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Deveres positivos e deveres negativos.

A ORDEM ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL 2.1 A Ordem Econômica Constitucional e o Desenvolvimento Social 2.2.

2.2. Deveres positivos e deveres negativos.

Verdade é que, antes de analisar o princípio da função social, mister se faz investigar em que se traduzem ou deveriam traduzir-se, os deveres sociais decorrentes da ordem econômica constitucional: em ações positivas e ações negativas.

Na sua brilhante lógica, para deduzir o que é função social, FABIO KONDER COMPARATO faz uma análise etimológica38, seguida da análise institucional do direito, para concluir que, de forma abstrata, a “função” para o direito pode ser entendida como a “atividade dirigida a um

fim e comportando, de parte do sujeito agente, um poder ou competência”,

ressaltando que esse “fim” é sempre alheio ao interesse do agente ou titular desse poder e que o desenvolvimento da atividade não se dá só no sentido negativo – de respeito aos limites legais – mas também na “acepção positiva,

de algo que deve ser feito ou cumprido.39

Assim, função social empresarial, pode ser entendida como a competência conferida ao empresário de exercer a atividade econômica em prol dos interesses da coletividade - pessoas indeterminadas.

Mas é possível vislumbrar o exercício da atividade econômica concomitante com a consecução de deveres sociais positivos pelo empresário com relação à sociedade?

38

“O substantivo functio, na língua matriz, é derivado do verbo depoente fungor (functus sum, fungi),

cujo significado primigênio é de cumprir algo, ou desempenhar-se de um dever ou uma tarefa.”

Estado, Empresa e Função Social, p. 40.

39

E exemplifica essa atividade com fim em interesse alheio, mas de pessoas determinadas, com a invocação do poder familiar, a tutela, a curatela. Estado, Empresa e Função Social, p. 41.

Conforme constata EROS ROBERTO GRAU, deveres

negativos, na forma de limites impostos pelos princípios constitucionais, facilmente reconhecidos, sendo que o Professor, inclusive, os concebe como análogos às manifestações de poder de polícia. A problemática, de fato, está na sua concepção positiva.

“A questão torna-se complexa, no entanto, quando, em sua concreção, a função social é tomada desde uma

concepção positiva, isto é, como princípio gerador da

imposição de comportamentos positivos ao proprietário. A lei, então – âmbito no qual se opera a concreção do princípio – impõe ao proprietário (titular de um direito, portanto de um poder) o dever de exercitá-lo em benefício de outrem, e não, apenas, de não exercitá-lo em prejuízo de outrem.”40

Também o Professor COMPARATO busca desmistificar o

conteúdo do dever positivo, analisando os dispositivos sobre função social da propriedade no direito comparado. Recorda que embora a Constituição de Weimar de 1919 (art. 153, última alínea) e Lei Fundamental de Bonn, de 1949 (art. 14) prevejam o uso da propriedade privada a serviço do interesse da coletividade, “nenhuma autoridade alemã conseguiu explicar em que

consistiriam os deveres sociais positivos do proprietário em relação à coletividade”.41 Assevera que, a mesma inaplicabilidade se dá também em outros países tal como a Itália42 e a Espanha4344 em que se inseriu na

40

Ibidem, p. 244.

41

Estado, Empresa e Função Social, p. 41.

42

Que aliás frustou os seus doutrinadores na tentativa de alcançar os deveres positivos em razão de ter reduzido a função social à existência de certas restrições quanto ao uso dos bens, cabendo ao legislador delimitar tais restrições (art. 42, segunda alínea, da Carta de 1947). Estado, Empresa e

Constituição dispositivo sobre função social da propriedade, à exceção do Brasil que, no próprio texto constitucional, elencou dois deveres positivos do proprietário de imóvel urbano: um de atender ao plano diretor (art. 182,

caput) e outro de promover o adequado aproveitamento do imóvel na forma

da lei (art. 182, § 2º).

EROS Roberto Grau, exemplificando a concepção positiva

da função social, reconhece a disciplina dos deveres sociais positivos nos artigos 42 e 44 da Constituição Italiana, “que funcionam como fonte geradora

da imposição de comportamentos positivos ao proprietário,” entretanto, não

traz exemplos do que concretamente sejam tais comportamentos.

O autor, no âmbito da atividade empresarial consegue mencionar a aplicação do Código da Propriedade Industrial (art. 49), que atribui à empresa titular de uma marca, o ônus de explorá-la, tal qual ocorre em relação aos direitos de lavra. Em se reconhecendo nessa exploração a finalidade social, o exemplo vale para um dever positivo social que atenda a coletividade.

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Também a Constituição espanhola de 1978 limitou-se a estabelecer restrições legais ao uso da propriedade.

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Os doutrinadores espanhóis denominam a contraposição entre o direito de propriedade e a função social (dimensión individualista e dimensión social) de “duplicidad de caras”do regime jurídico de propriedade, especialmente pela cotização da Constituição espanhola com o Código Civil espanhol. Em análise da aplicação da função social contemplada no Código Civil espanhol, RAFAEL COLINA

GAREA, considera a influência da função social no exercício de direito de propriedade, apenas no sentido negativo, na forma de limitações, senão vejamos:

“En el ambiente liberal en que nace el Código Civil español, la propriedad representa una esfera intangible de libertad reservada al ciudadano y, em consecuencia, toda restricción al ejercicio de los poderes dominicales del propietario, ya provenga de otros particulares o de los poderes públicos, es considerada negativamente. Se entiende que los limites al derecho de propiedad contrastan con los intereses privados de sus titulares, ya que potencialmente podrían constituir una vulneración de la innata e ilimitada libertad civil tan proclamada por el individualismo jurídico. Por consiguiente, las limitaciones son vistas como raras y aisladas excepciones al principio fundamental de libertad que se reconoce al proprietario en el ejercicio de su derecho. Desde este punto de vista, se procede a uma interpretación restrictiva del sentido de la expresión “sin más limitaciones que las estabelecidas en las leyes”.” La Función Social de La Propiedad Privada em la Constitución Espanõla de 1978, p. 238.

Em ações sociais mais simples, ora nominadas de filantropia - tais como projetos voltados para o acolhimento de menores, educação, cultura, diversidade - é possível exigir essas ações (positivas) invocando a função social da empresa ou outro princípio constitucional voltado para o exercício pleno da cidadania? E para a propriedade de bens de produção, em que consistiria o dever social positivo?

Também desconhecemos no ordenamento pátrio instrumento e mesmo normas que abarquem tais deveres sociais positivos. Obviamente tratamos de deveres positivos fora do elenco legal a que está sujeito o empresário, tal como, de forma extrema exemplifica COMPARATO,

deixar de aumentar os preços dos produtos ou serviços de primeira necessidade em prol do bem comum.

Para EROS ROBERTO GRAU há um comportamento positivo

integrado ao princípio da função social contemplado no próprio texto constitucional, que é a busca do pleno emprego (art. 170, VIII, da CF).

“O princípio informa o conteúdo ativo do princípio da

função social da propriedade. A propriedade dotada de função social obriga o proprietário ou o titular do poder de

controle sobre ela ao exercício desse direito-função (poder-

dever), até para que se esteja a realizar o pleno emprego.”45

Assim como os princípios da defesa do consumidor, da

defesa do meio ambiente e a redução das desigualdades regionais e sociais, a

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busca do pleno emprego é classificada por JOSÉ AFONSO DA SILVA46, como princípio de integração, haja vista que estão dirigidos a resolver problemas da

marginalização social.

Os dois primeiros – defesa do consumidor e do meio

ambiente – porque disciplinados por leis infraconstitucionais gozam de

exigibilidade, sendo que tal disciplina, por vezes, contempla comportamento ativo.

Segundo JOSÉ AFONSO DA SILVA47 a expressão pleno

emprego de ser tomada na sua utilização mais abrangente, devendo ser

considerada a busca tanto quantitativa como qualitativa. Se, o inciso VIII, do art. 170, da Constituição Federal, deve ser visto “no sentido de propiciar

trabalho a todos quantos estejam em condições de exercer uma atividade produtiva”, certo é, que assim como, na função social, há a expectativa de

um comportamento positivo de colocar à disposição dos cidadãos tantos quantos postos de trabalho forem possível, motivado apenas pela regra moral.

De fato, direito subjetivo e função/dever não são incompatíveis, mas a ausência de cogência, inibe o comportamento ativo. O exercício da atividade econômica ou a propriedade dos bens de produção é direito subjetivo48. Também uma ação social motivada por valores éticos com

o fim de atingir o bem social constitui “regra ética subjetiva” que, a par da

46

Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 770. 47

Idem, p. 771.

48

Segundo Eros Roberto Grau, “ser titular de um direito subjetivo é estar autorizado pelo

ordenamento jurídico a praticar ou não praticar um ato – isto é, a transformar em ato a potência, ou seja, a aptidão para a prática de tal ato,” sendo que “O Direito pode, coerentemente, introduzir como elementos integrantes da autorização a alguém para o exercício de uma faculdade inúmeros requisitos, inclusive criando obrigações e ônus para o titular do direito subjetivo.” A Ordem

eficácia imediata dos princípios constitucionais, não encontra na disciplina infraconstitucional disposições impondo comportamentos positivos que atendam ao interesse coletivo, razão pela qual à doutrina jurídica faltam exemplos de tipificação de deveres positivos. Também, o direito subjetivo, quando exercido, é hábil a gerar ônus e obrigações ao seu titular.

De fato, ao empresário atender aos deveres sociais positivos, parece tão utópico e contrário ao objetivo empresarial – obter lucro – que, por certo, nulifica o conceito de função social ou, ao menos, o limita ao exercício de deveres negativos.

Ademais, certo é que a aplicação integral da função social, incluída a execução de deveres positivos, acarretaria “sério risco de

servir como mero disfarce retórico para o abandono, pelo Estado, de toda política social, em homenagem à estabilidade monetária e ao equilíbrio das finanças públicas.”49

2.3. A concreção dos princípios constitucionais e as normas