Cassia Bianca Lebrão Cavalari Ferreira
A RESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL E O
DIREITO
Mestrado em Direito
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo São Paulo
Cassia Bianca Lebrão Cavalari Ferreira
A RESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL E O
DIREITO
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de MESTRE
em Direito das Relações Sociais, sub-área
de concentração em Direito Civil, sob a
orientação do Professor Doutor Rui
Banca Examinadora
______________________________
______________________________
Rendo especiais agradecimentos ao meu mestre e orientador, Professor Rui Geraldo Camargo Viana, que sagrou-me com sua vivacidade na abordagem da relação humana aqui tratada. Não posso deixar de render tantos outros agradecimentos aos mestres dos quais pude embebedar-me de saber durante minha jornada acadêmica, assim como, ao estimulador de tantos debates,
RESUMO
A responsabilidade social empresarial embora fundada na
ética, mereceu nesse trabalho uma leitura sob o prisma do Direito.
Para tanto, mister se fez o estudo dos princípios
constitucionais da função social e da solidariedade. A terminologia de
responsabilidade também foi abarcada, sugerindo-se a sua substituição por
solidariedade.
O objetivo foi encontrar identidade da responsabilidade social
empresarial no ordenamento jurídico, haja vista que a qualificação dos institutos é
fundamental para a sua compreensão.
A partir de então, fez-se a análise da possibilidade ou não da
regulamentação do conteúdo da responsabilidade social. Apontou-se os benefícios
obtidos pelo comportamento socialmente responsável e o seu abuso.
Tratou-se ainda das hipóteses de responsabilização civil por
ABSTRACT
The social liability of the companies although is based in ethics, on this
paper it will be seen under a legal view.
To accomplish it the study of the constitutional principles, of the social
liability, and solidarity is necessary. The terminology of liability was also treated,
suggesting the substitution of it to solidarity.
The focus was to find the identity of the social liability of the companies
in the legal system, due to the fact that the qualification of the institutes is
fundamental to its comprehension.
From this point, the possibility of regulation of the social liability has
been analyzed. The benefits obtained by the social liability behavior and its
abuse were also pointed.
The hypothesis of civil labialization for an injury on social projects was
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...
C
Caappííttuulloo I – ÉTICA, CIDADANIA E JUSTIÇA SOCIAL...I
1
1..11.. AA cciiêênncciiaa ddaa ccoonndduuttaa...
1
1..22.. NNoorrmmaass mmoorraaiiss ee nnoorrmmaass jjuurrííddiiccaass...
1
1..33.. OO eexxeerrccíícciioo ddaa cciiddaaddaanniiaa...
1
1..44.. EE aa jjuussttiiççaa ssoocciiaall??...
1
1..55.. AA rreessppoonnssaabbiilliiddaaddee ssoocciiaall eemmpprreessaarriiaall...
C
Caappííttuulloo IIII – A ORDEM ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL...
2
2..11.. AA oorrddeemm eeccoonnôômmiiccaa ccoonnssttiittuucciioonnaall ee oo ddeesseennvvoollvviimmeennttoo
s
soocciiaall...
2
2..22.. DDeevveerreess ppoossiittiivvooss ee ddeevveerreess nneeggaattiivvooss...
2
2..33.. AA ccoonnccrreeççããoo ddooss pprriinnccííppiioo ccoonnssttiittuucciioonnaaiiss ee aass nnoorrmmaas s p
prrooggrraammááttiiccaass... C
Caappííttuulloo IIIII – FUNÇÃO SOCIAL...I
3
3..11.. AAssppeeccttooss hhiissttóórriiccooss ddaa ffuunnççããoo ssoocciiaall... 3
3..22.. HHaarrmmoonniizzaaççããoo eennttrree ddiirreeiittooss iinnddiivviidduuaaiiss ee ffuunnççããoo ssoocciiaall..
3
3..33.. FFuunnççããoo ssoocciiaall ee lluuccrroo...
3
3..44.. FFuunnççããoo ssoocciiaall ee sseegguurraannççaa jjuurrííddiiccaa...
3
3..55.. AA ffuunnççããoo ssoocciiaall ddaa eemmpprreessaa nnoo CCóóddiiggoo CCiivviill...
C
Caappííttuulloo IIVV – SOLIDARIEDADE SOCIAL...
4
4..11.. SSoolliiddaarriieeddaaddee ccoommoo vvaalloorr...
4
4..22.. PPrriinnccííppiioo ccoonnssttiittuucciioonnaall ddaa ssoolliiddaarriieeddaaddee...
4
4..33.. AA iimmppoossiiççããoo ddaa ssoolliiddaarriieeddaaddee...
C
Caappííttuulloo V – RESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL...V
5
5..11.. TTeerrmmiinnoollooggiiaa ddee rreessppoonnssaabbiilliiddaaddee...
5
5..11..11. O termo “responsabilidade”...
5
5
5..11..33. Um novo termo: . solidariedade social...
5
5..22.. FFaattoorreess hhiissttóórriiccooss ddaa RReessppoonnssaabbiilliiddaaddee SSoocciiaal l
E
Emmpprreessaarriiaall...
5
5..33.. CCoonntteeúúddoo ddaa RReessppoonnssaabbiilliiddaaddee SSoocciiaall EEmmpprreessaarriiaall...
5
5..44.. QQuueemm ssããoo ooss rreessppoonnssáávveeiiss??...
5
5..55.. OO ppaappeell ddoo eemmpprreessáárriioo...
5
5..66.. EEmmpprreessaa ssoocciiaallmmeennttee rreessppoonnssáávveell... 5
5..77.. IIddeennttiiffiiccaaççããoo ddaa RReessppoonnssaabbiilliiddaaddee SSoocciiaall EEmmpprreessaarriiaal l
n
noo oorrddeennaammeennttoo jjuurrííddiiccoo...
5
5..77..11. Função Social e Responsabilidade Social .
Empresarial...
5
5..77..22.. Solidariedade e Responsabilidade Social
Empresarial...
5
5..88.. RReegguullaammeennttaaççããoo ddaa RReessppoonnssaabbiilliiddaaddee SSoocciiaal l E
Emmpprreessaarriiaall...
5
5..88..11. Planejamento da atividade econômica... .
5
5..88..22.. Normalização da Responsabilidade Social
Empresarial...
5
5..88..33. Casuística...
5
5..99.. PPrroojjeettooss ssoocciiaaiiss...
5
5..99..11. Os diversos públicos...
5
5..99..22. Os resultados...
5
5..1100.. OOss bbeenneeffíícciiooss ddaa RReessppoonnssaabbiilliiddaaddee SSoocciiaall EEmmpprreessaarriiaal l
e
e oo sseeuu aabbuussoo...
5
5..1111.. RReessppoonnssaabbiilliiddaaddee cciivviill nnoo ccoommppoorrttaammeennttoo ppoossiittiivvoo... CONCLUSÃO...
“’Lutar com palavras é a luta mais vã’, escreveu
nosso grande poeta. E é a luta mais vã não
apenas porque ‘o inútil duelo jamais se resolve’.
Também porque, para os juristas, as palavras
constituem perigosos instrumentos de trabalho,
como os bisturis os são para o cirurgião, e a pá é
o meio que tem o pedreiro para cimentar
solidamente uma parede. Para nós, as palavras
são instrumentos de precisão. Se manejados
deficientemente, estes nossos bisturis produzem
danos, pelo menos os danos da incompreensão e
da qualificação. Porque qualificar é
compreender.” JUDITH MARTINS-COSTA1
INTRODUÇÃO
O presente trabalho integra a avaliação de curso de
mestrado em Direito das Relações Sociais, subárea de Direito Civil, e tem por
escopo trazer a lume o tema responsabilidade social empresarial para a
reflexão, sob o prisma do Direito, dos seus atores – empresários e sociedade
civil.
No fito de buscar o ponto de partida e o ponto de
chegada da responsabilidade social empresarial, em especial no que ela
interessa ao Direito, buscou-se analisar a motivação da adoção de uma
gestão voltada para o bem comum, o objeto desse comportamento, a sua
natureza jurídica e as conseqüências desse agir. Assim como, os benefícios
advindos dessa postura e a utilização adequada destes.
1
A presente obra não abordou a análise jurídica de regras
de mercado (de capitais) que atrai investidores pela segurança – embora elas
importem para o empresário na medida em que a responsabilidade social
empresarial também tem sido instrumento para atrair um público
determinado de investidores –, nem as formas de administração de projetos
sociais e suas atribuições ou a crescente atividade do terceiro setor.
Tampouco se objetivou adentrar as regras do direito societário, mas sim,
buscar na gênese dessa responsabilidade, suas conseqüências,
repercussões, limites, posicionando-a no ordenamento jurídico.
Buscou-se explorar a natureza dessas regras
pertencentes a uma ética empresarial que embora não cogentes produzem
efeito similar, quando impostas por determinados fundos, por exemplo, como
condição de investimento.
Inconteste que a adoção de padrões éticos e
comportamentais por parte das empresas, ligados a princípios diferentes
daqueles que até então norteavam a atividade empresarial voltada para o
lucro, se reflete no campo jurídico, sobretudo, em razão da sociedade
contemporânea ser extremamente informada, o que a qualifica como
exigente.
Vislumbrando-se uma ação social por uma empresa,
alguns aspectos jurídicos se evidenciam, tais como: possibilidade de obter
benefícios institucionais pela divulgação dos projetos e ações de
responsabilidade social – marketing institucional, os parâmetros dessa
divulgação; benefícios fiscais/tributários; ônus decorrentes da verificação de
e, ainda, os critérios de avaliação desse comportamento em cotejo com os
direitos da empresa.
Talvez seja essa a utilidade prática desse trabalho, ainda
que pretensiosamente, propiciar uma adequada qualificação jurídica da
responsabilidade social empresarial, a fim de corrigir distorções na sua
aplicação.
Para tanto, estudamos a ordem econômica
constitucional, o princípio da função social da empresa, a solidariedade
social, o princípio constitucional da solidariedade tudo em vista da justiça
social, além de questões fora do Direito Positivo relacionadas ao
comportamento humano, em especial a ética. Tratou-se também do instituto
da responsabilidade civil decorrente de eventuais danos advindos desse
comportamento.
Em suma, o trabalho aqui delineado tem por objetivo
enfrentar de forma crítica e investigativa os aspetos jurídicos da
responsabilidade social empresarial supra mencionados.
Sem a pretensão de executar um trabalho científico, a
dissertação pretendida visa ser útil a toda a comunidade, permitindo, ao
menos, a correta identificação de ações e a qualificação da responsabilidade
“(...) a disputa existente atualmente no Brasil
traduz-se no seguinte: quem deve ficar mais rico
e quem deve ficar mais pobre? Se nossa
perspectiva for individualista e conservadora a
resposta será: os de sempre. O seu de cada um
é o que hoje temos: aos pobres sua pobreza e
cada vez mais de sua pobreza; aos ricos sua
riqueza e cada vez mais de sua riqueza.”JOSÉ
REINALDO DE LIMA SOARES2
CAPÍTULO I
ÉTICA, CIDADANIA E JUSTIÇA SOCIAL
1.1. A Ciência da Conduta. 1.2. Normas morais e Normas jurídicas. 1.3. O
Exercício da Cidadania. 1.4. E a justiça social? 1.5. A Responsabilidade
Social Empresarial.
1.1. A Ciência da Conduta.
Ética, em geral, pode ser definida como ciência da
conduta. Dessa ciência, em suas diversas concepções, nos interessa mais
aquela que a considera a ética como um móvel da conduta humana,
ocupando-se, ainda, da disciplina dessa conduta.3
2
Professor de História do Direito e de Sociologia Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
3
Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, p. 380.
Parte dessa disciplina do comportamento humano
encontra-se positivada e o seu conteúdo, em princípio, existe abstratamente,
sem que se exija concreção da conduta.
Sabe-se que a filosofia moderna tem buscado
compreender a moral – uma das categorias da ética – através da virtude, a
chamada Ética das Virtudes.
Para ALASDAIR MACINTYRE, “a virtude é uma qualidade
humana adquirida, cuja posse e exercício costuma nos capacitar a alcançar
aqueles bens internos às práticas e cuja ausência nos impede de alcançar tais
bens.”4
Inspirado pelo “homo economicus” dos economistas,
GIORGIO DEL VECCHIO5 disserta sobre as regras de conduta, asseverando que
pode-se construir várias figuras abstratas de “homens” determinados por um
só motivo, como por exemplo, um “homo moralis” ou um “homo juridicus”6.
Esses “homens” são figuras hipotéticas sendo um erro confundi-las com a
realidade, embora desempenhem uma certa função científica.
A par das vastas lições sobre os imperativos hipotéticos,
as várias espécies de normas técnicas e suas diversidades com as normas
morais e jurídicas, as normas do costume, nesse Capítulo o que nos
interessa é a parte final do trabalho, em que GIORGIO DEL VECCHIO traça um
paralelo entre o que denomina “as duas grandes categorias éticas”, a moral
4
Alasdair Macintyre. Depois da Virtude, p. 321.
5
O ‘Homo Juridicus’ e a insuficiência do direito como regra da vida, p. 177/212.
6
Como típico representante desse exemplo o autor utiliza o personagem Shylock da comédia de
e o direito, chamando-as de “dois pontos de vista distintos no considerar de
uma mesma matéria”7.
O mencionado autor recorda que as normas jurídicas
sempre têm caráter imperativo (mesmo as permissivas), cujo caráter é de
bilateralidade, ou seja, gera uma obrigação entre sujeitos, enquanto que o
imperativo moral tem caráter unilateral. Ambas são formas de avaliação ética
imprescindíveis para o sistema regulador de conduta dos indivíduos, como já
sinalizado no título do trabalho.
Importante, além do caráter unilateral já destacado, é o
elenco das características das regras morais, trazido por DEL VECCHIO, que
ressalta que de acordo com o grau ou forma de civilização de um povo, as
normas morais têm diferenças, mas que existe um “núcleo duro”, ou seja
identidades profundas que se verificam nesta matéria.
Conclui o doutrinador que, embora exista uma
expectativa de que o dever moral seja cumprido, por força até de sujeitar o
indivíduo a uma opinião pública (juízos e apreciações do seus atos) que
inclusive geram determinadas reações8, carece essa norma moral de
exigibilidade que é própria do direito. Ressaltando por fim, que direito e
moral têm raiz comum – caráter deontológico que se afirma e que se
mantém, e que “nenhuma destas categorias pode prescindir da outra, nem
7
O “Homo Juridicus” e a insuficiência do direito como regra da vida, p. 210.
8
substituir-se-lhe, sem totalmente deformar a complexa e viva harmonia do agir
humano e social.”9
A sociedade atual clama que a atividade empresarial seja
ética sob suas duas categorias: moral e direito. A esse clamor pode-se
chamar responsabilidade social empresarial.
As obrigações que derivam de uma manifestação de
vontade, tal como a atividade empresarial, são regidas pelo direito, mas
antes dessa manifestação – constituição da empresa – só a moral é hábil a
resolver. Assim como, alguns comportamentos que visem interesses
diversos do da atividade empresarial, somente à disciplina moral se
sujeitam.
A ofensa ao direito sempre implica na violação também
de uma norma moral. Mas a violação de uma norma moral nem sempre
implica numa ofensa ao direito. Daí dizer-se que o direito representa o
minimum ético, estabelecido positivamente, naquilo que seja possível
harmonizar os diversos direitos e deveres.
A ética abarca também os deveres que temos para com a
humanidade.10 Tais deveres ora estão positivados, ora derivam de normas
morais exteriorizadas pela livre manifestação de vontade. As primeiras são
por natureza exigíveis, enquanto que as segundas são voluntárias.
9
O “Homo Juridicus” e a insuficiência do direito como regra da vida, p. 212.
10
A convenção entre seres humanos que vivem numa
sociedade estabelecendo o que deve ser tido como justo11 é chamada por
GOFFREDO TELLES JUNIOR, de contrato da ética social, que assim explica: “a
ética social se exprime por meio de normas, que são indicações e sinais da
normalidade vigente, para a necessária informação das pessoas, em sua vida
diária.”12
1.2. Normas Morais e Normas Jurídicas
As normas éticas podem se constituir em normas
religiosas, costumeiras, de civilidade, puramente morais e de direito ou
jurídicas, e se prestam a condicionar o comportamento humano em
sociedade. Originam-se de forma lógica e natural, obedecendo a intuição do
espírito humano com respeito ao conteúdo do “dever ser”.
Se as normas éticas também forem normas jurídicas,
quando violadas, autorizam os lesados a lançar mão dos meios que o Estado
dispõe para exigir o seu cumprimento das normas, a indenização do prejuízo
ou a imposição de pena aos infratores. Quando não jurídicas, as normas
éticas não viabilizam a exigência do seu cumprimento.
A ética, numa visão mais jurídica do que filosófica,
estuda os costumes e as formas de comportamento. “Ética é a ciência do
comportamento moral dos homens em sociedade. É uma ciência, pois tem
objeto próprio, leis próprias e método próprio. O objeto da Ética é a moral. A
11
Esse justo é o justo por convenção ou justo convencional, isto é, “aquilo que é justo por ser
conforme a lei, ou por ser conforme o contratado, ou por ser conforme a arbitragem, ou por ser
conforme o costume.” Goffredo da Silva Telles, Iniciação na Ciência do Direito, p. 362.
12
moral é um dos aspectos do comportamento humano. A expressão deriva da
palavra romana ‘mores’, com o sentido de costumes, conjunto de normas
adquiridas pelo hábito reiterado de sua prática.”13
Essa diretriz do que a sociedade entende ser o
comportamento desejável pode caracterizar-se em costume. O costume
embora seja uma fonte do direito14, “não se promulga: ele se cria, se forma,
se impõe sem que neste processo se possa localizar um ato sancionador.”15
Além da ausência do ato sancionador, ou seja, não se
verifica num preceito moral uma sanção, não se pode confundir “fonte de
direito” com “fonte de obrigação”. Ainda que o costume, tido como norma
jurídica, ou seja, possa ser utilizado na solução de um conflito de interesses,
aplicando-se algo que se entende que “deve ser feito, e deve sê-lo porque
sempre o foi”16, esse costume não é hábil a gerar deveres.
Embora, para TERCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, normas
jurídicas e preceitos morais vinculem e estabeleçam obrigações
subjetivamente17, assim, como na obrigação natural não se confere o direito
de exigir o seu cumprimento. Uma obrigação moral é cumprida pelo impulso
da consciência.
Diga-se, porém, que a obrigação natural não deve ser
confundida com os deveres de índole não jurídica, isso porque, obrigação
13
José Renato Naline, Ética geral e profissional, p. 36.
14
O artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil permite que o magistrado quando para a solução de um caso não encontrar norma que lhe seja aplicável, utilize de fontes supletivas para preencher essa lacuna ou defeito do sistema jurídico. Uma dessas fontes supletivas é o costume. Ver a esse respeito: Maria Helena Diniz. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, que assevera que “o costume é uma fonte jurídica, porém em plano secundário.” p. 116.
15
A esse respeito ensina Tercio Sampaio Ferraz Jr. Introdução ao Estudo do Direito, p. 240. E ressalta: “Por essa razão o costume, nos direitos positivados de nossos dias, tem, como fonte, uma importância menor que teve no passado.”
16
Ibidem, p. 240.
17
implica na presença de credor e devedor, demandando uma relação
pré-constituída de crédito e débito.
Assim, “quem cumpre obrigação, mesmo natural, não faz
favor, porque dá ao credor o que lhe é devido, segundo um princípio geral do
direito. A diferença entre liberalidade e pagamento mostra-se, com clareza, no
confronto da esmola com a dívida de jogo. No primeiro caso, não existe dívida,
e o que inspira o indivíduo é a caridade, que se situa exclusivamente no
campo da moral. Vale dizer: não há vinculo algum do “devedor” com o
“credor”, ao passo que a dívida de jogo se apóia numa fonte civil – o contrato
de jogo (C.C., art. 1477)-, atende a um interesse preciso do ganhador, que
ficará insatisfeito se não houver o cumprimento da obrigação, pois sofrerá o
prejuízo de ter perdido inutilmente seu tempo.”18
Se há devedor com relação a prover o bem comum, esse
é o Estado, e subsidiariamente o empresário.
1.3. O Exercício da Cidadania.
O exercício pleno da cidadania, ainda que utopicamente,
encontra hoje algum respaldo na sociedade civil organizada.
Refletindo sobre o preâmbulo da Constituição Federal,
ROGÉRIO GESTA LEAL19, aponta a cidadania como o fundamento primeiro da
República brasileira, na forma de Estado Democrático de Direito, dando a
concepção de “um direito a ter direitos” e de tê-los assegurados e
concretizados.
18
Sergio Carlos Covello, A Obrigação Natural, p. 76.
19
Dentre tais direitos, os quais deve-se garantir o gozo aos
indivíduos, estão os direitos sociais, cuja concreção deve ser exigida com
relação não mais só ao Estado, mas também em relação ao indivíduo,
fundado, para tanto, na ética, em especial, dos detentores do poder
econômico.
Para exercer a cidadania plena, mister se faz viabilizar ao
indivíduo o gozo dos direitos sociais. O motor para que a empresa exerça
essa tarefa é a postura ética invocada pela sociedade.
Os direitos sociais, ou chamados direitos de segunda
geração20, são os instrumentos para garantir ao indivíduo condições
materiais indispensáveis à busca dos fins particulares. A sua efetivação
confere ao indivíduo um dos requisitos da cidadania, que vai além do outro
formal – título de eleitor21 - para caracterizá-la. Infelizmente, mas
acertadamente, conclui ROLF KUNTZ, que no Brasil poucos são os indivíduos
que preenchem esse duplo critério, porque a maioria deles, “da cidadania só
tem o título de eleitor, porque mal sabe ler, não ganha para alimentar a
família, não tem carteira assinada e só interessa à Justiça quando se
transforma em réu.”22
Essa exclusão social abre uma enorme vala entre as
classes sociais. O desenvolvimento econômico deve ser inversamente
proporcional ao desenvolvimento da desigualdade social. Ainda que pareça
discurso, é preciso conclamar que quanto mais desenvolvimento econômico,
20
Segundo os intitula José Celso de Mello.
21
Lembra ROLF KUNTZ que “o título de eleitor, porém, é só um dos papéis que vinculam o brasileiro ao sistema dos direitos.”. A Descoberta da Igualdade como Condição de Justiça, p. 154.
22
menos desigualdade social. Esse equilíbrio pode ser chamado de
desenvolvimento sustentado.
Infelizmente essa relação não tem sido atendida, ao
contrário, cada vez mais, distanciam-se o desenvolvimento humano do
econômico. Visivelmente o Estado se mostra incapaz de promover o
bem-estar social, fazendo com que o exercício da cidadania plena demande ações
sociais dos particulares, movidos pela normas éticas que imprimem a busca
pela justiça23 social.
1.4. E a Justiça Social?
Justiça, de acordo com a história romana, consiste em
dar a cada um o que lhe pertence. Importante ressaltar que justiça não
significa caridade, nem essa pode se opor àquela. Elucida GOFFREDO TELLES
JUNIOR que “a justiça é mais urgente que a caridade.”24
Também vale dizer que a busca pela justiça, além de
requerer conceitos que não pertencem somente ao Direito, é relativa. Até
mesmo HANS KELSEN, no ensaio em que tenta responder “o que é justiça”,
satisfez-se com uma justiça que tivesse significado para ele, elegendo aquela
justiça sob cuja proteção a ciência do Direito pode prosperar, tomada como a
justiça da liberdade, da paz, da democracia, da tolerância.25
23
Ensina Tercio Sampaio Ferraz Júnior, que “a justiça, no seu aspecto formal, exige igualdade proporcional e exclui a desigualdade desproporcionada”. Introdução ao Estudo do Direito, p. 355.
24
E completa: “Primeiro, a justiça: dê-se aos outros o que lhes pertence. Isto é fundamental. Depois, se se quiser e se houver com quê, faça-se a caridade.” Iniciação na Ciência do Direito, p. 367.
25
Parece-nos que a sociedade tem eleito como justiça para
a comunidade, o atendimento, entre outros, dos direitos sociais abarcados
no texto constitucional. Mas nada impede que dentro do próprio grupo social
ou em outros grupos a concepção de justiça buscada seja diversa, por isso,
diz-se relativa.
As excessivas desigualdades sociais e econômicas são
contrárias a qualquer justiça. Essa ausência de justiça social, fere,
especialmente, a dignidade da pessoa humana, lembrando JOSÉ AFONSO DA
SILVA26, que esta, “como fundamento do Estado Democrático de Direito27,
reclama condições mínimas de existência, existência digna conforme os
ditames da justiça social como fim da ordem econômica.”
E ilustra:
“É de lembrar que constitui um desrespeito à dignidade
da pessoa humana um sistema de profundas
desigualdades, uma ordem econômica em que
inumeráveis homens e mulheres são torturados pela fome,
inúmeras crianças vivem na inanição, a ponto de milhares
delas morrerem em tenra idade. “Não é concebível uma
vida com dignidade entre a fome, a miséria e a incultura”,
pois, a “liberdade humana com freqüência se debilita
quando o homem cai na extrema necessidade”, pois, a
26
A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia, p. 93.
27
Tercio Sampaio Ferraz Júnior aborda o Estado Democrático de Direito exaltando a proposta de democratização da própria sociedade – “de um lado, nos tradicionais princípios do Estado de Direito (exercício de direitos sociais e individuais, liberdade, segurança, igualdade etc.), mas, de outro, nas exigências de democratização da própria sociedade (que há de ser fraterna, pluralista, sem preconceitos, fundada na harmonia social etc.)” - que induz a passagem de uma Estado de Direito para um Estado Social no qual é possível reconhecer-se um conteúdo positivo da liberdade como participação. Solidariedade Social e Tributação, p. 208.
O autor aponta uma desformalização da constituição e da interpretação da constituição com a sujeição das propostas jurídicas a critérios valorativos contidos na expressão social do Direito, desde 1930. Essa sujeição gera “um modelo constitucional de Estado com a função de legitimação das aspirações sociais, que foi, formalmente, próprio das Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967/69.
“igualdade e dignidade da pessoa exigem que se chegue
a uma situação social mais humana e mais justa.”
Outra dificuldade para atender o objetivo de
transformação do Estado, contemplado na Constituição especialmente nos
artigos 1º e 3º, é apontada por TERCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, e relaciona-se
com a concepção de Estado Democrático de Direito, destacando que a
medida em “que uma compatibilização do Estado de Direito com o Estado
Social traz dificuldades significativas. Seria preciso, de um lado, garantir em
cada caso uma situação de compromisso entre os grupos sociais que
assegurasse um mínimo de critérios comuns de valores que fossem admitidos
por todos. De outro lado, um quadro constitucional rigoroso sem o qual a
atuação do Estado, inevitavelmente sujeito a grupos de pressão e a interesses
estamentais e corporativistas da burocracia, pode ser tornar facilmente uma
espécie de exercício de arbitrariedade camuflado por supostos ditames de
princípios públicos relevantes.” Sendo que essa compatibilização se dá face a
dualidade apontada: um conceito formalmente jurídico – Estado de Direito; e
outro não – Estado Social.28
Em conclusão, o Professor invoca o sentido de justiça
social, destacando a necessidade de igualar os indivíduos pelas condições
de sobrevivência, com o imprescindível reconhecimento da cidadania para a
concretização dos objetivos da Constituição, que não deve ser ocupação
somente do Estado, mas também com relação aos particulares, asseverando
que “na relevância da sociedade civil deve-se ver o reconhecimento de que o
28
controle da legitimidade constitucional não é só a expressão de uma
fiscalização formalmente orgânica, mas também uma tarefa comum, que deve
fazer da Constituição uma prática e não somente um texto ao cuidado dos
juristas; a participação, não apenas do Legislativo, do Executivo, do
Judiciário, mas também do cidadão em geral, na concretização e na efetivação
dos direitos, uma peça primordial do seu contexto democrático-social
legítimo.”29
1.5. A Responsabilidade Social Empresarial
A responsabilidade social pode ser vista como uma forma
de atendimento aos direitos sociais previstos na Constituição Federal, cujo
comportamento do particular é impulsionado por padrões éticos que
conduzem à valores de interesse da sociedade - bem-estar social.
Demanda-se que tais padrões éticos formem, no mundo
empresarial, um “costume” apropriado, baseado na solidariedade, resultando
em benefícios para a coletividade como forma de contribuição para um
mundo melhor com a redução das desigualdades sociais.
A formação desse “costume” requer também a
observância da ordem jurídica e constitucional vigente, a fim de criar um
ambiente de segurança para as empresas, estimulando a sua contribuição
para com o bem-estar social.
Certificados de que o ponto de partida da
responsabilidade social empresarial é mais amplo do que qualquer instituto
29
do direito positivado – o que será ratificado mais adiante quando tratarmos
da sua terminologia e histórico – passaremos a buscar no Direito, qual o
CAPÍTULO II
A ORDEM ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
2.1. A Ordem Econômica Constitucional e o Desenvolvimento Social. 2.2.
Deveres Positivos e Deveres Negativos. 2.3. A concreção dos princípios
constitucionais e as normas programáticas.
2.1. A Ordem Econômica Constitucional e o Desenvolvimento social.
Os princípios do sistema capitalista de produção
contemplados na Constituição Federal estão vinculados aos ditames da
justiça social elencada como objetivo fundamental da República no inciso I,
do artigo 3º30, da Carta Magna.
A par da observância dos primados da ordem econômica
constitucional na realização dos institutos de Direito privado, aplica-se,
ainda, o princípio da solidariedade social, gerando comportamentos em que
um grande número de empresas atua em prol da coletividade, por
intermédio da consecução de “projetos sociais”.
A leitura e a efetividade da Constituição Federal de 1988
deve ser feita levando em conta que todo o seu texto foi elaborado visando
uma reestruturação do Estado brasileiro para superar o subdesenvolvimento
através de transformações sociais.
Assim, mesmo o Título VII – Da Ordem Econômica e
Financeira da Carta Política, está pautado nessas bases, incluindo nos
princípios gerais da atividade econômica, a função social da propriedade e a
30
Art. 3° Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
redução das desigualdades regionais e sociais, com o fim de assegurar a
todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170),
embora esses temas não estejam restritos a este capítulo do texto
constitucional.31
Nos demais artigos sobre a ordem econômica, em
especial os do Capítulo I, do Título VII, estão expressas disposições
estruturais da atividade econômica, seguidos de dispositivos que tratam da
ordem econômica no espaço (política urbana, política agrícola e fundiária e
reforma agrária) e no tempo (sistema financeiro nacional).32
A inserção da disciplina da ordem econômica na
Constituição, a caracteriza como uma Constituição Econômica. Essa
disciplina rejeita “o mito da auto-regulação do mercado” e acaba por positivar
“tarefas e políticas a serem realizadas no domínio econômico e social para
atingir certos objetos”, o que permite qualificarmos a Constituição de
programática ou dirigente.3334
Cumpre recordar que já a Constituição de 1934 previa
que a ordem econômica deveria ser organizada conforme os princípios da
justiça e as necessidades da vida nacional.
Nos ditames da Constituição atual (art. 170), a atividade
econômica tem a finalidade de assegurar a todos uma existência digna com
justiça social, observados princípios, tais como, a soberania nacional, a
31
Somente para ilustrar, no tocante ao direito comparado, vale lembrar de dispositivo da Constituição Portuguesa que enumera entre os princípios da organização econômico-social o da “subordinação do poder econômico ao poder político democrático” (art. 80, a).
32
Gilberto Bercovici, Constituição Econômica e Desenvolvimento – uma leitura a partir da Constituição de 1988, p. 31.
33
Ibidem, p. 33.
34
propriedade privada, a função social da propriedade, a livre concorrência, a
defesa do consumidor, do meio ambiente, redução das desigualdades
regionais e sociais, a busca do pleno emprego e tratamento favorecido para
as empresas de pequeno porte.
A atividade produtiva exercida pela empresa a insere na
ordem econômica, sujeitando-se ao princípio35 da função social, o que deriva
a função social da empresa.
Certo é que assim quis o constituinte, criando a noção
de “empresa social” ao condicionar o exercício da atividade econômica –
consistente na propriedade dos bens de produção – e a livre iniciativa, à
realização dos objetivos primários da ordem econômica: propiciar existência
digna a todos, segundo ditames da justiça social.
EROS ROBERTO GRAU, analisa a extensão da função social
para a empresa, distinguindo uma propriedade estática do dinamismo dos
bens de produção:
“O princípio da função social da propriedade, para logo se
vê, ganha sustentabilidade precisamente quando aplicado
à propriedade dos bens de produção, ou seja, na
disciplina jurídica de tais bens, implementada sob
compromisso com a sua destinação. A propriedade sobre
a qual em maior intensidade refletem os efeitos do
princípio é justamente a propriedade, dinâmica, dos bens
de produção. Na verdade, ao nos referirmos à função
35
social dos bens de produção em dinamismo, estamos a
aludir à função social da empresa.”36
O exercício do poder econômico será legitimo quando
não conflitar com os valores expressos nos incisos I a IX do artigo 170 da
Constituição Federal e com os objetivos sociais por ela visados – existência
digna, conforme os ditames da justiça social.
SERGIO VARELLA BRUNA37 ressalta que “o poder econômico
é tido como um dado da realidade, um fator estrutural, que faz parte de um
técnica de produção social, atribuindo-se a esse poder uma função (social), de
servir ao desenvolvimento e à justiça social. Na feliz expressão de Fábio
Konder Comparato, o poder econômico não só tem uma função social, mas é
uma função social, de serviço à comunidade.”
E conclui que,
“(...) o poder econômico não pode ser um empecilho ao
desenvolvimento social.
Mas o que se exige do titular do poder econômico não
é somente um comportamento negativo, uma abstenção de
fato, de não fazer mau uso de tal poder, mas sim um
comportamento positivo, de dar-lhe destino socialmente
útil. Há, portanto, não só o dever de não exercitar esse
poder em prejuízo de outrem, mas também, e
principalmente, o dever de exercitá-lo em benefício dos
demais. Aqui, o poder econômico, enquanto função que é,
denota um poder que não se exerce por interesse próprio,
ou exclusivamente próprio, mas também por interesse de
outrem ou por um interesse objetivo. Se esse poder não é
passível de ser exercido por todos, deve se exercido em
benefício comum.”
36
Elementos de Direito Econômico, p. 128.
37
2.2. Deveres positivos e deveres negativos.
Verdade é que, antes de analisar o princípio da função
social, mister se faz investigar em que se traduzem ou deveriam traduzir-se,
os deveres sociais decorrentes da ordem econômica constitucional: em ações
positivas e ações negativas.
Na sua brilhante lógica, para deduzir o que é função
social, FABIO KONDER COMPARATO faz uma análise etimológica38, seguida da
análise institucional do direito, para concluir que, de forma abstrata, a
“função” para o direito pode ser entendida como a “atividade dirigida a um
fim e comportando, de parte do sujeito agente, um poder ou competência”,
ressaltando que esse “fim” é sempre alheio ao interesse do agente ou titular
desse poder e que o desenvolvimento da atividade não se dá só no sentido
negativo – de respeito aos limites legais – mas também na “acepção positiva,
de algo que deve ser feito ou cumprido.39
Assim, função social empresarial, pode ser entendida
como a competência conferida ao empresário de exercer a atividade
econômica em prol dos interesses da coletividade - pessoas indeterminadas.
Mas é possível vislumbrar o exercício da atividade
econômica concomitante com a consecução de deveres sociais positivos pelo
empresário com relação à sociedade?
38
“O substantivo functio, na língua matriz, é derivado do verbo depoente fungor (functus sum, fungi),
cujo significado primigênio é de cumprir algo, ou desempenhar-se de um dever ou uma tarefa.”
Estado, Empresa e Função Social, p. 40.
39
Conforme constata EROS ROBERTO GRAU, deveres
negativos, na forma de limites impostos pelos princípios constitucionais,
facilmente reconhecidos, sendo que o Professor, inclusive, os concebe como
análogos às manifestações de poder de polícia. A problemática, de fato, está
na sua concepção positiva.
“A questão torna-se complexa, no entanto, quando, em
sua concreção, a função social é tomada desde uma
concepção positiva, isto é, como princípio gerador da
imposição de comportamentos positivos ao proprietário. A
lei, então – âmbito no qual se opera a concreção do
princípio – impõe ao proprietário (titular de um direito,
portanto de um poder) o dever de exercitá-lo em benefício
de outrem, e não, apenas, de não exercitá-lo em prejuízo
de outrem.”40
Também o Professor COMPARATO busca desmistificar o
conteúdo do dever positivo, analisando os dispositivos sobre função social da
propriedade no direito comparado. Recorda que embora a Constituição de
Weimar de 1919 (art. 153, última alínea) e Lei Fundamental de Bonn, de
1949 (art. 14) prevejam o uso da propriedade privada a serviço do interesse
da coletividade, “nenhuma autoridade alemã conseguiu explicar em que
consistiriam os deveres sociais positivos do proprietário em relação à
coletividade”.41 Assevera que, a mesma inaplicabilidade se dá também em
outros países tal como a Itália42 e a Espanha4344 em que se inseriu na
40
Ibidem, p. 244.
41
Estado, Empresa e Função Social, p. 41.
42
Constituição dispositivo sobre função social da propriedade, à exceção do
Brasil que, no próprio texto constitucional, elencou dois deveres positivos do
proprietário de imóvel urbano: um de atender ao plano diretor (art. 182,
caput) e outro de promover o adequado aproveitamento do imóvel na forma
da lei (art. 182, § 2º).
EROS Roberto Grau, exemplificando a concepção positiva
da função social, reconhece a disciplina dos deveres sociais positivos nos
artigos 42 e 44 da Constituição Italiana, “que funcionam como fonte geradora
da imposição de comportamentos positivos ao proprietário,” entretanto, não
traz exemplos do que concretamente sejam tais comportamentos.
O autor, no âmbito da atividade empresarial consegue
mencionar a aplicação do Código da Propriedade Industrial (art. 49), que
atribui à empresa titular de uma marca, o ônus de explorá-la, tal qual ocorre
em relação aos direitos de lavra. Em se reconhecendo nessa exploração a
finalidade social, o exemplo vale para um dever positivo social que atenda a
coletividade.
43
Também a Constituição espanhola de 1978 limitou-se a estabelecer restrições legais ao uso da propriedade.
44
Os doutrinadores espanhóis denominam a contraposição entre o direito de propriedade e a função social (dimensión individualista e dimensión social) de “duplicidad de caras”do regime jurídico de propriedade, especialmente pela cotização da Constituição espanhola com o Código Civil espanhol. Em análise da aplicação da função social contemplada no Código Civil espanhol, RAFAEL COLINA
GAREA, considera a influência da função social no exercício de direito de propriedade, apenas no sentido negativo, na forma de limitações, senão vejamos:
Em ações sociais mais simples, ora nominadas de
filantropia - tais como projetos voltados para o acolhimento de menores,
educação, cultura, diversidade - é possível exigir essas ações (positivas)
invocando a função social da empresa ou outro princípio constitucional
voltado para o exercício pleno da cidadania? E para a propriedade de bens
de produção, em que consistiria o dever social positivo?
Também desconhecemos no ordenamento pátrio
instrumento e mesmo normas que abarquem tais deveres sociais positivos.
Obviamente tratamos de deveres positivos fora do elenco legal a que está
sujeito o empresário, tal como, de forma extrema exemplifica COMPARATO,
deixar de aumentar os preços dos produtos ou serviços de primeira
necessidade em prol do bem comum.
Para EROS ROBERTO GRAU há um comportamento positivo
integrado ao princípio da função social contemplado no próprio texto
constitucional, que é a busca do pleno emprego (art. 170, VIII, da CF).
“O princípio informa o conteúdo ativo do princípio da
função social da propriedade. A propriedade dotada de
função social obriga o proprietário ou o titular do poder de
controle sobre ela ao exercício desse direito-função (
poder-dever), até para que se esteja a realizar o pleno
emprego.”45
Assim como os princípios da defesa do consumidor, da
defesa do meio ambiente e a redução das desigualdades regionais e sociais, a
45
busca do pleno emprego é classificada por JOSÉ AFONSO DA SILVA46, como
princípio de integração, haja vista que estão dirigidos a resolver problemas da
marginalização social.
Os dois primeiros – defesa do consumidor e do meio
ambiente – porque disciplinados por leis infraconstitucionais gozam de
exigibilidade, sendo que tal disciplina, por vezes, contempla comportamento
ativo.
Segundo JOSÉ AFONSO DA SILVA47 a expressão pleno
emprego de ser tomada na sua utilização mais abrangente, devendo ser
considerada a busca tanto quantitativa como qualitativa. Se, o inciso VIII, do
art. 170, da Constituição Federal, deve ser visto “no sentido de propiciar
trabalho a todos quantos estejam em condições de exercer uma atividade
produtiva”, certo é, que assim como, na função social, há a expectativa de
um comportamento positivo de colocar à disposição dos cidadãos tantos
quantos postos de trabalho forem possível, motivado apenas pela regra
moral.
De fato, direito subjetivo e função/dever não são
incompatíveis, mas a ausência de cogência, inibe o comportamento ativo. O
exercício da atividade econômica ou a propriedade dos bens de produção é
direito subjetivo48. Também uma ação social motivada por valores éticos com
o fim de atingir o bem social constitui “regra ética subjetiva” que, a par da
46
Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 770.
47
Idem, p. 771.
48
eficácia imediata dos princípios constitucionais, não encontra na disciplina
infraconstitucional disposições impondo comportamentos positivos que
atendam ao interesse coletivo, razão pela qual à doutrina jurídica faltam
exemplos de tipificação de deveres positivos. Também, o direito subjetivo,
quando exercido, é hábil a gerar ônus e obrigações ao seu titular.
De fato, ao empresário atender aos deveres sociais
positivos, parece tão utópico e contrário ao objetivo empresarial – obter lucro
– que, por certo, nulifica o conceito de função social ou, ao menos, o limita
ao exercício de deveres negativos.
Ademais, certo é que a aplicação integral da função
social, incluída a execução de deveres positivos, acarretaria “sério risco de
servir como mero disfarce retórico para o abandono, pelo Estado, de toda
política social, em homenagem à estabilidade monetária e ao equilíbrio das
finanças públicas.”49
2.3. A concreção dos princípios constitucionais e as normas programáticas.
A disciplina da ordem econômica é realizada por normas
denominadas programáticas, ou seja, “normas constitucionais através das
quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados
interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos
seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como
49
programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais
do Estado”.50
GILBERTO BERCOVICI menciona que a concepção das
normas programáticas teve grande importância, mas em forte crítica, conclui
que sua aplicação prática foi decepcionante.
“Norma programática passou a ser sinônimo de norma
que não tem qualquer valor concreto, contrariando as
intenções de seus divulgadores. Toda norma incômoda
passou a ser classificada como ‘programática’,
bloqueando, na prática, a efetividade da Constituição e,
especialmente, da Constituição Econômica e dos direitos
sociais.”51
A adoção extremada, formal e teórica do texto
constitucional, implica num instrumentalismo no qual acredita-se que é
possível mudar a sociedade, transformar a realidade apenas com dispositivos
constitucionais.
Assim, a concretização dos direitos sociais ou, ainda, dos
princípios da ordem econômica dependem de ações do Estado, que muito
pouco realizam, escondidos no instrumentalismo de uma Constituição
dirigente.
A fixação no instrumentalismo constitucional, segundo
BERCOVICI, geram a ignorância do Estado e da política, asseverando que “a
Teoria da Constituição Dirigente é uma Teoria da Constituição sem Teoria do
50
José Afonso da Silva, Aplicabilidade das Normas Constitucionais, p. 138.
51
Estado e sem política. E é justamente por meio da política e do Estado que a
constituição vai ser concretizada.”52
Mesmo os doutrinadores quem vêem nos dispositivos
constitucionais que tratam da propriedade, normas programáticas,
reconhece, entretanto, que ao juiz e ao administrador é facultado realizar a
concreção dessa norma, no exercício do poder-dever de integrar a ordem
jurídica, produzindo para o caso concreto a norma faltante.
“É preciso lembrar que as normas programáticas não se
reduzem a traçar um programa de ação, mas têm força
jurídica vinculante imediata. Não podem servir de
desculpa para o administrador ou para o juiz para deixar
de cumprir as imposições contidas na Constituição.”53
Para ilustrar o mencionado poder-dever, citamos como
exemplo, decisão proferida pela Terceira Turma do Tribunal Regional Federal
da 4ª Região, em julgamento de recurso de apelação em ação civil pública
movida pela Associação de Defesa e Orientação do Cidadão em face da União
Federal e do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, pleiteando
que os fabricantes de bebidas alcoólicas fossem obrigados a fazer constar
nos rótulos de seus produtos e em todas as publicidades por eles
patrocinadas, a advertência “O álcool pode causar dependência e em excesso
é prejudicial à saúde”. Uma vez não implementada a adequada política
pública na defesa do interesse à saúde, sentiu-se o judiciário gaúcho
52
Grifos nossos. Gilberto Bercovici, Constituição Econômica e Desenvolvimento – uma leitura a partir da Constituição de 1988, p. 41.
53
legitimado a condenar a União a exigir a ação pleiteada, assim
argumentando:
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO DO CONSUMIDOR.
CORRETA INFORMAÇÃO ACERCA DOS RISCOS E
POTENCIAIS DANOS QUE O CONSUMO DE BEBIDAS
ALCOÓLICAS CAUSA À SAÚDE. INSCRIÇÃO NECESSÁRIA
NOS RÓTULOS DE BEBIDAS ALCOÓLICAS.
1. É possível e exigível do Judiciário, impor determinada
conduta ao fornecedor, sem que esta esteja
expressamente prevista em lei, desde que afinada com as
políticas públicas diretamente decorrentes do texto
constitucional e do princípio da plena informação ao
consumidor (art. 6º, II, III e IV, da Lei 8.078/90, pois
traduz-se em dever do Estado, do qual o Judiciário é
poder, de acordo com o art. 196 da Constituição.”
Também de forma individual, os direitos sociais são
exigidos. Existem instrumentos processuais para defesa de um direito social
e são perfeitamente concebíveis quando exercidos pelo indivíduo em relação
ao Estado.54 Exemplos são pleitos voltados para garantir vagas em escolas,
serviço hospitalar, fornecimento de medicamentos, etc..
Outra crítica repousa na questão relativa ao Judiciário,
como parte desse Estado Garantidor ou Estado Provedor, na medida em que
54
José Reinaldo de Lima Lopes, assim ensina:
“As garantias dos direitos sociais podem, por isso, ser efetivadas hoje por alguns caminhos que variam em natureza: quando se falar em direito público subjetivo o cidadão está habilitado, creio, a exigir do Estado seja a prestação direta, seja a indenização; quando se tratar de garantia real os caminhos serão: por meio do Ministério Público (art. 129 da Constituição Federal), promover a responsabilidade de autoridades que não estejam dando andamento a políticas e ações já definidas em lei (orçamentárias e programas) e regulamentos ou atos administrativos; as leis orçamentárias,
está autorizado a efetivar os princípios constitucionais, em especial aqueles
que dizem respeito aos direitos sociais como um todo. Alguns fatores, como
uma certa hesitação do Judiciário diante de situações que não sejam
rotineiras e a inaptidão ou incapacidade do Judiciário para assegurar a
efetivação dos direitos sociais, segundo critica JOSÉ EDUARDO FARIA, gera, na
prática, uma conivência com a sua violação.55
55
CAPÍTULO III
FUNÇÃO SOCIAL
3.1. Aspectos históricos da função social. 3.2. Harmonização entre direitos
individuais e função social. 3.3. Função social e lucro. 3.4. Função social e
segurança jurídica. 3.5. A função social da empresa no Código Civil.
3.1. Aspectos históricos da função social.
Cabe, em primeiro, breve histórico da escalada da função
social no ordenamento jurídico com relação ao instituto “propriedade”.
Cogitou-se sobre função social da propriedade na
legislação portuguesa de 1375 que obrigava os proprietários, os
arrendatários, os foreiros e outros à lavrarem e semearem suas terras, sob
pena de que as terras fossem entregues a terceiros que as lavrassem e
semeassem por tempo determinado. O Código Civil português de 1867
consagrou a função social do direito real.
Já no Brasil, os resquícios da função social da
propriedade encontram-se desde a Lei nº 601, de 1850, Lei das Terras,
embora o seu objeto fosse a regularização de posses, que autorizava a Coroa
Portuguesa a arrecadar as terras que haviam sido dadas em concessão e não
tivessem sido aproveitadas.
Mas a propriedade, na própria Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão de 1789 é vista como um direito natural inviolável e
sagrado (art. 12). Tal conceito individualista da propriedade se viu refletido
Republicana de 189156. Somente na Constituição de 193457 o exercício do
direito de propriedade foi condicionado a garantia de não afronta ao
interesse social ou coletivo (art. 113, § 17). Assim seguiu-se a Constituição
de 1946, ressalvando que “o uso da propriedade será condicionado ao
bem-estar social. A Lei poderá, com observância no disposto no art. 141, § 16,
promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para
todos”.
No pós Primeira Grande Guerra, a Constituição
mexicana de 1917 incluiu no seu texto inovações de caráter social, seguida a
pela Constituição de Weimar de 1919.
Na Constituição brasileira de 1967, a função social foi
disciplinada no art. 160, III, tendo sido concebida como princípio de ordem
econômica e social, adquirindo a ordem econômica e social uma valor
teleológico, tendo por finalidade o desenvolvimento nacional e a justiça
social.
56
Embora a questão social veio sendo sentida no Brasil desde a vigência da Constituição Federal de 1891, embora os reclamos da sociedade não tenham sido atendidos. Vê-se a presença da questão social, a partir dos comentários à Constituição feitos por Rui Barbosa e transcritos por João Bosco Leopoldino da Fonseca:
“Trouxeram ao Brasil, criaram no Brasil a questão social. Ela urge conosco por medidas, que com seriedade atendam aos seus mais imperiosos reclamos. Mas como é que lhe atenderíamos nos limites estritos do nosso direito constitucional?
Ante os nossos princípios constitucionais, a liberdade dos contratos é absoluta, o capitalista, o industrial, o patrão estão ao abrigo de interferências da lei, a tal respeito. Onde iria ela buscar, legitimamente, autoridade, para acudir a certas reclamações operárias, para, por exemplo, limitar horas ao trabalho? Veja-se o que tem passado na América do Norte, onde leis adotadas para acudir a tais reclamações têm ido esbarrar, por vezes, a título de inconstitucionalidade, em sentenças de tribunais superiores.
Daí um dilema de caráter revolucionário e corolários nefastos: porque ora a opinião das classes mais numerosas se insurge contra a jurisprudência dos tribunais, ora os tribunais transigem com elas em prejuízo da legalidade constitucional. Num caso é a justiça que se impopulariza. No outro, a Constituição que se desprestigia.” Direito Econômico, p. 69.
57
Importante diferença no tratamento da função social na
Constituição Federal de 1967 com a atual, é que na Carta Política de 1988, a
função social tornou-se direito fundamental (art. 5º, inciso XXIII).
Não se pode deixar de mencionar os fatos sociais que
contribuíram para a formação de um constitucionalismo mais social, que
acolheu no texto constitucional valores perseguidos pela sociedade e
demandou do Estado um comprometimento com a justiça social. ROGÉRIO
GESTA LEAL58 ajuda-nos a fazer esse resgate histórico, partindo do
esfacelamento das economias européias com a Primeira Guerra Mundial
(1914 a 1918), seguido pelo Tratado de Versalhes, acarretando na formação
de um monopólio econômico e político dos Estados Unidos da América, da
França, da Itália e da Espanha. A resposta crítica dos trabalhadores ao
sistema capitalista com economia então fragilizada, traduzidas em
movimentos operários deu azo a propostas de descentralização de produção
e participação dos trabalhadores nos lucros. O constitucionalismo clássico
foi sepultado então com a Declaração dos Direitos do Homem, incluídos ai os
direitos sociais.
3.2. Harmonização entre direitos individuais e função social.
58
Facilmente se discute, sob o prisma constitucional, a
concreção dos direitos fundamentais em face do poder público, também
chamadas de liberdades públicas.59
A fórmula genérica de função social esculpida no inciso
XXIII, do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, foi destacada como
princípio da ordem econômica (art. 170, III, CF), afastando de vez, a forma
individualista da propriedade, cedendo lugar a “propriedade-função”,
conferindo-lhe, ainda, alto grau de relativismo, no sentido de que, conforme
conclui KIYOSHI HARADA, “a propriedade privada só se justifica enquanto
cumpre a função social”.60
De qualquer forma o conteúdo essencial do direito de
propriedade continua a ser a possibilidade de sua utilização privada e o
poder de disposição pelo proprietário, que sob o prisma constitucional,
implica também numa limitação da esfera do Estado no campo econômico,
excepcionada somente na forma prevista na Constituição Federal. Ou seja,
as restrições ao direito de propriedade que a lei poderá trazer só serão
aquelas fundadas na própria Constituição.61
O Professor ARRUDA ALVIM defende tal limitação,
asseverando que:
“Onde não há liberdade para o legislador
infraconstitucional é em relação à área do direito
constitucional representativa do conteúdo essencial do
direito de propriedade, de tal forma que não é possível
59
Segundo Celso Ribeiro Bastos, “Dá-se o nome de liberdades públicas, de direitos humanos ou individuais àquelas prerrogativas que tem o indivíduo em face do Estado.” Curso de direito constitucional, p. 165.
60
Desapropriação – doutrina e prática, p. 23.
61
que se suprima ex lege o direito de propriedade , como,
ainda, se se vier a vedar-se por lei o exercício do direito
de propriedade, ou se se vier a tornar inviável a
aquisição desse direito. Sobre a preservação desse núcleo
essencial manifesta-se, também, pela
inconstitucionalidade da lei Robert Alexy.”62
Certo é que, mesmo sobre as liberdades públicas
incidem limitações. Limitações essas consistentes em “assegurar a
coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia
pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos
direitos e garantias de terceiros.” 63
Analisando a hierarquização entre interesse público e
privado, GIORGIO OPPO64 chama à atenção para o fato de que a submissão do
direito privado ao direito público, pode resultar, como nos ensina a história,
não uma maior tutela, mas uma ameaça à própria existência dos mesmos.
O autor italiano lembra que a utilidade social
preconizada na Constituição Federal – qualificada como interesse geral -,
quando relacionada ao direito privado dos bens (propriedade), assume um
papel de função, que, por sua vez, é garantida pela lei, assim como a
propriedade, chegando a ser denominada “usufruto geral de bens” por parte
da coletividade, e que atinge até mesmo a propriedade pública. E invoca a
necessidade de dosar o relacionamento entre a propriedade privada e o
reconhecimento de seu papel social acarreta uma polivalência da instituição
62
A função social do contrato no Novo Código Civil, p. 77.
63
Conforme relatado pelo Ministro Celso de Mello em julgamento de Mandado de Segurança nº 23.452-1 impetrado em face de ato do Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito.
64
privada no atendimento aos interesses individuais e de interesse geral. Nessa
dosagem, se não pudermos considerar a propriedade (bem) como essencial à
liberdade (direito) e necessária à sua própria garantia (utilidade econômica
do bem), ao menos podemos dizer que ela contribui para o exercício e o
desenvolvimento da liberdade dos associados e, portanto, age também no
interesse geral. Esta é a escolha constitucional.
Assim, conclui o doutrinador, que o interesse geral não é
limite do direito privado, mas sim meio de solução do conflito entre a
propriedade e a atividade, que deverá refletir uma escolha de interesse geral.
Especificamente quanto à atividade, na mesma obra, o
Professor italiano frisa, ainda que esta deve ser mais que apenas ser e
ganhar. Os instrumentos65 e as ações também devem ter relação com o
interesse geral, que se estabelece na noção de mérito, exigindo-se
conformidade com a ordem jurídica e a consciência social. Tanto atividade
como contrato das empresas (públicas ou privadas) devem inspirar-se na
responsabilidade de suas ações, adequando as exigência de mercado às
orientações comunitárias. Explica que contrato e empresa são instituições de
direito privado, mas não necessariamente privados com relação ao indivíduo,
sugerindo-se uma privatização dos meios e não dos fins.
O mencionado autor finaliza a importante abordagem em
busca da harmonização entre o privado e o público, sem pretender defender
o setor privado, concluindo que o interesse público pode usar o direito
privado, mas não pode pedir ao direito privado mais do que este pode
oferecer, e deve aceitar do direito privado, o que lhe é essencial.
65
3.3. Função Social e Lucro
O poder-dever de perseguir o bem-estar social, imposto
pela função social da empresa, vem sendo paulatinamente exercido pelas
companhias, mas saltam aos olhos, especialmente dos juristas, duas
complexidades66: compatibilização da função social com o lucro; e a (in)
segurança jurídica ante a cláusula geral – função social.
A primeira diz respeito a possibilidade de compatibilizar
a essa teoria da função social das empresas com o seu objeto, qual seja,
obtenção de lucro.
Antes de cotizar a função social com o lucro, vale
enfatizar que o objetivo da empresa é obter lucros. Ou seja, a idéia da busca
do lucro na atividade empresarial é tomada como conduta finalista, embora
alguns doutrinadores entendam que pode existir uma atividade empresarial
cujos objetivos primordiais não sejam o lucro imediato.
Nesse sentido, OSCAR BARRETO FILHO, defende que
“muitos autores caracterizam a empresa privada como
tendo por finalidade específica o lucro, o que não afigura
correto. Esta conceituação está superada, porque o lucro é
antes um resultado da atividade empresarial, e não uma
finalidade em si. Decorre o lucro da diferença entre
rendimento auferido em determinado período e as
despesas oriundas dos fatores produtivos na realização
66