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– PósGraduação em Letras Neolatinas

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Academic year: 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Si del cielo te caen limones, learn to make a lemonade: a escrita em deslocamento de Gustavo Pérez Firmat

Fernanda Orphão Corrêa de Lima

Rio de Janeiro

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Si del cielo te caen limones, learn to make a lemonade: a escrita em deslocamento de Gustavo Pérez Firmat

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literatura Hispânica)

Orientadora: Professora Doutora Elena Cristina Palmero González.

por

Fernanda Orphão Corrêa de Lima

Rio de Janeiro

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Si del cielo te caen limones, learn to make a lemonade: a escrita em deslocamento de Gustavo Pérez Firmat

Fernanda Orphão Corrêa de Lima

Orientadora: Professora Doutora Elena C. Palmero González

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas).

Aprovada por:

Presidente, Professora Doutora Elena C. Palmero González – UFRJ

Professora Doutora Ana Cristina dos Santos – UERJ

Professora Doutora Silvia Inés Cárcamo – UFRJ

Rio de Janeiro

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Agradecimentos

Agradeço a meu Mestre da Vida, doutor Daisaku Ikeda, por me ensinar que nada é impossível para aquele que luta de coração puro por um ideal. Agradeço também, in memorian, ao Sensei Tsunessaburo Makiguti por ter me possibilitado enxergar através de sua própria trajetória como utilizar minhas habilidades acadêmicas pelo bem das pessoas.

Agradeço a minha orientadora Elena por ter me recebido de braços abertos e ter sempre me tratado com carinho e benevolência excepcionais. Aprendi muito nessa trajetória ao seu lado.

Agradeço à minha mãe Lucia, minha irmã Renata e meu irmão Luiz Felipe por todo o apoio na concretização desse sonho. Agradeço, in memorian, a meu amado pai Luiz Fernando, quem primeiro incutiu em mim o amor pela literatura e o desejo de sempre fazer o meu melhor.

Agradeço ao meu amor e maravilhoso companheiro de vida Philippe Isamu Watanabe por ter sido compreensivo e carinhoso nas vezes em que as lágrimas levaram a melhor e eu pensava que não seria capaz. Seu ombro foi meu porto seguro quando o pessimismo aparecia e só você era capaz de me fazer rir quando tudo que eu queria era chorar e desistir. Muito obrigada.

Agradeço às amigas Ana Paula Castro, Carolina Meneses, Carolina Souza, Juliana Neutzling, Leandra Lopez, Jaqueline Neves e Marina Contin pelo incrível apoio em conversas, risadas, orações e copos de cerveja, não necessariamente nessa ordem. Sou realmente muito afortunada por poder contar com a amizade de pessoas tão incríveis quanto vocês, muito obrigada!

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Agradeço às companheiras de mestrado e amigas queridas Lays Neves, Claudia Neustadt e Claudia Rodrigues por dividirem comigo as alegrias e angústias dessa maravilhosa jornada.

Agradeço aos meus queridos professores da UERJ que me apoiaram e contribuíram maravilhosamente para minha formação durante a graduação e durante o mestrado, mesmo que à distância no último caso. Deixo especial agradecimento à querida professora Ana Cristina dos Santos, que me inspirou a seguir a carreira de professora e pesquisadora e me apoiou de bom coração no louco empreendimento, lá em 2012, de participar de uma seleção de mestrado para a UFRJ com menos de dois meses para estudar para a prova e preparar o projeto de pesquisa.

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“En Cuba, siempre en Cuba. Pero yo no estoy en Cuba. Estoy en Brunswick, y no puedo dormir.”

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RESUMO

LIMA, Fernanda Orphão Corrêa de. Si del cielo te caen limones, learn to make a lemonade: a escrita em deslocamento de Gustavo Pérez Firmat. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 2015. Dissertação de Mestrado em Literaturas Hispânicas.

A transformação acelerada dos meios de comunicação nas últimas décadas, o movimento massivo de pessoas, o aumento do fluxo da informação e de imagens, a desestabilização de fronteiras nacionais, assim como a crise dos paradigmas ideológicos que sustentaram a modernidade, influenciam de maneira definitiva os estudos da cultura, tornando o deslocamento uma noção essencial para compreender a sociedade atual e suas práticas culturais. Nessa perspectiva, o presente estudo das obras do escritor cubano-americano Gustavo Perez Firmat El año que viene estamos en Cuba (1997) e Cincuenta lecciones de exílio y desexilio (2000), reflete sobre as relações entre deslocamento cultural, memória autobiográfica, bilinguismo e figuração do autor. A presente pesquisa tenta responder algumas perguntas chaves: Como caracterizar a identidade da escrita do autor, especificamente no que tange às relações entre deslocamento cultural e memória autobiográfica? Como a articulação de duas culturas na obra de Gustavo Pérez Firmat incide em sua produção literária e em suas reflexões estéticas? Pode a experiência do deslocamento e do biculturalismo gerar uma poética escritural? Como é construída a figura do autor nessas obras? Esta dissertação tenta caracterizar sua práxis artística e identificar o que poderíamos chamar uma poética do deslocamento, analisando os textos em suas coordenadas temáticas e compositivas. Para tais reflexões partiremos dos estudos sobre a cultura de Stuart Hall e James Clifford; os estudos sobre a memória de Arfuch, Pozuelo Yvancos e Le Goff; os estudos de Palmero González sobre as formas contemporâneas do deslocamento e sua expressão artística; os estudos de Steiner a respeito da extraterritorialidade, Agamben e Pozuelo Yvancos sobre a figuração do autor.

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RESUMEN

LIMA, Fernanda Orphão Corrêa de. Si del cielo te caen limones, learn to make a lemonade: a escrita em deslocamento de Gustavo Pérez Firmat. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 2015. Tesis de Maestría en Literaturas Hispánicas.

La transformación acelerada de los medios de comunicación en las últimas décadas, el gran movimiento de personas, el incremento en el flujo de informaciones y de imágenes, la desestabilización de las fronteras nacionales, así como la crisis de los paradigmas ideológicos que sustentaron la modernidad, influyen de modo definitivo en los estudios de cultura, haciendo del desplazamiento una noción esencial para comprender la sociedad actual y sus prácticas culturales. Desde esa perspectiva, el presente estudio de las obras del escritor cubanoamericano Gustavo Pérez Firmat El año que viene estamos en Cuba (1997) e Cincuenta lecciones de exílio y desexilio (2000), reflexiona sobre las relaciones entre desplazamiento cultural, memoria autobiográfica, bilingüismo y figuración del autor. La presente investigación intenta contestar algunas preguntas llaves: Como caracterizar a la identidad de la escritura del autor, específicamente en lo referido a las relaciones entre desplazamiento cultural y memoria autobiográfica? Como la articulación de dos culturas en la obra de Gustavo Pérez Firmat incide en su producción literaria y en sus reflexiones estéticas? Es posible que la experiencia del desplazamiento y del biculturalismo genere una poética escritural? Como se construye la figura del autor en esas obras? Esta investigación intenta caracterizar la praxis artística e identificar lo que se puede llamar una poética del desplazamiento, analizando los textos en sus coordinadas temáticas y compositivas. Para tales reflexiones partimos de los estudios sobre la cultura de Stuart Hall y James Clifford; los estudios sobre memoria de Arfuch, Pozuelo Yvancos y Le Goff; los estudios de Palmero González sobre las formas contemporáneas del desplazamiento y su expresión artística; los estudios de Steiner sobre la extraterritorialidad, Agamben y Pozuelo Yvancos sobre la figuración del autor.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO………...…...10

CAPÍTULO 1 – LITERATURA E DESLOCAMENTO CULTURAL: A OBRA DE GUSTAVO PÉREZ FIRMAT NO CONTEXTO DA DIÁSPORA CUBANA NOS ESTADOS UNIDOS...14

1.1. As diásporas: coordenadas teóricas...15

1.2. As diásporas: coordenadas histórico-literárias...18

1.3. A literatura da diáspora cubana nos Estados Unidos: a literatura cubano– americana...21

1.4. A obra de Gustavo Pérez Firmat...27

Capítulo 2 – EL AÑO QUE VIENE ESTAMOS EM CUBA...32

2.1. O discurso autobiográfico e a autofiguração autoral... 33

2.2. O discurso da memória...41

2.3. O bilinguismo como estética...52

Capítulo 3 – CINCUENTA LECCIONES DE EXÍLIO Y DESEXILIO…...57

3.1. O discurso autobiográfico e a autofiguração autoral...58

3.2. O discurso da memória... 60

3.3. O bilinguismo como estética...61

CONCLUSÕES...67

REFERÊNCIAS...69

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A transformação acelerada dos meios de comunicação e de transporte nas últimas décadas, o movimento massivo de pessoas, o trânsito contínuo de imagens, o aumento do fluxo da informação, a desestabilização de fronteiras nacionais, assim como a crise de certos paradigmas ideológicos que sustentaram o mundo moderno influenciam hoje, de maneira definitiva, os estudos da cultura, tornando o deslocamento uma noção essencial para compreender a sociedade atual e suas praticas culturais.

Essa dissertação, adscrita ao projeto Poéticas do deslocamento nas letras hispânicas contemporâneas: mobilidades culturais e historiografia literária, que se desenvolve no Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da UFRJ, sob a coordenação da Profa. Elena Palmero González e inserido na linha pesquisa Estudos Literários: Poéticas, história e crítica, tem como tema central de pesquisa o estudo das literaturas produzidas sob essas novas condições de mobilidade cultural, com um interesse especial pela literatura da diáspora cubana nos Estados Unidos e especificamente pela obra do escritor cubano-americano Gustavo Pérez Firmat.

Escritor nascido em Havana, Cuba, e radicado nos Estados Unidos aos onze anos de idade, Gustavo Pérez Firmat foi criado em Miami-Estados Unidos. Ensinou na Miami-Dade Community College, na Universidade de Miami, na Universidade de Michigan onde obteve um Ph.D. em Literatura Comparada, Universidade de Duke e atualmente é Professor na Faculdade de Humanidades da Universidade de Columbia. Pérez Firmat tem sido o destinatário de bolsas de estudo da Fundação John Simon Guggenheim, do National Endowment for the Humanities, do The American Council of Learned Societies, e da Mellon Foundation. Em 2004 ele foi eleito para a Academia Americana de Artes e Ciências.

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estamos en Cuba, 1997). Life on the Hyphen foi agraciado com o Eugene M. University Press National Book Award Kayden para 1994. Em 1995, Pérez Firmat foi nomeado Duke University Scholar / Teacher of the Year, maior premiação da Duke University para o ensino de graduação. Em 1997, a revista Newsweek incluiu-o entre os "100

Americans to watch for the 21

st

century" e Hispanic Business Magazine selecionou-o como um dos "100 most influential Hispanics" nos Estados Unidos. Em 2004, Pérez Firmat foi nomeado um dos trinta "Outstanding Latinos" de Nova York por El Diario La Prensa. Em 2005, ele foi selecionado Educador do Ano pela Associação Nacional de Educadores Americanos Cubanos.

Dentre de sua obra narrativa destacam-se especialmente: Bilingual Blues (1995), El año que viene estamos en Cuba (1997) Cincuenta lecciones de exílio y desexilio (2000), Life on the hyphen: the cuban-american way (2012), The Cuban Condition (2005). O corpus seleccionado como objeto de estudo deste trabalho é constituido pelas obras El año que viene estamos en Cuba (1997) e Cincuenta lecciones de exilio y desexilio (2000).

Na condição de cubano-americano, Gustavo Perez Firmat problematiza em suas obras a questão de pertencer simultaneamente a dois lugares, duas línguas, duas culturas, reconstruindo assim uma memória individual, familiar e cubana, ancorada no deslocamento e na biculturalidade.

O diálogo constante entre as duas culturas nas quais o escritor está simultaneamente inserido influencia em sua poética escritural e em suas reflexões teóricas sobre a cultura e a literatura em condições de deslocamento. Assim, minha pesquisa de mestrado tem o objetivo de discutir como a mobilidade cultural e a fricção entre culturas influencia a produção literária de Gustavo Pérez Firmat.

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Nessa perspectiva de caracterização geral, pretendemos demostrar com este estudo que:

 A articulação de duas culturas na obra de Gustavo Pérez Firmat influencia em sua produção literária e em suas reflexões a respeito do deslocamento cultural e do bilinguismo.

 Escrever autobiografias a partir da experiência do deslocamento e do bilinguismo pode, em efeito, gerar uma poética.

 A fluidez genérica entre o discurso romanesco e o discurso memorial, incorporando o autobiográfico com notória centralidade, são na obra de Pérez Firmat um centro articulador do que poderíamos chamar uma poética do deslocamento.

 A figura do autor é uma criação do escritor para corroborar aquilo que é descrito em sua obra.

Para desenvolver essas hipóteses, organizamos o texto argumentativo desta dissertação em três capítulos. O primeiro capítulo explora o tema das diásporas contemporâneas, como formas singulares do deslocamento. Apelamos, nesse caso, à problematização teórica e à discussão historiográfica. No mesmo capítulo apresentamos um panorama geral da literatura da diáspora cubana nos Estados Unidos, trazendo à baila as polémicas classificações que o discurso crítico cubano tem desenvolvido a respeito desse corpus, para finalmente apresentar algumas coordenadas gerais da obra de Pérez Firmat.

O segundo capítulo está dedicado ao estudo de El año que viene estamos en Cuba. Nesse capítulo a análise está centrada no problema do discurso autobiográfico e o lugar da autoria; no tema da representação e discursivização da memória e no problema do bilinguismo como estética. O terceiro, dedicado ao estudo de Cincuenta lecciones de exílio y desexilio repete o mesmo esquema analítico do capítulo anterior, sendo este relativamente menor em extensão, pois evade a explicação teórica sobre os temas em discussão, explicação que fica fundamentalmente no capítulo 2.

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recuperado o pensamento de Ana Pizarro (2004) sobre a possibilidade de pensar uma área cultural de natureza extraterritorial, configurada no século XX a partir dos processos migratórios de escritores latino-americanos para os Estados Unidos. Para o estudo da diáspora cubana nos Estados Unidos, foram considerados os trabalhos de Rafael Rojas (1999, 2007), Eliana Rivero (2000, 2005) e Pérez Firmat (2000, 2012). Para o trabalho com o discurso autobiográfico e autofiguração do autor, foram consultados clássicos do tema como Lejeune (2014), Pozuelo Yvancos (2006, 2010) e Leonor Arfuch (2010, 2013). No referido ao tema da memória igualmente foram considerados clássicos do tema como Andreas Huyssen (2000) e Le Goff (1996). Já para atender ao problema das estéticas bilíngues em escritores extraterritoriais apelamos à obra de George Steiner (1990) e do próprio Pérez Firmat, especificamente seu ensaio Life on the hyphen (2012).

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CAPÍTULO 1

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1.1. As diásporas: coordenadas teóricas

A noção de deslocamento, de ampla circulação hoje nos estudos da literatura e da cultura, faz referência às mais diversas formas de movimento, não somente físicos ou geográficos, mas também espirituais e culturais. Como argumenta Palmero González:

Pensar a noção de deslocamento no âmbito das ciências sociais e especificamente na órbita dos estudos da cultura significa remeter a diferentes formas de mobilidade, física, espiritual, linguística; a diversas práticas de emigração, exílio, diáspora, êxodos, nomadismos, circulações humanas; é pensar em translado e em trânsitos de todo o tipo, em políticas do movimento e em economias da viagem. Entendido como vivência e prática dos sujeitos, o deslocamento é um conceito fundamental nos estudos sobre imaginário e memória cultural. Entendido como metodologia de trabalho, converte-se em paradigma fundamental para pensar processos culturais. Ou seja, o conceito abarca um amplo universo de significados e de relações, sendo a remissão ao lugar, ou aos neologismos derivados da desconstrução da noção de lugar, o

que articula essa ampla rede conceitual. (2010, p.109).

Concordando com essas colocações, poderíamos dizer que as diásporas constituem formas particulares do deslocamento. Ao mobilizar grandes fluxos humanos elas criam formas comunitárias transnacionais, desenvolvendo amplas redes de intercâmbio de imagens, de ideias, de símbolos.

O termo diáspora refere etimologicamente à ideia de dispersão e de errância. Tradicionalmente foi associado ao êxodo do povo judaico, acentuando-se com isso o sentido de perda, de sofrimento e de necessidade de restaurar uma origem. Mas o conceito de diáspora sofreu uma substancial ressemantização nas últimas décadas, passando a ser expressivo dos diversos movimentos migratórios que caracterizam nossa contemporaneidade. Nesse sentido, pode se dizer que as diásporas são expressivas do momento transnacional atual posto que:

o termo, que uma vez descreveu a dispersão judaica, grega e armênia tem agora significados com um domínio semântico maior, que inclui palavras como imigrante, expatriado, refugiado, trabalhador itinerante, comunidade exilada, comunidade estrangeira, comunidade étnica (TÖLÖLYAN, 1991, apud CLIFFORD, 1999, p. 300).

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“lar” que esse sujeito busca não é um lugar físico, uma localização geográfica, mas um

“lar” metafórico, um lugar dentro de um âmbito cultural capaz de reunir as duas culturas

das quais o sujeito faz parte simultaneamente. Bolaños (2010) afirma, glosando Clifford, que as diásporas precisam ser vistas na dialética do movimento e da fixação, nesse sentido as comunidades diaspóricas aprendem a construir lares longe de seu lar inicial, através da tensão gerada pelo desejo de criar um lugar na dispersão. Após alguns anos de vivência diaspórica, o indivíduo interioriza traços da cultura de adoção, sendo necessária uma negociação entre as duas culturas que agora fazem parte de sua cultura individual. Ao mesmo tempo em que o indivíduo é influenciado pela cultura local, ele também gera mudanças na cultura do país que o acolheu; isto porque existe uma permanente troca entre as culturas diaspóricas e as culturas de adoção.

Considerando que cada diáspora deve ser estudada na sua singularidade histórica, na sua trajetória e contexto particular, porque elas são historicamente concretas (BOLAÑOS, 2012), e levando em consideração o objeto de estudo desta dissertação, faço a seguir algumas considerações sobre a teorização que a crítica cubana vem elaborando em torno à literatura da diáspora cubana em Estados Unidos.

A discussão teórica a respeito da literatura produzida no contexto da diáspora cubana está permeada de opiniões contraditórias. O conceito de literatura do exílio, que foi dominante na crítica cubana dos anos sessenta e setenta, já foi superado na crítica atual, como podemos ver em Rojas (1999), que retomando Certeau e Ginzburg, afirma que o papel da literatura é criar indícios de subjetividades de uma cidadania cultural e que a recusa em aceitar o termo ‘exílio’ para falar sobre a diáspora cubana é comum entre autores deslocados provenientes de Cuba, termo que estaria caindo em desuso de qualquer forma pelo aumento da ocorrência das literaturas diaspóricas, com características mais mutáveis e fronteiras menos rígidas. Rafael Rojas afirma não haver

tanta diferença entre os termos ‘diáspora’ e ‘exílio’, já que o primeiro se referiria aos

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Eliana Rivero (2005) é uma dos autores que demonstra grande resistência a

respeito da utilização do termo ‘exílio’, posto que esse termo remete a uma pátria que

lhes falta, àquilo que não está mais ao seu alcance. O termo ‘emigrante’, assim como

‘escritor deslocado’ são frequentemente utilizados por ela, pois evocam a ideia de estar

apenas fora da terra natal, evitando assim a ideia da perda da pátria evidenciada pelo

termo ‘exílio’. Literaturas de exílios são definidas pela autora como aquelas em que, mesmo estando afastado de seu local de origem, o autor escreve no âmbito da literatura produzida em seu território de origem. Literaturas diaspóricas, por outro lado, seriam as que assumem o entre-lugar cultural.

No entanto a ideia da diáspora associada ao vazio e à perda cultural também aparece em certa crítica cubana, que insiste em definir-se como literatura de exílio. O ato de escrever tem o objetivo, nesse contexto, de preencher o vazio causado pelo sentimento de estar passando por um exílio forçado. Ao escrever, é possível localizar-se dentro da Havana de suas recordações, como se o tempo e a distância não tivessem relevância alguma. Cuba se transforma em um lugar de ficção, uma Cuba fantástica que é criada e recriada a cada momento da expressão artística, podendo em um momento ser o paraíso perdido e, em outro, o próprio inferno na terra, dependendo do conteúdo do que é lembrado e do que é contado. Nesse caso, a diáspora amplia o conceito de cultura cubana através das fronteiras nacionais, o que vai de encontro à quando Pérez Firmat (2012) afirma ser possível ser cubano de Havana ou cubano de Miami.

O lugar da experiência diaspórica é um lugar em constante mutação, em constante troca entre as duas culturas envolvidas que são continuamente traduzidas uma pela outra, influenciando e sendo influenciadas simultaneamente. As estéticas diaspóricas são sempre expressivas da mistura, da recodificação e da mútua fertilização.

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1.2. As diásporas: coordenadas histórico-literárias

O modelo mais tradicional de historiografia literária na América Latina e no Caribe não se afasta do modelo historiográfico que dominou a cultura ocidental nos séculos XIX e boa parte do século XX: o impacto de um modelo positivista que privilegiava a classificação linear de escolas e épocas literárias, que ignorava as particularidades das obras e que se concentrava em causalismos literários. O idioma e o local de produção da obra eram parâmetros fundamentais para definir as literaturas nacionais.

É na segunda metade do século XX que se verifica na historiografia literária hispano-americana um interesse por visualizar nossos processos literários com outra espessura. Deve-se a Angel Rama um entendimento não linear de nossos períodos e históricos literários. Como explica o critico uruguaio, o estudo da literatura na América Hispânica esteve, durante muitos anos, limitado ao estudo de uma: “história literaria

lineal, progresiva y sin espessor”1

(1975, p.95), estruturando-se como um continum linear, no qual as rupturas foram dissimuladas e racionalizadas pelos causalismos literários. Nesse sentido explica:

[…] esas secuencias literarias corresponden a periodos históricos pero no los

agotan. En cada uno de ellos […] encontraremos superpuestas diversas secuencias literarias, como verdaderos estratos artísticos que confieren al periodo espesor y lo dotan de una específica dinámica literaria que duplica la dinámica social propia de una estratificación social. Son proposiciones literarias diferentes y autónomas, a veces enfrentadas o simplemente contiguas, cuyo reconocimiento desbarata el sistema plano y linear de las histórias literarias recibidas 2 (RAMA, 1975, p.97)

Outro elemento que começa a entrar em crise na segunda metade do século XX é a primazia do conceito de Estado-nação para definir o que é efetivamente ‘literatura

1 Uma história literária linear, progressiva e sem espessura.

N.de T.: Todas as traduções da obra de Gustavo Pérez Firmat assim como as traduções dos textos críticos citados neste trabalho são de minha autoria, somente para efeitos desta Dissertação de Mestrado.

2 Essas sequências literárias correspondem a períodos históricos mas não os esgotam. Em cada um deles

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nacional’. Cornejo Polar (1971) advertia que o conceito tradicional de literatura nacional

não era amplo o suficiente para abarcar as diferentes características das obras literárias produzidas dentro de um mesmo território geográfico. Cornejo Polar pensava nos vários sistemas literários que convivem nisso que chamamos de literatura nacional. Precisaríamos somar a essa realidade o fato de existir uma literatura nacional produzida fora do território nacional.

Como encaixar no cânone literário que se utiliza apenas dos limites geográficos para classificar a literatura de um país no caso de um escritor diaspórico que escreve simultaneamente em sua língua materna e na língua de seu país atual de residência? Essa parece ser hoje uma pergunta fundamental para os estudos historiográficos hispano-americanos. Para abarcar as novas realidades diaspóricas do século XXI é necessário que haja uma revisão dos conceitos utilizados nos estudos literários para que seja possível refletir sobre os sistemas literários a partir de suas pluralidades. Seguindo essa linha de raciocínio, retomo o conceito de áreas culturais desenvolvido por Ana Pizarro (2004), que vem paulatinamente substituindo o tradicional conceito de literatura nacional.

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entre-lugar das culturas latino-americana e anglo-americana, é uma via de mão dupla em que ambas as culturas são influenciadas uma pela outra. Essa dinâmica gera aspectos culturais únicos que influenciam a produção literária dos escritores que convivem nesse meio. Como aponta Ana Pizarro:

El interés por el estudio del área caribeña tuvo su impulso alrededor de los años sesenta del siglo XX, en que las migraciones hacia los Estados Unidos por razones económicas, políticas y sociales comenzaron a darse con mayor vigor. Estas migraciones, que habían sido precedidas por las de los mexicanos y luego los centroamericanos por razones de inestabilidad política y económica, también irían a ver la emergencia de una nueva área cultural en el ámbito latinoamericano: la de los «latinos», un país de treinta millones de habitantes dentro del país mayor, que vive en distintos grados una situación peculiar. Es la de culturas de entre lugar, campos que se construyen en la negociación, en el desarraigo, en el desasosiego de un espacio no territorializado en que dos culturas se penetran, se dislocan, se repelen, se aproximan en medio de un imaginario en el que se plasman culpabilidades, esperanzas, nostalgias, negaciones, proyectos. El espacio de una muerte cultural, el espacio de un nacimiento, el de una transformación, en fin, con todos los dolores y alegrías que ello implica3. (PIZARRO, 2004, p.195)

Uma nova historiografia literária deve ser pensada a partir dos novos movimentos de trânsito de pessoas que caracterizam nossa contemporaneidade. Quando se fala de literatura cubana posso estar fazendo referência à obra de Gustavo Pérez Firmat – cubano exilado há décadas nos Estados Unidos, posso estar fazendo referência à literatura produzida em Cuba por mulheres, ou à literatura produzida por uma comunidade negra numa região rural do país. Ou seja, pensar o sistema literário cubano, seria pensar em múltiplos sistemas que coabitam num mesmo segmento temporal, que se sobrepõem e até que se contestam na dinâmica vida cultural cubana.

3 O interesse pelo estudo da área caribenha teve seu impulso por volta dos anos sessenta do século XX,

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1.3. A literatura da diáspora cubana nos Estados Unidos: a literatura cubano-americana

A cultura cubana sempre esteve perpassada por outras culturas. De acordo com Álvares Bonald (2009), a constituição da cultura cubana esteve fortemente influenciada pelas sucessivas migrações de chineses, africanos e espanhóis. Essas sucessivas ondas migratórias marcaram o caráter da cultura cubana, permitindo a Fernando Ortiz elaborar toda sua teoria da transculturação.

Cuba é terra de permanentes trânsitos. Sua singular situação geográfica mediterrânea lhe permitiu, durante séculos, ser um espaço de intenso diálogo cultural com o mundo. Acrescente-se a isso o fato de historicamente ter sido produzida uma parte considerável de sua criação artística fora dos limites geográficos da ilha, em contato fértil com outras culturas. Consideremos, por exemplo, nos exílios políticos dos poetas românticos cubanos, durante o século XIX; na obra de José Martí, uma das figuras mais lúcidas do modernismo hispano-americano, produzida nos Estados Unidos; no intenso movimento entre a ilha e Europa durante as vanguardas do século XX; ou no intenso movimento intelectual cubano dos últimos cinquenta anos, produzido em terras norte-americanas. Nessa perspectiva, literatura cubana e diáspora são termos em permanente diálogo histórico.

A literatura cubana da diáspora é estudada por inúmeros críticos e teóricos da literatura que possuem pontos de vistas conflitantes e, por muitas vezes, contraditórios sobre as classificações possíveis desse tipo de produção artística. Para fundamentar melhor a teoria a ser desenvolvida nos próximos capítulos, irei fazer um breve panorama sobre essas classificações que considero mais importantes para compreender as obras literárias estudadas.

A classificação polêmica elaborada por Gustavo Pérez Firmat no ensaio Trascender el exílio: La literatura Cubano-americana, hoy (Fornet, 2000, p. 13), com a qual não compactuo, define três tipos de escritores:

1) O ‘escritor imigrante’, aquele que não tem o desejo de voltar ao seu país de

origem, sua escrita é voltada para o futuro. Como argumenta Pérez Firmat:

La literatura de inmigrantes la escriben aquellos que vinieron a establecerse en el país sin ninguna intención de regresar a sus respectivos lugares de

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seguir siendo su país, aquel que ya no quiere que su tierra siga siendo su

terruño. Es por eso que el inmigrante escribe “prospectivamente”: sus obras,

en un movimiento que resulta ser típico, van alejándose del idioma de partida y acercándose al idioma de llegada. Este último, en la literatura de los inmigrantes, va desplazando a la lengua materna, y ese vuelco lingüístico es el indicio de un renacimiento: el inmigrante vuelve a nacer, esta vez en su nuevo país 4 (Apud Fornet, 2000, p.17).

2) O ‘escritor exilado’, aquele que, apesar de distante de sua terra natal, busca

reafirmar seu pertencimento ao país de origem pois considera-se ‘em trânsito’, podendo em um futuro retornar ao seu país natal, por isso não tem interesse em fincar raízes na cultura que habita temporariamente, e sua escritura parte do passado. Coloca Firmat:

El exiliado no desea en lo más mínimo establecer rupturas o distancias entre su patria y su país. Puesto que se ve a sí mismo como un transeúnte y no como un colono, su literatura se caracteriza, de un lado, por una alergia pronunciada hacia los préstamos culturales, y del otro, por un apego obsesivo

a la cultura de origen. Si la literatura del inmigrante es “prospectiva”, la

literatura del exiliado es desaforadamente retrospectiva […] la literatura del

exilio suele estar escrita en la “lengua materna”; el empleo de un segundo

idioma sería un síntoma intolerable de disociación cultural. Para el escritor del exilio la vida está en otra parte; debido a su visión retrospectiva, sus escritos son interminables variaciones sobre los temas de la alienación y el regreso.5 (Apud Fornet, 2000, p.18-9)

3) O ‘escritor étnico’, não está interessado em discutir a assimilação da cultura

local ou a possibilidade de regresso à sua terra natal, pois celebra sua dualidade. Como um anfíbio cultural vivendo simultaneamente em ambas as culturas, o escritor étnico se

4

A literatura de imigrantes é escrita por aqueles que se estabeleceram no país sem nenhuma intenção de

regressar aos seus respectivos lugares de origem […] o imigrante é aquele que decidiu que sua pátria não pode continuar a ser seu país, aquele que já não quer que sua terra continue a ser o seu chão. É por isso

que o imigrante escreve “prospectivamente”: suas obras, em um movimento que se torna típico, vão se afastando do idioma de partida e se aproximando do idioma de chegada. Esse último, na literatura dos imigrantes, vai deslocando a língua materna, e essa inversão linguística é o indicio de um renascimento: o imigrante volta a nascer, desta vez em seu novo país.

5 O exilado não deseja de nenhuma maneira estabelecer rupturas ou distâncias entre sua pátria e seu país.

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utiliza dos dois idiomas, o materno e o de adoção, dependendo das circunstâncias de sua escritura. Assim, Firmat afirma:

La literatura étnica […] no es ni prospectiva ni retrospectiva. El escritor de esta categoría no está interesado ni en la asimilación ni en el regreso; de hecho, su obra trata de explorar el sentido de lo que significa rechazar ambas opciones. En otras palabras, si la literatura del inmigrante se define por su otredad con respecto a la cultura de origen, y la literatura del exilio por su otredad con respecto a la cultura de adopción, la literatura étnica se define por su otredad con respecto a ambos puntos, el de partida y el de llegada […]

el escritor “étnico” no cultiva la identidad sino la diferencia.6 (Apud Fornet,

2000, p.20).

Observe-se que no que se refere ao uso do idioma, Pérez Firmat define que a literatura de exílio é escrita no idioma do país de origem, sua língua materna, a literatura étnica é escrita nos dois idiomas (materno e adotado) ou até mesmo numa mistura dos dois, já escritor imigrante escreve obras que vão gradativamente se afastando do idioma de partida para se aproximar do idioma local.

Considero a classificação de Pérez Firmat polêmica porque toda classificação tão fechada e excludente tende a desestimar as singularidades; porque a ideia de

‘escritor étnico’ introduz uma falsa e negligente identificação entre cultura e etnia; e porque verifico uma contradição entre a posição de Firmat como teórico e sua posição como escritor literário. No seu discurso teórico, ele se coloca como exilado, mas como veremos no desenvolvimento desta dissertação, sua obra literária expressa o fertilizante encontro de duas culturas. Etnia se refere à origem de cada povo, ao local de onde vieram, sendo assim, uma mesma etnia pode possuir diferentes traços culturais. Dois indivíduos que dentro dos Estados Unidos façam parte da etnia cubana não compartilham necessariamente dos mesmos traços culturais. Por outra parte, neste ensaio, o autor afirma que não foi produzida nenhuma obra realmente significativa por nenhum escritor cubano de Miami, o que me leva a questionar como ele vê a si mesmo e como classificaria suas obras literárias.

6A literatura étnica […] não é nem prospectiva e nem retrospectiva. O escritor dessa categoria não está

interessado nem na assimilação e nem no regresso; de fato, sua obra trata de explorar o sentido do que significa recusar ambas opções. Em outras palavras, se a literatura do imigrante se define por seu afastamento em relação à cultura de origem, e a literatura do exílio por seu afastamento com relação à cultura de adoção, a literatura étnica se define por seu afastamento em relação a ambos os pontos, o de

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A classificação apresentada por Eliana Rivero em Cubanos y cubanoamericanos: perfil y presencia en los EE.UU (Fornet, 2000) faz referência a dois tipos de literatura produzidas no contexto da diáspora:

1) A literatura hispana nativa, referida à produção de escritores latinos que nasceram nos Estados Unidos ou que chegaram ao território americano muito jovens e cresceram em um entorno cultural híbrido.

2) A literatura hispana emigrada, referida a uma literatura produzida sob uma conexão afetivo-cultural com a literatura de seu país de origem, utilizando-se de sua língua materna para escrever.

Rivero não desmerece que com o passar do tempo alguns escritores emigrados vão adquirindo características diferentes à medida que vão tomando consciência que sua residência é permanente, adotando o idioma local em sua escritura.

Diferenciando ‘cubanos’ de ‘cubanoamericanos’, Rivero afirma que o primeiro

grupo, uma geração que emigrou em 1959, desenvolve uma mentalidade transitória do desterro e está emocionalmente localizado em Cuba, como se não vivesse nos Estados Unidos, desenvolvendo uma cultura ancorada na tradição cubana pré-revolução e

resistente a se adaptar a uma nova realidade. Já os ‘cubanoamericanos’ são definidos como a geração mais jovem, que emigrou na infância ou adolescência e se consideram biculturais e bilíngues, com uma menor negatividade em relação ao fato de estar nesse entre-lugar de duas culturas.

Rivero não contempla em sua classificação ao escritor cubano residente nos Estados Unidos que assume essa condição de maneira menos conflituosa na medida em que se considera parte de uma cultura pós-moderna e translocal como a do mundo de hoje. Pode-se pensar que a data de elaboração do ensaio influencie nessa ausência, se consideramos que essa realidade é muito mais própria de uma geração mais contemporânea.

Posteriormente, na obra Life on the hyphen: the cuban-american way (2012), Pérez Firmat afirma que a cultura cubana é definida mais por conluio do que por

colisão, criando uma nova definição, a geração ‘um e meio’.

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‘geração antiga’, os membros da geração ‘um e meio’ se formaram no entre-lugar das culturas cubana e norte-americana, não fazendo parte unicamente do antigo mundo cubano nem do novo mundo americano. Habitar o hífen é, segundo Pérez Firmat (2012), o destino dessa geração, que pode transitar de forma igualmente livre entre as duas culturas. Apesar da possibilidade de não se sentirem completos ao situarem-se em

uma ou outra cultura, os membros da geração ‘um e meio’ possuem a característica

única de poderem escolher quais traços de cada cultura, idioma e costumes desejam utilizar de forma ativa em seu cotidiano, não estando, dessa forma, limitados a apenas uma cultura. O hífen se torna uma ponte entre as culturas, e não uma divisão. A geração

anterior à geração ‘um e meio’ proclama sua cubanidade, ao passo que a geração posterior é, irremediavelmente, americana, tendo sua ‘cubanía’ restrita quase que unicamente ao seu sobrenome. Para essa geração posterior, Cuba é uma abstração ainda

maior do que para a geração ‘um e meio’, como vemos em diversos momentos da obra

El año que viene estamos en Cuba, de Gustavo Pérez Firmat.

Definindo aculturação como a aquisição de uma cultura por apagamento da anterior, e transculturação como passagem e síntese de culturas, Pérez Firmat (2012) se

utiliza do termo ‘biculturação’7 para caracterizar a geração ‘um e meio’, referindo

-se não só ao contato entre as culturas, mas também à situação em que duas culturas distintas entram em equilíbrio de tal forma que se torna difícil separá-las e classificá-las em dominante e dominada. O indivíduo dessa geração é simultaneamente membro de ambas as culturas: por ter chegado aos Estados Unidos em sua primeira infância e por ter passado pouco tempo em Cuba para definir-se apenas como cubano e, ao mesmo tempo, por ter passado tempo demais em Cuba para definir-se apenas como americano.

A chamada geração ‘um e meio’ é o elo entre a família cubana (os progenitores) e a nova família (os descendentes norte-americanos). Diz Pérez Firmat:

Con la muerte de los viejos de la familia, Cuba se nos está muriendo también. Es como mi padre con su almacén, que se le ha ido desmoronando paulatinamente, año tras año. Mientras más pasa el tiempo, más se confunde nuestra Noche buena con la Navidad. Hace años que ningún amigo o pariente se aparece en casa de mis padres a las tantas de la noche. Si alguien lo hiciera, encontraría las luces apagadas y a la gente dormida. A medida que la celebración se centra en los nietos, la Nochebuena se va convirtiendo en la víspera de la Navidad, en Christmas Eve - más una anticipación del día

7

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siguiente que una fiesta autónoma. Con la incorporación de americanos a la familia, hasta el lenguaje de la fiesta se ha ido deslizando hacia el inglés, un idioma que mi madre maneja con facilidad pero que a mi padre no le gusta hablar.8 (PÉREZ FIRMAT, 1997, p.127)

A comunidade cubana que se radicou em Estados Unidos por causa do triunfo da Revolução, como foi o caso da família Pérez Firmat, tendeu a criar um simulacro de Cuba nos Estados Unidos, reproduzindo o tipo de música que escutava na ilha, utilizando-se de seu idioma materno, reproduzindo costumes e até mesmo nomeando estabelecimentos e ruas com nomes que fazem referência a sua terra natal. No entanto, não demorou muito para que essa ‘bolha’ de cultura cubana fosse invadida pela cultura americana, e até mesmo atravessada por traços de outras culturas das demais comunidades exiladas que transitam por esse mesmo espaço geográfico.

Essa tentativa de reproduzir a comida, a cultura, os costumes e o idioma de sua terra natal, bem como a reprodução de tradições cubanas (como no episódio que faz referência à ‘Noche Buena’ citado anteriormente), não é capaz de reproduzir integralmente a cultura da terra natal; os ingredientes utilizados no preparo da comida, os instrumentos utilizados para produzir a música, os locutores que apresentam programas de rádio não são exatamente aqueles existentes em Cuba, e as tradições

cubanas são, inevitavelmente, mescladas à cultura americana na qual a geração ‘um e meio’ é exposta na escola, no trabalho e na convivência social. O esforço para recriar a

Cuba do momento da partida (a chamada Cuba de ayer) na Miami de hoje está fadado ao fracasso pela impossibilidade do indivíduo (e da comunidade de cubanos na qual está inserido) de isolarem-se completamente da cultura americana.

A língua é um dos elementos que com mais força expressa a negociação cultural. O espanhol também acaba por ser influenciado pelas diferentes variedades de língua espanhola de outros grupos emigrados que circulam pelo mesmo espaço ou habitam a mesma região, como mexicanos, peruanos ou espanhóis. Vale ressaltar também que não

8 Com a morte dos mais velhos da família, Cuba também está morrendo para nós. É como meu pai com

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é possível evitar a influência do inglês na escrita e na oralidade, posto que não é

possível viver em uma ‘bolha’ de cubanidade.

A literatura cubano-americana possui características únicas, como o fato de ser majoritariamente produzida em inglês, elemento que a diferencia de outras literaturas hispânicas dos Estados Unidos. Porém, a escrita cubano-americana, apesar de ser majoritariamente produzida em inglês, não abandona completamente o espanhol e o utiliza principalmente com fins estéticos; utilizar o espanhol é uma maneira de reafirmar parte de sua identidade como cubano. Os escritores cubano-americanos mais jovens utilizam-se do inglês com mais frequência porque esse é o idioma que utilizam diariamente; o espanhol é um idioma familiar, mas ao mesmo tempo é um idioma estrangeiro. Pérez Firmat (2012) afirma que a literatura cubano-americana é originada pelo exílio, mas que não pode ser classificada como literatura do exílio porque não tem suas raízes profundamente inseridas na realidade da Cuba, mas sim na realidade dos que estão fora da Cuba.

No caso dos cubanos diaspóricos, Pérez Firmat (2012) delimita três modos de pensar sobre o ser cubano: a cubanidad, o cubaneo e a cubanía. Cubanidad é definida como a nacionalidade impressa em passaportes e certidões; cubaneo é o conjunto de gestos, costumes, um estado de ânimo definido como uma característica nacional. Já cubanía, é a consciência de ser cubano e a vontade de querer continuar a ser cubano. Cubanía independe do local de residência e “Touched by cubanía, the chronic exile no longer feels like a stranger in his own skin.”9 (PÉREZ FIRMAT, p.192, 2012) Assim, a relação com Cuba tem a ver com a criação de uma atmosfera que não pode ser vista nem tocada mas sentida, com a mesma sensação familiar de seu primeiro nome, lembrando algo que foi perdido.

1.4. A obra de Gustavo Pérez Firmat

No contexto da literatura cubano-americana, Gustavo Pérez Firmat é um dos escritores de maior destaque. Ocupa esse lugar não só pela qualidade de criação ficcional e pela extensa obra poética, mas também por ser um profundo estudioso das culturas em deslocamento cultural, da literatura latino-americana e da literatura cubana.

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É possível afirmar que a obra literária de Pérez Firmat gira, na sua totalidade, em torno do tema da diáspora e da relação conflituosa, porém produtiva, que o artista diaspórico tem como habitante do entre-lugar cultural.

Tendo publicado obras em inglês e espanhol, e até mesmo traduzido algumas obras suas do espanhol ao inglês, Pérez Firmat faz parte de um sistema literário que contesta permanentemente as formas mais tradicionais de fazer história da literatura, fundamentalmente por colocar em xeque um falso conceito de literatura nacional, ancorado na noção de território, Estado-nação e língua nacional.

No caso de Pérez Firmat, que domina com habilidade o idioma espanhol e o inglês, além de afirmar-se tanto cubano quanto cubano-americano, qualquer classificação nos moldes historiográficos mais tradicionais é falha, posto que o pertencimento a uma cultura está ligado à visão de mundo e à resposta emocional do indivíduo às características culturais de determinado país.

No caso específico da obra El año que viene estamos en Cuba, escrita primeiramente em inglês e traduzida pelo próprio autor ao espanhol, fica mais evidente a presença da influência de estruturas da língua inglesa na versão em língua espanhola. Ocupando um lugar estratégico por ser simultaneamente o escritor e o narrador, Pérez Firmat optou por manter algumas expressões em inglês ao longo da obra pois, segundo ele, não é possível apagar os traços de sua cultura cubana e da língua espanhola em sua cultura estadunidense na versão original da obra, e tentar fazê-lo na tradução do livro que discute exatamente essa questão tornaria a escrita falsa e artificial.

Esta obra, construída com as características de um romance, tem o objetivo de contar a história do personagem- narrador Gustavo Pérez Firmat, homônimo do escritor, desde sua saída de Cuba, passando pelo seu crescimento e vida atual nos Estados

Unidos. Para evitar ambiguidades, sempre que me referir a “Gustavo”, deixarei clara a

distinção entre o personagem e o escritor. É necessário frisar que de acordo com Arfuch, um narrador não é autobiográfico apenas porque se apresenta como tal. Mesmo ao se propor a contar determinados fatos da mesma forma que ocorreram, não é possível

garantir que a ficção não irá se ‘infiltrar’ nessa narrativa. Ao longo de nove capítulos,

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sobre como definir a si mesmo, o que é feito ao longo da obra através de inúmeros adjetivos como cubano, cubano-americano, redneck cubano, exilado, entre outros.

O deslocamento é tema sempre presente ao longo do processo da narração e construção da história do personagem. É membro de uma família cubana que abandonou Cuba imediatamente após o triunfo da Revolução de 1959 e vive em Miami e mais tarde, sendo adulto, vai estudar na Carolina do Norte, onde se estabelece com sua nova família.

Sendo o personagem casado com uma norte-americana e pai de dois filhos que, assim como sua esposa, não falam espanhol, cada episódio em que o personagem

Gustavo opta por ler ou escutar músicas cubanas para ‘reavivar’ seu lado cubano em

detrimento de seu lado estadunidense, o faz sozinho, o que gera um afastamento emocional e físico temporário de seu núcleo familiar. O deslocamento físico de um país para o outro acaba por gerar um deslocamento emocional individual. O personagem está deslocado espacialmente em relação à cultura de um país que não habita mais desde sua infância.

Dessa forma, o deslocamento se torna parte da cultura desse sujeito, que passa a estar situado no entre-lugar das culturas cubana e estadunidense, simultaneamente. É necessário manter uma postura crítica como leitores perante o discurso do personagem, para descobrir se aquilo que lemos se trata verdadeiramente dos sentimentos do personagem ou de uma bem elaborada estratégia discursiva, na qual o jogo e certo sentido paródico fazem parte de sua reflexão identitária. Considerando-se muito americano para ser puramente cubano e muito cubano para ser puramente estadunidense, o personagem está em constante conflito interior e promove frequentes (e infrutíferas) tentativas de separar uma cultura da outra.

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1ª pessoa que se pretende autobiográfico, em nenhum momento somos apresentados a seu nome, apenas sabemos mais a respeito de sua personalidade e história a cada lição apresentada.

Na obra Cincuenta lecciones de exílio y desexilio vemos uma ênfase maior na discussão em relação ao bilinguismo que é usado como símbolo e ponte para discutir o biculturalismo do narrador-personagem. Por tratar-se de uma narração fragmentada que faz maior uso estilístico dessas metáforas, é mais explicita a contradição de sentimentos do narrador-personagem sobre sua biculturalidade e sobre como mover-se dentro de sua cultura múltipla e sobre continuar nos Estados Unidos ou voltar a Cuba. Voltar a Cuba, como explicitado na obra El año que viene estamos en Cuba seria voltar sozinho, deixando para trás toda a vida construída nos Estados Unidos e sua família direta (esposa e filhos) que não falam espanhol e tem pouco contato com a cultura cubana. Esse contato se dá através do personagem Gustavo e dos demais membros cubanos de sua família. No entanto, como Gustavo passa a maior parte do tempo falando inglês inserido na cultura estadunidense (no momento da narração o personagem trabalha em uma universidade norte-americana e não vive mais em Miami), seja na sociedade, seja no âmbito familiar, a exposição de seus filhos e esposa à cultura cubana é feita em doses homeopáticas, quando o personagem escuta música cubana pela casa ou recebe visita de sua família, e em doses quase inconscientes, quando um gesto, uma maneira de Gustavo abordar determinado assunto remetem à sua cultura cubana, sua cultura materna interiorizada desde o nascimento, ao contrario da cultura estadunidense que precisa

‘conquistar’ seu espaço. Na obra fica claro esse conceito quando o personagem afirma:

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destino, una forma de vida, y no una circunstancia pasajera. Es una cuestión de esencia y no de residencia. 10 (PÉREZ FIRMAT, 2000, 176-7)

Inúmeras características fazem parte da cultura desse sujeito deslocado: é cubano, é exilado, é americano - por todas as décadas vividas nos Estados Unidos, é filho de cubanos e pai de americanos. O deslocamento propicia a convivência de todas essas identidades culturais em uma mesma pessoa, que no caso do personagem está em constante processo de negociação e escolha entre as culturas na qual está inserido, o que influencia permanentemente sua escritura e sua visão de mundo.

10 Há anos me angustiava pensar que meus filhos cresceriam como norte-americanos. O cubano dentro de

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CAPÍTULO 2

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2.1. O discurso autobiográfico e a autofiguração autoral

A autobiografia é um gênero que goza de grande popularidade atualmente e tem, a cada dia mais, contado com novas publicações que alcançam um público cada vez maior. Por esse motivo essas obras tem sido objeto de recentes estudos acadêmicos que buscam delimitar as particularidades desse modo singular de construir a narrativa.

O estudo das autobiografias gera muitas controvérsias, e mesmo estudiosos que se dedicam há décadas ao tema, como Lejeune, escrevem teorias que apresentam certas incongruências, contradições internas e entram em choque com teorias posteriores desses mesmos estudiosos. Considerando que El año que viene estamos em Cuba se apresenta como uma autobiografia faremos uma breve apresentação teórica do tema, sem que necessariamente seja este um inventário geral da teoria literária sobre o tema da autobiografia.

Lejeune (2014) iniciou os estudos da autobiografia como novo gênero narrativo com uma tentativa de defini-lo pragmaticamente: “Narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual,

em particular a história de sua personalidade.” (LEJEUNE, 2014, p.16). Lejeune afirma

também, mais adiante em seu estudo, que a premissa principal para uma autobiografia é que narrador, personagem e autor compartilhem do mesmo nome e de história de vida semelhante, que deve ser o objeto principal da obra contada em texto narrativo. Outra denominação que tem ganhado espaço no meio acadêmico e literário é o de Autoficção.

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Nos anos seguintes, tentei estudar analiticamente uma série de gêneros

‘fronteiriços’ ou de casos–limites: a autobiografia que finge ser uma biografia (a narrativa em terceira pessoa), a biografia que finge ser uma autobiografia (as memórias imaginárias), todos os mistos de romance e autobiografia (zona ampla e confusa que a palavra–valise ‘autoficção’, inventada por Doubrovsky para preencher uma casa vazia de um de meus quadros, acabou por preencher) (LEJEUNE, 2014, p.94)

Para Pozuelo Yvancos ‘autoficção’ é a definição que Lejeune falhou em

encontrar em sua obra O Pacto autobiográfico. O estudioso espanhol nos apresenta a

definição: “ la autoficción es en primer lugar, un dispositivo muy simple; se trata de un relato cuyo autor, narrador y protagonista comparten la misma identidad nominal y cuyo

intitulado genérico indica que se trata de una novela.” 11

(POZUELO YVANCOS, 2010, p. 17).

Autoficção, como explicitado por Lejeune, nos parece um termo ainda muito amplo que necessitaria de um posterior estudo para definir melhor as características do tipo de obra que pode ser incluído nessa classificação. Para o presente estudo nos focaremos nas definições e nos estudos que se referem especificamente à autobiografia, dado a maior abrangência de estudos sobre esta denominação, que acreditamos compartilhar mais características com as obras estudadas e se adequar melhor à nossa proposta de pesquisa.

O pacto biográfico, como definido por esse Lejeune, é um contrato de leitura no qual ambos, autor e leitor, contribuem de alguma forma para que a obra seja compreendida como sendo baseada na vida de uma pessoa real. O pacto tem o objetivo de afirmar a veracidade do que é narrado, legitimando a identidade do autor como personagem e como narrador. O leitor também é considerado parte fundamental do pacto autobiográfico posto que ao ler a obra terá que decidir – mesmo que essa decisão seja inconsciente – acreditar que se trata de uma autobiografia ou refutar essa afirmativa e ler a obra como uma escrita de ficção. O leitor precisa questionar e entender quem é

esse ‘eu’ que fala no texto; é necessário refletir se quem fala é o eu real ou um eu

inventado, uma nova personalidade que compartilha do mesmo nome do autor e apenas alguns traços de sua história. Aquele que fala não é necessariamente aquele que escreve:

11

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é no nome próprio que pessoa e discurso se articulam [...] todos utilizam ‘eu’

pra falar de si, mas esse ‘eu’, para cada um, remeterá a um nome único que

poderá, a qualquer momento, ser enunciado. Todas as identificações (fáceis, difíceis ou indeterminadas) acabam fatalmente convertendo a primeira pessoa em um nome próprio. (LEJEUNE, 2014, p. 26)

A autobiografia é entendida como um caso particular de construção da narrativa, o ato de escrever sobre si mesmo é uma tentativa de criar sua própria identidade narrativa e individualizar–se. No entanto, isso nos leva a um questionamento básico sobre o gênero: é possível ser completamente verdadeiro sobre sua própria história, quando a visão dos atos é permeada pelo modo que nos sentimos no momento dos acontecimentos e sendo a nossa visão limitada, não abrangendo os sentimentos dos demais indivíduos envolvidos no desenrolar da ação?

Como a autobiografia pode assumir muitas formas – não podemos limitar o pertencimento ao gênero autobiografia somente a obras que se constituam através de narrador em 1ª pessoa, ou em que o narrador personagem seja homônimo do autor– é possível analisá–la através de diferentes enfoques, tornando seu campo de estudo muito amplo. Toda escrita, toda produção narrativa traz algum traço da personalidade e da visão de mundo de quem a escreveu. No caso de uma produção autobiográfica, a narrativa estará atravessada por características da sociedade cultural na qual o escritor está inserido, bem como também estará sujeita a influência dos demais sujeitos – família, colegas de estudo ou trabalho, vizinhos, pais, professores – que conviveram com esse autor ao longo de sua vida.

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retratar atitudes que poderiam ser qualificadas com intenção de prejudicar outras pessoas, busque justificar a si mesmo, modificando os fatos e os próprios sentimentos para ter o leitor como aliado do seu ponto de vista.

O fato de o escritor Gustavo Pérez Firmat ser um professor universitário e escritor com inúmeras obras publicadas e tendo recebido inúmeros prêmios possivelmente influencia seu posicionamento no momento da escritura, posto que existe nesse caso uma reputação a zelar pelo fato do narrador-personagem levar o mesmo nome do autor.

Retomando a discussão a respeito da correspondência entre o nome do personagem principal da obra e do autor, faço referência à questão apresentada pelo personagem, em El año que viene estamos en Cuba, de seu nome não ser adequadamente pronunciado ou traduzido à língua inglesa. O personagem narrador Gustavo da obra El año que viene estamos em Cuba afirma não se sentir completamente americano, frequentemente enfrentando situações curiosas porque seu nome de origem hispânica, muito longo para os padrões americanos, se torna uma mistura incompreensível de palavras em situações corriqueiras como solicitar um cartão de credito. Além da adaptação cultural na escola, outra dificuldade vivida pelo personagem foi a dificuldade dos americanos pronunciarem seu nome corretamente, posto que seu nome hispânico era de pronuncia muito distinta e pronunciá-lo corretamente era tarefa quase impossível para os anglo falantes, o que o levou a adotar o nome ‘Gus’ no desespero de conseguir adaptar-se. Retomando a teoria de Lejeune, que afirma que para haver autobiografia é necessário que autor, narrador e personagem compartilhem o mesmo nome, o episódio em que o personagem adota um novo nome – Gus– ou o episódio em que nos conta que seu nome foi convertido em um conjunto único –

“Gustavoperezfirmat”, assim mesmo, sem espaços –, e sendo o nome próprio a maneira com a qual nos definimos e nos apresentamos ao mundo, nos fazem conjecturar sobre qual persona Gustavo assumia naqueles momentos – seria “Gus” um alguém completamente novo, afastado de suas raízes cubanas e mais próximo à cultura

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fosse afastada também de meu nome? Além disso, seria esse ‘Gus’ um alter-ego do narrador-personagem, um novo personagem que não está necessariamente ligado à figura do autor, já que ambos não compartilham o mesmo nome?

Numa obra que se afirma como autobiografia, a figura do autor passa a ter um papel mais central no desenvolvimento da narrativa, o espaço narrativo com o autor como objeto central se torna o foco da obra. Quem é esse autor que se apresenta como personagem de sua própria obra? Quais estratégias narrativas são utilizadas na construção dessa figura do autor que fala sobre si mesmo?

O texto é uma expressão narrativa feita através da linguagem que busca recontar e representar o mundo, mas não é o próprio mundo. Sendo assim, é necessária a construção de uma figura de autor como personagem, figura esta que não necessariamente corresponde à figura do escritor real da obra.

A obra El año que viene estamos en Cuba é narrada pelo personagem Gustavo Pérez Firmat, homônimo do autor do livro, que conta a história de sua família desde sua primeira infância em Cuba, passando pelo trauma do exílio e sua vida posterior nos Estados Unidos. Apesar de contar com inúmeras digressões do narrador–personagem e lembranças de outras pessoas da família do personagem que são inseridas no momento da narração com o objetivo de preencher os vazios de sua própria memória, a obra se mantém firme no objetivo de contar a saga do personagem que cresce em um ambiente bicultural e bilíngue. Fazendo uso de inúmeras digressões e rememorações e de tempo não cronológico na narrativa, o passado que é narrado se torna presente no momento da narração, o que gera um turbilhão temporal: o Gustavo adulto narra as memórias do Gustavo criança, mas acrescenta fatos que o Gustavo criança desconhecia quando os fatos se desenrolaram. Esse turbilhão temporal gerado pela desenrolar da narrativa, que é feito de forma muito semelhante a uma conversa oral. A discussão a respeito da questão do tempo da narrativa será retomada mais a frente.

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narrativa o que é fato verídico atribuído a um personagem literário e a um autor irreais e o que efetivamente ocorreu na vida do escritor.

Considerando a totalidade de ambas as obras, não é possível definir o quanto de cada uma é preenchido por fatos reais e o quanto é resultado de um fazer narrativo, do ato de escritura. Um questionamento que surge é: qual o objetivo do autor ao criar um personagem com seu nome e, teoricamente, mesma história de vida? Além de discutir a questão bicultural o escritor não pretenderia trazer o leitor para mais perto de seus sentimentos, legitimando certos comportamentos que foram tomados na vida real mas retratados de forma diferente? A resposta que suponho corresponder a essa pergunta é que a obra literária seria uma tentativa de justificar a pessoa que se tornou, dentro e fora do livro, sendo que somente o personagem dentro do livro é passível de ser justificável, posto que não é possível separar perfeitamente ficção de realidade, personagem de personagem-autor de escritor real que existe fora da obra.

A teoria do pacto autobiográfico de Lejeune, já discutida anteriormente, está muito centrada no leitor e na sua aceitação das proposições do autor. E se o leitor aceitar apenas parcialmente que o que o autor lhe diz como verdade, o é efetivamente? E se o autor, aproveitando–se da confiança irrestrita do leitor que crê estar lendo sobre fatos reais, decidir fazer diferente e escrever ficção, como que para testar até que ponto o leitor pode ser ludibriado? Seria o ato narrativo capaz de abarcar todos os matizes da realidade?

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Quando o narrador que se intitula personagem e afirma ser a mesma pessoa que o autor, e a partir dessa afirmação descreve um fato do passado, acaba por dar voz a outros personagens, passando a constituir-se assim, mesmo que temporariamente, como um eu distinto daquele que estava sendo apresentado como personagem narrador. Trata-se de um novo personagem que adquire voz, um novo eu, mas que guarda suas origens no eu do personagem narrador. Recorrendo aos estudos de Arfuch: “[...] um problema de inscrição da temporalidade no espaço biográfico: quem fala na instância atual do relato? Que vozes de outros tempos – da mesma voz? – se inscrevem no decurso da

memória? Quem é o sujeito da história?” (ARFUCH, 2002, p. 115). O personagem

Gustavo ao dar voz à sua avó Constantina na verdade reconstrói a figura da personagem Constantina através da visão do personagem Gustavo. Sendo assim a personagem que nos é apresentada, apesar de guardar semelhança com algumas características com a personagem Constantina que existia no momento do desenrolar da ação no passado, não é a mesma personagem. Assim como uma pintura é a representação de uma paisagem e não a própria paisagem, a personagem Constantina que o personagem Gustavo nos apresenta é uma representação da personagem Constantina de sua adolescência.

Mesmo que o narrador se comprometa verdadeiramente a narrar a veracidade dos fatos, o eu que narra já não é mais o mesmo eu que vivenciou os fatos. Tendo conhecimento prévio do desfecho dos inúmeros eventos narrados e tendo a oportunidade de refletir sobre o que ocorreu, será possível que o narrador Gustavo narre exatamente como a adaptação nos Estados Unidos se deu para o Gustavo criança? Além disso, não é apenas o personagem homônimo ao autor, mas todos os personagens da obra que se propõe autobiográfica tem sua origem no autor, o que pode afetar a descrição dos mesmos, posto que a opinião do personagem narrador sobre os demais personagens influenciará a narrativa e a descrição destes, podendo não condizer necessariamente com as características e atitudes que os personagens apresentavam na época que as situações narradas aconteceram. Ao contar a história de si mesmo após anos dos fatos ocorridos o narrador precisa recriar a si mesmo através da escritura literária, o que limita essa reconstrução de si mesmo e dos demais posto que não é possível reproduzir todas as facetas da realidade.

Referências

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