção, com o objetivo de compreender de que forma as discursividades produzidas nos filmes utilizados nesta pesquisa estão atravessadas por formações discursivas próprias do contexto argentino atual. De acordo com a autora, as obra literárias, assim como as cinematográficas, produzidas a partir do século XX, possuem uma memória pública e atual, denominada fábrica de realidade, que ordena tanto as ficções como a realidade, desfazendo as fronteiras estabelecidas, ao longo dos séculos, entre essas duas esferas. Além disso, foi feita uma exposição acerca das características próprias dos textos cinematográficos, uma vez que a compreensão de sua estrutura é fundamental para o trabalho didático com este material. Buscou-se, também, fazer uma breve demonstração da concepção dialógica da linguagem, proposta por Bakhtin, a fim de contribuir para a reflexão acerca dos papéis ocupados pelos sujeitos na interação discursiva. Ao final, foi feita uma descrição dos filmes utilizados nesta pesquisa para que o leitor possa se situar em relação às realidades argentinas produzidas nos filmes, aos temas abordados e ao contexto em que se desenvolvem as ações.

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I

As formações discursivas enquanto sistemas de dispersão

Antes de dar início à análise das interações ocorridas em aulas de ELE, a partir da utilização de filmes argentinos, cabe elucidar algumas noções do âmbito teórico pelo qual permeia esta pesquisa que estarão aqui continuamente presentes. Primeiramente, serão abordadas as noções de discurso e de formações discursivas, desenvolvidas pelo filósofo francês Michel Foucault. Observaremos, então, que, em cada contexto sociocultural, predominam determinadas formações discursivas que atravessam os enunciados proferidos pelos sujeitos de determinado campo discursivo. Assim, no espaço de ensino/aprendizagem de LE, não somente há o contato entre duas línguas e duas culturas, mas também entre diferentes formações discursivas. Compreende-se que criar a consciência do aluno em relação à condição de produção de discurso é importante para que ele possa pensar, através do contato com o outro, o seu próprio entorno social e o seu lugar de enunciação. Perceber que todo comentário, por exemplo, está submetido a um conjunto de regras anteriores a ele, dará oportunidade ao aluno de se posicionar em sala de aula em uma condição não mais alienante.

1. Operando com a noção de formações discursivas em aulas de línguas

Silvana Serrani, ao trabalhar com a noção de formações discursivas em suas pesquisas acerca do ensino de leitura nas aulas de línguas, define-a enquanto um “sistema de valores” (1997) que estão impregnados na língua; enquanto “condensações de regularidades enunciativas no processo – constitutivamente heterogêneo e contraditório – da produção de sentidos no e pelo discurso em diferentes domínios do saber” (Ibidem). Para a autora,

operar com a noção de formação discursiva permite melhor descrever e explicar o funcionamento de um dos dois momentos cruciais para observar como a língua estrangeira vem incidir na relação amplamente inconsciente que mantemos com a língua fundadora, a saber: os modos diferentes de construir as significações em línguas distintas. (Serrani, 1997, p.3)

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discurso do outro, e relacioná-los aos processos sócio-históricos de formação das regularidades enunciativas, a fim de depreender o funcionamento dos sistemas de valores próprios de cada língua-cultura.

2. A ordem do discurso

Na conferência A ordem do discurso (1970), Foucault centra a discussão em torno dos variados procedimentos que regulam, controlam, selecionam, organizam e distribuem o que pode e o que não pode ser dito. Tais procedimentos irão estabelecer aquilo que é verdadeiro e aquilo que é falso, pois, segundo o autor, os discursos, em si mesmos, não são nem verdadeiros nem falsos. Assim, são os enunciados dentro de cada discurso que estabelecem um regime de verdade, num tempo e espaço determinados. Cabe dizer que, para Foucault, um enunciado não é qualquer coisa dita: ele é um tipo especial de um ato discursivo, uma vez que constitui um campo de sentidos que devem ser aceitos numa rede discursiva, segundo uma ordem. Assim, tendo em vistaque, desde o momento em que o sujeito pratica o discurso, ele está submetido a certas regras que determinam tudo aquilo que pode ser dito e relembrado em um dado período histórico e em uma dada sociedade; tendo em vista que os sujeitos que discursam fazem parte de um campo discursivo; tendo em vista que aquele que enuncia um discurso traz em si uma instituição e manifesta uma ordem anterior a ele, na qual ele próprio está imerso; esta pesquisa compreende que aquele que enuncia um discurso no campo da sala de aula manifesta uma ordem, ou seja, conjunto de regras anteriores.

Consideramos este tema importante para a formação e prática do professor, uma vez que ele nos propõe enxergar que por detrás de todo discurso, por detrás de toda instituição, existe uma vontade de verdade que se impõe a nós há bastante tempo. Compreendendo isto, o professor se torna ainda mais capaz de refletir sobre suas ações e sobre as ações dos alunos em sala de aula, sobre o que está sendo dito (e não-dito) por ele e pelos alunos, sobre os regimes de verdade que são estabelecidos nos enunciados, sobre as regras a que o sujeito que pratica o discurso está submetido, sobre os poderes que os enunciados ativam e colocam em circulação, sobre as práticas discursivas que os enunciados descrevem. Enfim, compreendendo que somos sujeitos assujeitados, se conquista a possibilidade de não se

assujeitar (pelo menos por algum instante), de se tornar um sujeito crítico e “contornar essa

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2.1. Os procedimentos de controle do discurso

Segundo Foucault, os três grandes sistemas de exclusão que atingem o discurso são: a palavra proibida (interdição), a segregação da loucura (oposição razão e loucura) e a vontade de verdade (oposição do verdadeiro e do falso). Todas essas separações “são arbitrárias, ou ao menos se organizam em torno de contingências históricas; que [...] estão em perpétuo deslocamento; que são sustentadas por todo um sistema de instituições que as impõem e reconduzem; enfim, que não se exercem sem pressão” (Foucault, 2009, p.13-14).

Além dos procedimentos de controle do discurso que se exercem do exterior, existem outros procedimentos internos em que os discursos exercem seu próprio controle. São eles: o comentário, o autor e a organização das disciplinas. Por estarmos diante de práticas discursivas reveladas nos discursos que circulam nas aulas da disciplina Língua Espanhola, abordaremos, apenas, a organização das disciplinas. Segundo Foucault, “uma disciplina se define por um domínio de objetos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos.” (Idem, p. 30). Cabe dizer que, para o filósofo, uma disciplina não é tudo o que pode ser dito de verdadeiro sobre alguma coisa: uma proposição deve preencher exigências complexas para pertencer ao conjunto de uma disciplina; deve encontrar-se “no verdadeiro” do discurso de sua época. Porém, “não nos encontramos no verdadeiro senão obedecendo às regras de uma ‘política discursiva’ que devemos reativar em cada um de nossos discursos” (Idem, p. 35).

A disciplina LE presente na grade curricular atual das escolas comportou, durante muito tempo, somente as proposições sugeridas pela gramática normativa e repele as demais proposições sugeridas pelos alunos e por outros pesquisadores da área. Assim, somente eram aceitas como verdadeiras as proposições que obedecem a determinadas regras. Ao longo da nossa história, muitos pensadores rechaçados em sua época somente tiveram seus discursos reconhecidos como verdadeiros posteriormente, quando mudaram as regras que se constituíam os objetos e os conceitos. Em sala de aula, observamos que o mesmo se dá: muitas proposições formuladas pelos alunos são repelidas e invalidadas pela disciplina.

2.2. Procedimentos de sujeição do discurso

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não satisfazer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo.” (Foucault, 2009, p.37). Segundo Foucault, a troca e a comunicação são figuras positivas que atuam no interior de sistemas complexos de restrição. A forma mais superficial desses sistemas é constituída pelo ritual. O ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam, a posição que eles devem ocupar no jogo de um diálogo, o tipo de enunciado que deve ser formulado por eles; define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias e todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso; e fixa, enfim, o efeito das palavras sobre aqueles aos quais se dirigem e os limites de seu valor de coerção.

Além desta forma de restrição, há também as “sociedades de discurso”, os grupos

doutrinários e as apropriações sociais do discurso. Na maior parte do tempo, todos esses sistemas de restrição se ligam uns aos outros e constituem espécies de grandes edifícios que garantem a distribuição dos sujeitos que falam nos diferentes tipos de discursos e a apropriação dos discursos por certas categorias de sujeitos. Digamos, em uma palavra, que esses são os grandes procedimentos de sujeição do discurso. (Idem, p.44)

No espaço da sala de aula, o professor ocupa uma posição no diálogo diferente da posição que ocupa o aluno. Por isso, o tipo de enunciado que deve ser formulado pelo professor também é diferente do tipo de enunciado que o aluno formulará. A palavra do professor tem um valor diferente da palavra do aluno. O professor manda (e “obedece quem tem juízo”), o professor diz e ninguém pode questioná-lo. Para que o aluno tenha o direito à palavra, é preciso obedecer e aceitar certas regras do jogo. Tudo o que se diz é controlado. Assim, nesta pesquisa, pude constatar que o discurso do sistema de ensino (assim como os discursos religiosos, terapêuticos e políticos) não pode ser dissociado da prática do ritual, que determina para os sujeitos que falam propriedades singulares e papéis preestabelecidos.

O que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra; senão uma qualificação e uma fixação dos papéis para os sujeitos que falam; senão a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso; senão uma distribuição e uma atribuição do discurso com seus poderes e seus saberes? (Idem, p. 44).

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somos também, e principalmente, um produto dos saberes. É uma voz anterior que nos abriga, como vozes antepassadas afirmando sua força, sua presença entre nós. É o rito, é a ordem do discurso.

3. A Arqueologia do Saber

Em A Arqueologia do Saber, Foucault empreende uma análise do campo discursivo, na qual questiona os agrupamentos pelos quais se organizam os discursos, como por exemplo,

a psicopatologia, a medicina, a economia política, a biologia, a gramática, buscando encontrar relações entre os enunciados que se apresentam como referentes a cada uma dessas unidades. Partindo do princípio de que essas formas prévias não constituem conjuntos discursivos homogêneos e que elas, em realidade, “são sempre o efeito de uma construção cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser controladas” (Foucault, 2012, p.31), o autor elabora, para a realização de sua pesquisa, uma teoria que leva em consideração o campo dos acontecimentos discursivos a partir do qual essas unidades são construídas. Começa, então, um projeto de investigação e descrição de um domínio imenso, constituído pelo conjunto de todos os enunciados efetivos (escritos ou falados) pertencentes a cada um desses agrupamentos. Assim, segundo o autor, para a realização desta tarefa, é preciso:

[...] estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimentos, nessa pontualidade em que aparece e nessa dispersão temporal que lhe permite ser repetido, sabido, esquecido, transformado, apagado até nos menores traços, escondido bem longe de todos os olhares, na poeira dos livros. Não é preciso remeter o discurso à longínqua presença da origem: é preciso tratá-lo no jogo da sua instância. (Ibidem)

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Mas, diante desta tarefa desafiante, Foucault pergunta: “Que espécie de laços reconhecer validamente entre todos esses enunciados que formam, de um modo ao mesmo tempo familiar e insistente, uma massa enigmática?” (Foucault, 2012, p.39). A fim de explicar as formas unitárias sob as quais eles se apresentam, são formuladas, então, quatro hipóteses a respeito desses laços.

A primeira hipótese tem como objetivo verificar se a unidade de um discurso se forma quando os enunciados, diferentes em sua forma e dispersos no tempo, se referem a um único e mesmo objeto. Analisando os enunciados pertencentes à psicopatologia, Foucault logo percebe que a unidade de um objeto não nos permite individualizar um conjunto de enunciados e estabelecer entre eles uma relação ao mesmo tempo descritível e constante. Deste modo, a unidade dos discursos sobre a loucura, por exemplo, não está fundada na existência do objeto “loucura”, uma vez que este objeto foi constituído pelo conjunto do que foi dito no grupo de todos os enunciados que a nomeavam e a descreviam. Além disso, esse conjunto de enunciados, denominado psicopatologia, não se relaciona somente com um único objeto, formado de maneira definitiva (por exemplo, a forma como a loucura é descrita pelos enunciados médicos dos séculos XVII ou XVIII não é idêntica à forma como a loucura é delineada através das sentenças jurídicas ou das medidas policiais). A partir dessa multiplicidade de objetos, o autor conclui que a unidade de um discurso não é feita pela permanência e singularidade de um objeto, mas sim pelo espaço onde diversos objetos se desenham (são nomeados, descritos, analisados, apreciados ou julgados) e continuamente se transformam. Assim, nesta teoria, paradoxalmente, definir um conjunto de enunciados é justamente descrever a “dispersão desses objetos”; formular sua “lei de repartição”; encontrar a “regra de emergência simultânea ou sucessiva dos objetos” que aí podem aparecer e desaparecer.

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exemplo, modificação no sistema de informação a partir do uso do microscópio e dos testes biológicos). Essas alterações foram depositando-se lentamente no discurso médico. Portanto, de acordo com esta análise aqui proposta, para encontrar a unidade de um discurso, é preciso caracterizar e descrever o sistema de repartição dos enunciados, “como se apoiam uns nos outros, a maneira pela qual se supõem ou se excluem, a transformação que sofrem, o jogo de seu revezamento, de sua posição e de sua substituição.” (Foucault, 2012, p.42). A terceira hipótese diz respeito ao sistema de conceitos permanentes e coerentes que se encontram em jogo nos grupos de enunciados. Utilizando como exemplo a análise da linguagem e dos fatos gramaticais, Foucault observa que não seria possível reconstituir uma arquitetura conceitual da gramática clássica (desde Lancelot1 até o fim do século XVIII), pois, além dos conceitos traçados nas análises feitas pelos autores de Port-Royal, é possível ver surgir novos conceitos: alguns derivam do primeiro, outros lhes são heterogêneos e alguns incompatíveis. Verifica-se, assim, um aparecimento simultâneo ou sucessivo dos conceitos. A partir deste exemplo citado pelo autor, também podemos pensar, aqui, nesta pesquisa sobre ensino de línguas, a gramática atual e seu lugar nas práticas de ensino de ELE. Observaremos a presença de diversas formas de conceituar este objeto: desde uma perspectiva mais normativa até uma perspectiva mais descritiva. Deste modo, diante desta heterogeneidade, essa figura coerente que é a gramática seria uma unidade falsa? – pergunta o filósofo. Mas conclui que talvez seja possível encontrar uma unidade discursiva justamente na emergência dos conceitos, em seu afastamento, na distância que os separa e em sua eventual incompatibilidade. Assim, nesta análise, “Não buscaríamos mais, então, uma arquitetura de conceitos suficientemente gerais e abstratos para explicar todos os outros e introduzi-los no mesmo edifício dedutivo; tentaríamos analisar o jogo de seus aparecimentos e de sua dispersão” (Idem, p.43). A quarta hipótese se refere à questão da identidade e persistência dos temas nos diferentes grupos de enunciados. Ao analisar disciplinas como a economia e a biologia, Foucault pergunta se há, nelas, alguma temática que permite unificar um conjunto discursivo: “Será que não se poderia, por exemplo, constituir uma unidade tudo o que, de Buffon a Darwin, constituiu o tema evolucionista? [...]. Será que não se poderia falar, da mesma forma, do tema fisiocrático?” (Idem, p.44). Mas logo o autor constata que seria um equívoco buscar na existência dos temas o princípio de individualização de um discurso. Por exemplo, no caso da ideia evolucionista, se trata de tipos diferentes de discursos sobre o mesmo tema; ou seja, essa mesma temática se articula a partir

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de diferentes jogos de conceitos, tipos de análise e campos de objetos. No caso da fisiocracia se dá diferente: a análise da riqueza compreendia um jogo de conceitos relativamente limitados e que era admitido por todos (mesma explicação da moeda, mesma explicação sobre os preços etc.). A partir desse mesmo sistema de conceitos, havia duas maneiras de explicar a formação do valor: analisando-o como troca ou como remuneração. Assim, através dos mesmos elementos, essas duas possibilidades deram lugar a duas opções diferentes2. Contudo, o autor conclui que, ao invés de buscar a permanência dos temas através do tempo e “traçar a dialética dos seus conflitos para individualizar conjuntos enunciativos” (Foucault, 2012, p.45), seria mais interessante “demarcar a dispersão dos pontos de escolha e definir [...] um campo de possibilidades estratégicas” (Ibidem).

3.1. Regras de formação

De acordo com o que foi exposto, podemos perceber que, após formular as hipóteses sobre as quais poderiam se fundar as unidades dessas grandes famílias de enunciados designadas como a medicina, a economia, a gramática etc., Foucault deparou-se diante de um “sistema de dispersão” dos elementos discursivos. Sua análise se baseia, então, na descrição dessas “formas de repartição”, com o objetivo de detectar uma regularidade entre esses elementos. Segundo o autor,

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva. (Foucault, 2012, p.47)

Finalmente, para evitar o uso de palavras como “ciência”, “ideologia”, “teoria” ou “domínio de objetividade”, Foucault utiliza a noção de formação discursiva. E as regras dessa formação, o autor define como sendo

[...] as condições a que estão submetidos os elementos dessa repartição (objetos, modalidade de enunciação, conceitos, escolhas temáticas). As regras de formação

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são condições de existência (mas também de coexistência, de manutenção, de modificação e de desaparecimento) em uma dada repartição discursiva. (Ibidem)

3.2. A formação dos objetos discursivos

A fim de verificar as noções de “formação discursiva” e de “regras de formação”, Foucault empreende sua análise. Primeiramente, observa a formação dos objetos. Tomando como exemplo o discurso da psicopatologia do século XIX, o autor pergunta se é possível determinar um sistema segundo o qual os objetos puderam se justapor e se suceder para formar esse campo discursivo. De acordo com sua teoria, para descobrir o regime de existência dos objetos do discurso, seria preciso, inicialmente, “demarcar as superfícies primeiras de emergência” (Foucault, 2012, p.50), ou seja, onde eles podem surgir. Porém, essas superfícies “não são as mesmas nas diferentes sociedades, em diferentes épocas e nas diferentes formas de discurso” (Ibidem). Na psicopatologia do século XIX, elas eram constituídas pela família, pelo grupo social próximo, o meio de trabalho, a comunidade religiosa, e também por outras novas superfícies que começaram a funcionar nessa época (a arte, a sexualidade, a penalidade). Assim, nesses “campos de diferenciação”, o discurso psiquiátrico encontra a possibilidade de fazer aparecer seu objeto, torná-lo nomeável e descritível. Além disso, seria necessário descrever as “instâncias de delimitação”. Por exemplo, no século XIX, ainda que a medicina fosse a instância superior que instaura a loucura como objeto, havia outras que também representavam esse papel: a justiça penal, a autoridade religiosa, a crítica literária e artística. Por fim, seria preciso também analisar as “grades de especificação” (ou de “diferenciação”), ou seja, “os sistemas segundo os quais separamos, opomos, associamos, reagrupamos, classificamos, derivamos, umas das outras, as diferentes ‘loucuras’ como objetos do discurso psiquiátrico.” (Idem, p.51).

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descritos e não seria possível circunscrever um conjunto definido a partir de uma série de determinações heterogêneas, sem relações entre si. No entanto, estas duas questões colocadas remetem a um mesmo ponto. Para compreender este ponto, Foucault traz como exemplo o campo da psicopatologia do século XIX, no qual apareceu uma série de objetos pertencentes ao registro de delinquência (homicídios, crimes passionais, delitos sexuais etc). O problema aqui, então, é saber o que tornou possível o aparecimento desses objetos e como eles puderam ser seguidos de outros que os retomaram, corrigiram, modificaram e eventualmente anularam. Não seria pertinente atribuir o aparecimento desses objetos às normas características da sociedade burguesa do século XIX, a um sistema policial e penal reforçado, ao aumento da criminalidade; pois embora tenham ocorrido todos esses processos, eles não puderam, por si próprios, formar objetos para o discurso psiquiátrico. Deste modo,

Se, em nossa sociedade, em uma época determinada, o delinquente foi psicologizado e patologizado, se a conduta transgressora pôde dar lugar a toda uma série de objetos de saber, deve-se ao fato de que, no discurso psiquiátrico, foi empregado um conjunto de relações determinadas. (Foucault, 2012, p.53)

Como exemplo destas relações, Foucault aponta: relações entre planos de especificação como as categorias penais e os graus de responsabilidade diminuída, e planos psicológicos de caracterização (faculdades, aptidões etc.); relação entre a instância de relação médica e a instância de relação judiciária; relação entre o filtro constituído pela interrogação judiciária, as informações policiais, a investigação e todo aparelho de investigação jurídica, e o filtro constituído pelo questionário médico, os exames clínicos, as pesquisas dos antecedentes e as narrações; relação entre as normas familiares, sexuais, penais, do comportamento dos indivíduos, e o quadro dos sintomas patológicos e doenças de que eles são sinais; relação entre a restrição terapêutica no meio hospitalar e a restrição punitiva na prisão. Assim, a formação de todo um conjunto de objetos é assegurada por essas relações estabelecidas entre instâncias de “emergência”, de “delimitação” e “especificação” que atuam no discurso:

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sucessivamente, a objetos que se excluem, sem que ele próprio tenha de se modificar. (Foucault, 2012, p.54)

Em relação a essa definição, Foucault faz algumas observações. A primeira delas diz respeito à importância das condições históricas para que apareça um objeto de discurso: “o objeto existe sob as condições positivas de um feixe complexo de relações” (Idem, p.55). A segunda afirma que essas relações são estabelecidas entre instituições, processos econômicos e sociais, formas de comportamentos, sistemas de normas, técnicas, tipos de classificação, modos de caracterização. Assim, elas “não definem a constituição interna do objeto, mas o que lhe permite aparecer, justapor-se a outros objetos, situar-se em relação a eles, definir sua diferença, sua irredutibilidade e, eventualmente, sua heterogeneidade; enfim, ser colocado em um campo de exterioridade.” (Idem, p.55). Por este motivo, por exemplo, será possível observar as interações entre diferentes formações discursivas a partir dos filmes, visto que se trata de um campo de exterioridade, que permite fazer aparecer os objetos. Na terceira observação, o autor faz uma distinção entre essas relações, que ele chama de “relações discursivas”, e as que poderiam ser chamadas de “primárias ou reais” (relações que, independentemente do discurso ou objeto de discurso, podem ser descritas entre instituições, técnicas, formas sociais, etc; como, por exemplo: relações entre a família burguesa e o funcionamento das instâncias e das categorias judiciárias do século XIX) e “secundárias ou reflexivas” (relações que podem estar formuladas no próprio discurso; como, por exemplo: relações entre a família e a criminalidade formuladas no discurso dos psiquiatras). A quarta observação diz respeito, exclusivamente, às relações discursivas. Segundo o autor, elas não são nem internas ao discurso, pois não ligam entre si os conceitos e as palavras; nem são exteriores ao discurso, pois não o limitam nem o impõem certas formas. Elas estão no limite do discurso: “oferecem-lhe objetos de que ele pode falar, ou antes [...] determinam o feixe de relações que o discurso deve efetuar para poder falar de tais ou tais objetos, para poder abordá-los, nomeá-los, classificá-los, explicá-los etc.” (Idem, p.56). Por fim, essas relações caracterizam o próprio discurso enquanto prática, enquanto lugar onde uma pluralidade de objetos se forma ou se deforma, aparece e se apaga.

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não são os objetos que permanecem constantes, nem o domínio que formam; nem mesmo seu ponto de emergência ou seu modo de caracterização; mas o estabelecimento de relação entre as superfícies em que podem aparecer, em que podem ser delimitados, analisados e especificados. (Idem, p.57)

Deste modo, em sua proposta, não se pretende interpretar o discurso para fazer uma história dos objetos; não se deseja buscar as coisas anteriores ao discurso; mas, sim, busca-se ficar no nível do próprio discurso e, assim, definir os objetos relacionando-os ao conjunto de regras que constituem suas condições de aparecimento histórico, a fim de fazer uma história dos objetos que “desenvolva o nexo das regularidades que regem sua dispersão” (Foucault, 2008, p.58), ou seja, que regem o aparecimento, desaparecimento e transformação dos elementos discursivos. Além disso, identificar os relacionamentos que caracterizam uma prática discursiva ao tentar descrever um objeto não significa necessariamente remeter à análise dos conteúdos léxicos. Por exemplo, não se trata de questionar o sentido dado, em sua época, às palavras “melancolia” ou “loucura sem delírio”, nem a oposição de conteúdo entre “psicose” e “neurose”. Mas, sim, de saber como a criminalidade pôde tornar-se objeto de parecer médico, ou como o desvio sexual pôde delinear-se como um objeto do discurso psiquiátrico. Por exemplo, na prática discursiva da disciplina escolar, observa-se o aparecimento de objetos pertencentes a outros campos e que são redefinidos neste contexto, como, por exemplo, questões relacionadas às políticas públicas de segurança3. Por fim, em seu trabalho, Foucault não pretende tratar os discursos enquanto conjunto de signos que são utilizados para designar coisas, mas como práticas que formam os objetos de que falam:

direi que, em todas essas pesquisas que avancei ainda tão pouco, gostaria de mostrar

que os ‘discursos’, tais como podemos ouvi-los, tais como podemos lê-los, sob a forma de um texto não são, como se poderia esperar, um entrecruzamento de coisas e de palavras [...]; gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento entre o léxico e uma experiência; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos desfazerem-se os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva. Essas regras definem [...] o regime dos objetos. (Foucault, 2012, p.59-60)

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Partindo do princípio, então, de que os sujeitos são formados a partir do processo de

interação com os discursos e saberes em circulação na sociedade, nesta pesquisa, observaremos que os modos como os alunos interpretam os filmes e os sentidos atribuídos por eles estão atravessados por formações discursivas predominantes em seu contexto sociocultural.

3.3. Formação das modalidades enunciativas

Definido as regras de formação dos objetos, o autor avança, então, para a segunda parte de sua análise: a descrição das regras de formação das modalidades enunciativas. Tomando como exemplo, o discurso dos médicos, no século XIX, questiona que encadeamento há entre as muitas formas de enunciados que nele se pode encontrar (descrições qualitativas, narrações biográficas, dedução, verificações experimentais etc.). Como ponto de partida, para encontrar a lei que as rege e o lugar de onde elas vêm, a primeira pergunta que se deve fazer é: “quem fala? [...] Qual é o status dos indivíduos que têm – e apenas eles – o direito regulamentar ou tradicional, juridicamente definido ou espontaneamente aceito, de proferir semelhante discurso?” (Foucault, 2012, p.61). O status do médico, por exemplo, é bastante singular em todas as formas de sociedade. Assim, a fala médica não pode vir de quem quer que seja: ela está associada a um personagem, que é definido por seu status. Porém, esse status também pode ser profundamente modificado. A segunda questão diz respeito aos lugares institucionais de onde os indivíduos obtêm seu discurso, e onde este encontra sua origem legítima e seu ponto de aplicação (seus objetos específicos e seus instrumentos de verificação). No caso dos professores, por exemplo, esses lugares são, para nossa sociedade, a escola, a universidade, o laboratório, a biblioteca etc. Porém, esses diversos lugares nem sempre são os mesmos. A terceira questão se refere às posições do sujeito, que se definem pela situação que podem ocupar em relação aos diversos domínios ou grupos de objetos. No caso do aluno, por exemplo, ele pode ocupar a posição de sujeito que questiona e de sujeito que observa. Ainda existem as posições que o sujeito pode ocupar na rede de informações. Porém, essas diversas situações podem ser redefinidas.

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pedagogo, transmissor do saber médico etc. Desta maneira, o discurso clínico deve ser entendido como o “relacionamento, no discurso médico, de um certo número de elementos distintos, dos quais uns se referiam ao status dos médicos, outros ao lugar institucional e técnico de onde falavam, outros à sua posição como sujeitos que percebem, observam, descrevem, ensinam etc.” (Ibidem). É ele quem instaura, enquanto prática discursiva, esse sistema de relações. Contudo, tendo em vista a disparidade dos tipos de enunciação no discurso clínico, a medicina clínica, então, deve ser entendida como renovação das modalidades de enunciação (como, por exemplo, renovação dos pontos de vista, conteúdos, formas e do próprio estilo da descrição). As diversas modalidades da enunciação não estão relacionadas à unidade de um sujeito, mas, sim, “manifestam sua dispersão: nos diversos status, nos diversos lugares, nas diversas posições que pode ocupar ou receber quando exerce um discurso, na descontinuidade dos planos de onde fala.” (Idem, p.65-66). Deste modo, o discurso, segundo o autor,

[...] não é a manifestação [...] de um sujeito que pensa, que conhece, e que o diz: é, ao contrário, um conjunto em que podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo. É um espaço de exterioridade em que se desenvolve uma rede de lugares distintos. (Foucault, op.cit., p.66)

Observa-se, então, que o discurso é definido enquanto um lugar de dispersão do sujeito. Essa questão é importante para esta pesquisa, visto que, ao analisar os processos de interação dos alunos com as formações discursivas próprias do contexto argentino, podemos verificar uma pluralidade de vozes a partir de movimentos de consenso e dissenso entre as interpretações dos discentes, assim como a partir de movimentos de adesão e distanciamento em relação ao discurso do outro.

3.4. A formação dos conceitos

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acordo com sua teoria, antes é necessário descrever a organização do campo de enunciados em que esses conceitos aparecem e circulam. A configuração do campo enunciativo compreende: formas de sucessão (e, entre elas: as diversas disposições das séries enunciativas; os diversos tipos de correlação dos enunciados; os diversos esquemas retóricos segundo os quais se podem combinar grupos de enunciados), formas de coexistência (elas delineiam um campo de presença; um campo de concomitância e um campo de memória) e procedimentos de intervenção (tais procedimentos podem aparecer nas técnicas de reescrita, em métodos de transcrição dos enunciados, os modos de tradução, os meios utilizados para aumentar a aproximação dos enunciados, a maneira pela qual se transfere um tipo de enunciado de um campo de aplicação a outro etc.). Assim, diante dessa heterogeneidade de elementos, o que permite delimitar o grupo de conceitos que são específicos de uma formação discursiva é a “maneira pela qual esses diversos elementos estão relacionados uns aos outros: a maneira, por exemplo, pela qual a disposição das descrições ou das narrações está ligada às técnicas de reescrita [...]” (Foucault, 2012, p.70). O sistema de formação conceitual é constituído, então, por este feixe de relações:

tentamos determinar segundo que esquemas (de seriação, de grupamentos simultâneos, de modificação linear ou recíproca) os enunciados podem estar ligados uns aos outros em um tipo de discurso; tentamos estabelecer, assim, como os elementos recortantes dos enunciados podem reaparecer, se dissociar, se recompor, ganhar em extensão ou em determinação, ser retomado no interior de novas estruturas lógicas, adquirir, em compensação, novos conteúdos semânticos, constituir entre si organizações parciais (Idem, p.71)

Contudo, o que esses esquemas permitem descrever é a dispersão dos conceitos através de textos, livros e obras – dispersão que caracteriza um tipo de discurso. Deste modo, tal análise refere-se ao campo em que os conceitos podem coexistir e às regras às quais esse campo está submetido. Esse campo “pré-conceitual”, é, pois, o conjunto das regras que se encontram em jogo. A descrição desse campo permite que apareçam as regularidades discursivas que tornaram possível a multiplicidade heterogênea dos conceitos. O discurso, aqui, é compreendido, então, como lugar de emergência dos conceitos. A respeito de sua proposta, Foucault afirma:

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impõem, por conseguinte, segundo um tipo de anonimato uniforme, a todos os indivíduos que tentam falar nesse campo discursivo. Por outro lado, não são consideradas universalmente válidas em todos os domínios indiscriminadamente; são sempre descritas em campos discursivos determinados, e suas possibilidades indefinidas de extensão não são reconhecidas antecipadamente. Podem-se, no máximo, por uma comparação sistemática, confrontar, de uma região a outras, as regras de formação dos conceitos. (Foucault, op.cit., p.74)

3.5. A formação das estratégias

Após descrever a rede conceitual a partir das regularidades intrínsecas do discurso, Foucault empreende sua última descrição: as regras de formação das estratégias. As estratégias se referem aos temas ou teorias que os tipos de enunciação formam, segundo seu grau de coerência, de rigor e de estabilidade. A questão, neste tópico, é saber como esses temas ou teorias são distribuídos na história. Para definir este sistema comum, faz-se necessário percorrer alguns caminhos. É preciso, primeiramente, determinar os possíveis pontos de difração (ou seja, dispersão) do discurso. São eles: pontos de incompatibilidade, ou seja, quando dois objetos, ou dois tipos de enunciação, ou dois tipos de conceitos aparecem na mesma formação discursiva; pontos de equivalência, ou seja, quando dois elementos incompatíveis são formados a partir das mesmas regras; pontos de ligação de uma sistematização, ou seja, quando uma série coerente de objetos, formas enunciativas e conceitos são derivados a partir desses elementos equivalentes e incompatíveis ao mesmo tempo. Além disso, para dar conta das escolhas que foram realizadas (entre todas as que poderiam ter sido), é preciso determinar as instâncias específicas de decisão. Assim, cabe verificar o papel desempenhado pelo discurso estudado em relação aos que lhe são contemporâneos e verificar a constelação discursiva à qual ele pertence, uma vez que as escolhas dependem dessas constelações. Por exemplo, tal discurso pode estar em uma relação de analogia, de oposição, ou de complementaridade com alguns outros discursos. Pode-se também descrever, entre diversos discursos, “relações de delimitação recíproca, cada um deles apresentando as marcas distintivas de sua singularidade pela diferenciação de seu domínio, seus métodos, seus instrumentos, seu domínio de aplicação” (Foucault, 2012, p.79).

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de suas regras próprias de formação), mas que são excluídos por uma constelação discursiva de um nível mais elevado e de maior extensão. Uma formação discursiva, não ocupa, assim, todo o volume possível que lhe abrem por direito os sistemas de formação de seus objetos, de suas enunciações, de seus conceitos; ela é essencialmente lacunar, em virtude do sistema de formação das suas escolhas estratégicas. (Ibidem)

Além disso, é preciso, também, determinar as escolhas teóricas (ou seja, as estratégias) que foram efetuadas. Porém essa determinação depende de outra instância, que se caracteriza: pela função que deve exercer o discurso estudado em um campo de práticas não discursivas; pelo regime e pelos processos de apropriação do discurso (visto que a propriedade do discurso está reservada a um grupo determinado de indivíduos); e pelas posições do desejo em relação ao discurso. De acordo com o autor, a análise dessa instância mostra que “nem a relação do discurso com o desejo, nem os processos de sua apropriação, nem seu papel entre as práticas não discursivas são extrínsecos à sua unidade, à sua caracterização, e às leis de formação.” (Foucault, op.cit., p.80). Esses elementos não são perturbadores, não mascaram o discurso: são elementos formadores. Assim, pode-se dizer que se trata de uma formação discursiva quando se puder definir o sistema de formação das diferentes estratégias que nelas se desenrolam e mostrar como todas derivam de um mesmo jogo de relações.

3.6. Sistema de dispersão

Após finalizar a descrição do sistema de formação dos discursos, Foucault se depara, então, diante de um sistema de dispersão dos elementos discursivos. Essa dispersão, segundo o autor, pode ser descrita, em sua singularidade se forem determinadas as regras específicas segundo às quais foram formados objetos, enunciações, conceitos, opções teóricas. Assim, a unidade de um discurso, como o da medicina clínica ou da economia política, reside no sistema que rege e torna possível a aparição desses elementos. Como foi dito ao longo das análises feitas pelo autor,

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Foucault descreveu quatro feixes de relação e definiu, assim, para todos eles um sistema único de formação, mostrando que eles não são independentes um dos outros: por exemplo, as escolhas estratégicas são determinadas por pontos de divergência dos conceitos; assim como as modalidades de enunciação são descritas a partir da posição que o sujeito ocupa em relação ao domínio dos objetos de que fala. Cada nível não se desenvolve de forma autônoma: “da diferenciação primária dos objetos à formação das estratégias discursivas existe toda uma hierarquia de relações.” (Foucault, 2012, p.87). Deste modo, as escolhas teóricas excluem ou implicam, nos enunciados que as efetuam, a formação de certos conceitos. No entanto, segundo o autor, “não foi a escolha teórica que regulou a formação do conceito, mas ela o produziu por intermédio das regras específicas de formação dos conceitos e pelo jogo das relações que mantém com esse nível”. (Ibidem)

Além disso, em sua análise, foi observado que os sistemas de formação residem no próprio discurso. Assim, definir um sistema de formação é caracterizar um discurso (ou um grupo de enunciados) pela regularidade de uma prática discursiva. “Por esse sistema de formação é preciso, pois, compreender um feixe complexo de relações que funcionam como regra” (Idem, p.88): através das mesmas leis de formação, novos objetos aparecem, novas modalidades de enunciação são empregadas, novos conceitos são delineados e novos edifícios teóricos são construídos.

É importante lembrar que:

Uma formação discursiva não desempenha, pois, o papel de uma figura que para o tempo e o congela por décadas ou séculos: ela determina uma regularidade própria de processos temporais; coloca o princípio de articulação entre uma série de acontecimentos discursivos e outras séries de acontecimentos, transformações, mutações e processos. Não se trata de uma forma intemporal, mas de um esquema de correspondência entre diversas séries temporais. (Foucault, op.cit., p.88-89)

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autor descobre um conjunto de sistematicidades e relações múltiplas. E é justamente neste ponto que se delineia sua análise:

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II

Ressonâncias discursivas no ensino do Espanhol no Brasil

Antes de compreendermos as concepções teóricas, tanto de língua como de ensino e leitura, adotadas nesta pesquisa, cabe ressaltar algumas tendências predominantes no caminho desenvolvido pelos estudos do Espanhol no Brasil. Veremos que essas tendências se configuram como “gestos fundadores” de uma imagem sobre o ensino desta língua que ainda perdura no país. Neste sentido, podemos dizer que os vários discursos em torno desse idioma no Brasil se ligam a uma certa perspectiva comum – ainda que eles sejam dissidentes uns dos outros; ainda que eles não reafirmem o senso-comum (mas continuam em diálogo com esta primeira imagem, na tentativa de rompê-la). Ou seja, os discursos em torno da língua espanhola obedecem a uma certa formação discursiva que, ao longo da história, determinou regras para sua existência e transformações neste contexto. Neles, é possível observar uma predominância da concepção de sujeito unívoco e da compreensão da língua enquanto um sistema estático e homogêneo.

1. O privilégio do aspecto lexical no ensino de ELE

Até os anos 1990, no âmbito acadêmico, a reflexão linguística sobre a língua espanhola era quase inexistente. As pesquisas em torno dessa língua no país possuíam um caráter instrumental, voltadas para um ensino com objetivos turísticos ou econômicos, que seria realizado, principalmente, em escolas de idiomas ou em alguns colégios privados. Somente a partir dessa década, o espanhol passou a ocupar novos lugares e a se tornar objeto de pesquisa nas universidades brasileiras. De acordo com Celada & González (2000), alguns fatores, como, por exemplo, a condição periférica do país, o acesso tardio aos modelos teóricos da linguística e a relação de desconhecimento mútuo que se estabeleceu entre o Brasil e os países hispânicos foram responsáveis pelo lugar ocupado pela língua espanhola, irrefletidamente, ao longo de muitos anos. Essa falta de reflexão ocasionou uma espécie de “cristalização” de determinadas crenças que, somente recentemente, estão sendo questionadas.

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através da primeira Gramática da língua espanhola para uso dos brasileiros, de Antenor Nascentes, e estava presente no primeiro manual de ensino que surgiu no Brasil em 1945, de Idel Becker. Neste panorama, o foco das atenções passou a ser a busca pelas diferenças entre essas duas línguas tão semelhantes, uma vez que essas eram consideradas a fonte de todas as dificuldades. Esse pressuposto que se instalou no Brasil acerca do espanhol abriu espaço para que as análises contrastivas se desenvolvessem e se expandissem no país. Esses estudos tinham como fundamento a teoria de Lado (1957), na qual o autor afirmava que os aprendizes possuem uma tendência a transferir os conhecimentos da sua língua materna para a língua estrangeira. Cabe ressaltar que os estudos linguísticos reprodutores dessa visão possuíam uma concepção cartesiana do sujeito e compreendiam a língua como um sistema semanticamente estabilizado e homogêneo, acreditando que seu domínio se dava através do conhecimento lexical, reduzindo-a a um estoque de palavras. Defendiam, portanto, que o espanhol e o português eram semelhantes, pois somente 10% das palavras não possuiriam equivalentes idênticos nos dois idiomas. Passou-se, então, a privilegiar esses vocabulários distintos, conhecidos como “falsos amigos”, pois estes poderiam gerar mal-entendidos. Porém, o equívoco deste modelo se encontra, fundamentalmente, no fato de pensar que somente tendo acesso às palavras seria possível controlar todas as ambiguidades – como veremos mais adiante, as diferenças lexicais tornam-se superficiais e insuficientes ao levarmos em conta outros níveis de análise.

A prática didática do ensino de espanhol, por sua vez, é afetada diretamente por esta falta de reflexão. É possível perceber que os professores se referem, constantemente, a algumas dificuldades vivenciadas pelos estudantes brasileiros, tais como, dificuldades para aprender o uso dos pronomes diretos e indiretos, dificuldades para aprender o uso das preposições, dificuldades para aprender a conjugação do verbo gustar, dificuldades no uso de imperativos, dificuldade para conjugar os verbos irregulares etc. De acordo com González & Celada (2000, p.43), todas essas questões apontam que a problemática está relacionada ao funcionamento da sintaxe da língua espanhola:

Si consideramos que la sintaxis [...] mobiliza los diferentes planos de la lengua – desde el fonológico al discursivo–, las preocupaciones u observaciones de los profesores pueden verse como indicios de que lo que está produciendo esa serie de dificultades tiene que ver con el funcionamiento de la lengua española en el nivel

discursivo, mucho más que con el nivel lexical […]

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passam a se desenhar no cenário acadêmico brasileiro em torno dessa língua estão relacionadas a alguns fatores externos à academia, como, por exemplo, os processos de integração regional (MERCOSUL), que se iniciam nos campos econômico e político, dando lugar a inúmeros intercâmbios de bens culturais que determinam uma circulação diferente para as línguas na região, fazendo com que o interesse pelas relações entre as línguas espanhola e portuguesa aumente consideravelmente.

Especificamente nos estudos linguísticos, essa relação começa a ser abordada a partir de vertentes de forte desenvolvimento na universidade brasileira e de alguns países vizinhos: teoria sobre a aquisição de inspiração gerativista, aplicações de diversas perspectivas nos estudos discursivos e enunciativos e, em menor medida, mas também marcando uma crescente presença, estudos de gramática descritiva. São produzidos e divulgados, dentre outros, trabalhos de pesquisa sobre a aquisição do espanhol por brasileiros (GONZÁLEZ, 1994), sobre comparações entre o funcionamento do português brasileiro e do espanhol (GROPPI, 1997), comparações entre as discursividades relacionadas a ambas as línguas (SERRANI, 1994; SANTANNA, 200; FANJUL, 2002), ou sobre aspectos da subjetividade do brasileiro mobilizado pelo contato com o funcionamento do espanhol (CELADA, 2002), todos abrindo caminhos de interrogação que, graças a contribuições de novos pesquisadores, se mostram produtivos até hoje. (Fanjul, 2012, p.48)

Paralelamente a esta nova relação entre línguas e saberes no Brasil, neste mesmo período, aumenta a presença da língua espanhola no campo educacional brasileiro e sua inclusão nos currículos escolares. Neste processo, surge, em 2005, a lei federal 11.161, que dá um prazo de cinco anos para que todas as escolas do ensino médio tenham o Espanhol como disciplina de oferta obrigatória. Devido à necessidade de formação de professores, começa uma interação entre o campo educacional e as pesquisas em desenvolvimento nos últimos anos no campo acadêmico. Porém, mesmo com todos os avanços nos estudos linguísticos apontando para outros caminhos de análise, mesmo com a introdução de novos modelos teóricos para o estudo da linguagem e a realização de novas pesquisas, a manutenção da visão estereotipada do processo de aquisição do espanhol ainda pode ser facilmente detectada no Brasil, principalmente se observamos as práticas didáticas do ensino de línguas das escolas públicas e os materiais didáticos que nelas circulam – em grande parte reforçando ainda os lugares-comuns dos quais precisamos sair.

2. Gêneros do discurso em sala de aula: contradições entre a prática e a teoria

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Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN): trata-se dos trabalhos dedicados aos “gêneros do discurso” nas pesquisas acadêmicas e, consequentemente, em sala de aula. Após pesquisa de produções acadêmicas relativas a essa problemática, Fanjul observa que, embora nestas elaborações possam ser percebidos os avanços na compreensão das complexas relações entre linguagem, história e sociedade, muitos trabalhos negligenciam as dimensões textual e discursiva. A partir do levantamento nos anais de dois eventos de significativo impacto para a área, realizados em 2010, o autor selecionou 14 comunicações que abordavam esse tema, apresentadas por pesquisadores em formação, de iniciação científica, mestrado ou doutorado e/ou de professores já atuantes nas universidades, a fim de detectar grandes variáveis. O

corpus analisado era composto, em sua maioria, por trabalhos que se propunham a contribuir com as práticas de ensino. Os quatro aspectos analisados nos trabalhos foram: a delimitação do referencial teórico; a atenção às relações dialógicas e interdiscursivas para os enunciados considerados ou ainda para a caracterização de determinados gêneros; a atenção a aspectos da configuração textual; e a consideração da especificidade de ter-se um universo linguístico-cultural estrangeiro como espaço de trabalho.

A primeira constatação foi que nos referenciais teóricos são mencionados dois acervos diferentes: por um lado, tem-se o conjunto de estudiosos da “escola de Genebra” e, por outro lado, os autores do “Círculo de Bakhtin”. Porém, no desenvolvimento de grande parte dos trabalhos, percebe-e um afastamento do tratamento proposto para o discurso por qualquer um dos acervos. Termos como “dialogismo”, “polifonia” e “heterogeneidade”, ritualmente repetidos nos parágrafos de referencial teórico, são completamente ignorados na prática. Segundo Fanjul (2012, p.57), a forte presença destes termos é um sinal “de uma filiação dominante, no campo acadêmico, a concepções sobre a relação entre linguagem, sujeitos e sociedades que, de diferentes maneiras, questionam a unicidade do sujeito falante e a imanência do texto”. Mas, por outro lado, o autor sinaliza que “sua repetição é também sinal de uma certa automatização, de que começam a transformar-se em meras fórmulas de inscrição em uma discursividade, com escassa relação com as práticas efetivas que acompanham (Ibidem). Por exemplo, nas comunicações que assumem um enunciado como objeto, não são estabelecidas relações interdiscursivas4, ou seja, diálogos com “discursos alheios” que estão contidos nos enunciados. Além disso, em grande parte dos trabalhos, esses termos ganham um novo significado ao serem transportados para o campo educacional e

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