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Diga que você está de acordo!: o material fatzer de brecht como modelo de ação

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO/ESCOLA DE DANÇA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

FRANCIMARA NOGUEIRA TEIXEIRA

DIGA QUE VOCÊ ESTÁ DE ACORDO!:

O MATERIAL FATZER DE BRECHT COMO MODELO DE AÇÃO

Salvador

2013

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FRANCIMARA NOGUEIRA TEIXEIRA

DIGA QUE VOCÊ ESTÁ DE ACORDO!:

O MATERIAL FATZER DE BRECHT COMO MODELO DE AÇÃO

Tese submetida ao Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas, da Universidade Federal da Bahia, como requisito para obtenção do título de Doutora em Artes Cênicas.

Orientadora: Profa. Dra. Antonia Pereira Bezerra.

Salvador

2013

!

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Teixeira, Francimara Nogueira.

Diga que você está de acordo! O Material Fatzer de Brecht como modelo de ação / Francimara Nogueira Teixeira. - 2013.

324 f.

Orientadora: Profª. Drª. Antonia Pereira Bezerra.

Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, 2013.

1. Teatro - Jogos. 2. Brecht, Bertolt. 3. Experiência I. Universidade Federal da Bahia. Escola de Teatro. II. Título.

CDD 792 !

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!

Para minha mãe, de quem tento imitar a arte de cortar, separar e reunir de novo, em nova forma.

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AGRADECIMENTOS

Ao mais lindo dos homens, meu amor Ricardo Salmito, por tanta coisa que nem consigo descrever. À Luísa, que teve sua infância atravessada pelo doutorado da mãe e que lidou com ele com toda a paciência e a impaciência que pode. Luísa, que amo mais que tudo. A minha mãe, meu pai, minha irmã e meu irmão que, de alguma forma, estão sempre estudando comigo. A Leandro Colling e Miguel Rosa, abrigo e amor em Salvador.

À Aline Silva, Ana Luíza Rios, Edivaldo Batista, Levy Mota, Loreta Dialla e Márcio Medeiros, atores do grupo Teatro Máquina, parte fundamental dessa pesquisa, com quem me invento e mais gosto de inventar.

A minha orientadora, Profa. Antonia Pereira, pelo carinho e atenção. À Profa. Ingrid Koudela, por ter me apresentado as peças didáticas.

A minha mais que linda e querida Juliana Carvalho, por me escutar quando precisei, além de ter sido uma revisora cuidadosa e leitora dedicada. À Ute Hermanns, por sua simpatia em me ajudar a entender o Fatzer em alemão. À Carolina Laranjeira, Leonardo Sebiani, Nadir Nóbrega, Patrícia Caetano, Rosemeri Rocha e Valécia Ribeiro, amigos baianos e do mundo todo, porque juntos somos mais. Aos queridos Alexandra Marinho, Daniel Martins, Edileusa Santiago, Marcos Barbosa, Pablo Assumpção, Renata Maranhão, Roberto Marques, Vanessa Teixeira de Oliveira, Vládia Figueiredo, amigos da vida toda. Ao Ayrton Pessoa, o Bob, pelas transcrição de nossas melodias. Ao Jorge Louraço, por ter me apresentado ao Pedro Mantovani. Ao Pedro Mantovani, pelo utilíssimo trabalho com o Fatzer.

Aos professores do PPGAC/UFBA, especialmente Ângela Reis, Daniel Marques, Cláudio Cajaíba, Cleise Mendes, Érico José, Jacyan Castilho, Luiz Marfuz e Sônia Rangel. Aos meus colegas de turma.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES, através do convênio SETEC/IFCE, pela bolsa de Doutorado.

A todos que fazem o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, pelo apoio institucional e afetivo a esta pesquisa, mas, especialmente, por ser a casa onde ensino e aprendo teatro.

Aos professores Danilo Pinho, Fernando Lira, Joaquim Gama, Stefan Baumgärtel e Thiago Arrais. Aos meus alunos.

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TEIXEIRA, F.N. Diga que você está de acordo!: O Material Fatzer de Brecht como modelo de ação. 2013. 324 f. Tese (Doutorado) – Escola de Teatro/Escola de Dança, Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.

RESUMO

Esta tese tem como objetivo a realização de um trabalho experimental baseado na descoberta e criação de jogos para a cena a partir do Material Fatzer, produzido por Bertolt Brecht entre 1926 e 1930. O material é uma reunião de comentários e fragmentos, divididos em cinco fases de trabalho. Essa pesquisa parte da hipótese que o Fatzer é um modelo para a investigação contemporânea de novas formas de narrar. O texto é explorado a partir dos conceitos de modelo de ação (Handlungsmuster) e estranhamento (Verfremdung), eleitos nesta pesquisa como instrumentos didáticos e metodológicos a partir da teoria da peça didática (Lehrstück) e defendidos por seus principais comentadores (BENJAMIN, 1987; KOUDELA, 1991; LEHMANN, 2009; McGOWAN, 2011; STEINWEG; 1972, WILKE, 1999; WIRTH, 1984, 1999). Os experimentos foram realizados com o grupo cearense Teatro Máquina em treze encontros, distribuídos em quatro etapas de trabalho. Os procedimentos técnicos adotados na pesquisa (relatos, improvisação, troca de papéis, jogos e produção textual) compõem o plano operativo das etapas de trabalho, subdivididas a partir das seguintes discussões: i. noções de experiência, choque, crítica e fragmento, segundo Benjamin (1987); ii. conceitos operativos da teoria e prática da peça didática; e iii. estruturas textuais que compõem o Fatzer (diálogos, coros, fábulas, indicações para encenação, reflexões teóricas). Durante as etapas de trabalho, foi desenvolvido o roteiro Diga que você está de acordo!, que sintetiza os principais materiais e jogos para a cena experimentados e produzidos na etapa prática. O roteiro é uma síntese poética do encontro do grupo com o texto de Brecht e apresenta em seções separadas as estruturas narrativas que foram experimentadas durante a pesquisa, indicando que a experimentação com o texto como modelo de ação aponta possibilidades para a descoberta de novas formas de narrar.

Palavras-chave: Fatzer, Brecht, modelo de ação, estranhamento, jogos teatrais, Benjamin, experiência, Teatro Máquina.

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TEIXEIRA, F.N. Say you agree!: Brecht’s Fatzer Material as Handlungsmuster. 2013. 324 f. PhD Dissertation – Escola de Teatro/Escola de Dança, Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.

ABSTRACT

The main objective of this thesis is to develop an experimental work based on the discovery and creation of games for the scene from the Material Fatzer, produced by Bertolt Brecht during the period 1926-1930. The material is a collection of comments and fragments, divided into five phases of work. This research starts from the hypothesis that Fatzer is a model for contemporary research of new ways of narrative. From the text we explore the German concepts of Handlungsmuster and Verfremdung, elected in this research as didactic and methodological tools based on the theory of learning play (Lehrstück), as defended by several commentators (BENJAMIN, 1987; KOUDELA, 1991; LEHMANN, 2009; McGOWAN, 2011; STEINWEG, 1972, WILKE, 1999; WIRTH, 1984, 1999). The experiments were performed by the brazilian group Teatro Maquina in thirteen meetings, divided into four stages of work. The technical procedures adopted in this research (reports, improvisation, role play, games and text production) comprise the working plan, subdivided into the following discussions: (i) notions of experience, shock, and critical fragment, according to Benjamin (1987), (ii) operational concepts of the theory and practice of learning play, and (iii) Fatzer's textual structures (dialogues, choruses, fables, indications for staging and theoretical reflections). During the meetings, the script Say you agree! was written. It is a poetic synthesis of the work developed with the group, which summarizes the main materials and games experienced and produced in the practice stage. The play uses Brecht's text and presents, in separate sections, narrative structures that were tested during the meetings. As a conclusion, the experiments, based on the concepts of Fatzer as a focus for the artistic creation, reveal possibilities for the discovery of new forms of narrative.

Keywords: Fatzer, Brecht, Handlungsmuster, Verfremdung, theather games, Benjamin, experience, Teatro Máquina.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO... p.9 1.1 Objeto, problema e conceitos iniciais... p.10 1.2 Objetivos e metodologia... p.18 1.3 Teatro Máquina... p.20 1.4 Material Fatzer... p.23 1.5 Descrição dos capítulos... p.29

2. DAS LEHRSTÜCK: TEORIA... p.32 2.1 Episierung: a estrutura dramática... p.32 2.2 Erfahrungstheater: experiência, vivência, choque... p.46 2.3 Fragmento e crítica... p.58

3. DAS LEHRSTÜCK: CONCEITOS OPERATIVOS... p.71 3.1 Modelo de ação... p.71 3.2 Fábula, gesto e estranhamento... p.81

4. MATERIAL FATZER:

PREPARATIVOS PARA A PRÁTICA... p.105

4.1 Exploração do material... p.105

O assunto em Fatzer... p.105 ! A forma em Fatzer...! p.117

4.2 Abordagem do material... p.124

Sobre a prática... p.124 Sobre a seleção dos textos... p.125 Sobre a divisão dos encontros... p.128 Sobre as atividades... p.129

4.3 Orientações para a prática... p.131

Sobre o estado de jogo... p.132 Sobre as proposições e contra-proposições ... p.133

4.4 Procedimentos técnicos... p.134

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Improvisação... p.135 Troca de papéis: repetição e experiência... p.136 Produção textual: protocolo, fábula, biografia... p.137 Criação de jogos... p.139

5. O TEXTO EM JOGO:

EXPERIMENTOS COM O TEATRO MÁQUINA... p.141

5.1 Descrição da prática com o Teatro Máquina... p.141 5.2 Relatos por dia... p.141

5.2.1 Etapa de Trabalho 1... p.141 5.2.2 Etapa de Trabalho 2... p.171 5.2.3 Etapa de Trabalho 3... p.187 5.2.4 ! Etapa de Trabalho 4...! p.205

6. NOVAS FORMAS DE NARRAR:

A EXPERIÊNCIA DO JOGO NA CRIAÇÃO DO TEXTO... p.215

6.1 Sobre a criação do roteiro dramatúrgico... p.215 6.2 Diga que você está de acordo!: o Fatzer do Teatro Máquina... p.218 6.3

!

Sobre o tratamento dramatúrgico...! p.250 7. ! CONSIDERAÇÕES FINAIS...! p.260 ! REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...! p.271 ANEXOS... p.284

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1. INTRODUÇÃO

FATZER: Aqui tem carne? MULHER: Cem gramas por dia, por pessoa. FATZER: A senhora vai me dar quatro vezes isso. MULHER: Você é o mesmo que quatro homens? FATZER: A prática está acima da teoria. Bertolt Brecht

No meu trabalho como encenadora me interesso por investigar a linguagem do teatro e dar forma a essa investigação com meu grupo, o Teatro Máquina. Parto do princípio que o teatro precisa interrogar-se sobre novas formas, desenvolver atividades continuadas de pesquisa e produção e inquietar-se cotidianamente diante de sua própria prática.

Defendo o teatro como lugar no qual é possível contar histórias e refletir sobre a forma de contá-las, propondo novas formas. Quanto mais profundamente investigo minha arte, mais fortaleço a dimensão estética como dimensão política. Mas como manter renovada essa atividade, como experimentar novas formas?

A pesquisa em artes cênicas passa fundamentalmente por uma aproximação com outras áreas de conhecimento. Entendo que a arte como linguagem prescinde de teoria e antes oferece à teoria substrato para a reflexão e a análise. A arte, radicalmente falando, já é teoria. Os artistas, portanto, não teorizam simplesmente, eles fazem arte ou, ainda, teorizam à medida que produzem. A dimensão concreta do objeto artístico contém a etapa teórica posterior, mas já prevista, à criação. A filosofia da arte surge para refletir sobre a arte. A relação de necessidade arte/filosofia denuncia muito claramente que arte é pensamento. A reprodução e a interpretação de uma obra já ultrapassam seu campo específico e instauram um outro campo de conhecimento. A organização de um discurso sobre arte já não cabe à arte, mas a atravessa. Portanto, se eu como artista e pesquisadora quero falar sobre arte, tenho que acessar inevitavelmente outros campos de saber, como a filosofia, a sociologia, a psicologia, a história, a política. Esses campos servem à arte.

Para a pesquisa que aqui introduzo, as interfaces do teatro com a filosofia são claramente compreendidas como um espaço no qual discussão e reflexão se tornam matérias criativas. Acredito que é possível aprender com as formas narrativas –

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especialmente com a forma árida e provocadora das peças didáticas – a desenvolver modelos e experimentá-los.

1.1 Objeto, problema e conceitos iniciais

Esta pesquisa se centra na articulação produtiva e reflexiva entre a teoria e a prática. Meu objeto é o Fatzer, de Bertolt Brecht (1898-1956), como modelo de ação. Desta obra inacabada, escrita por Brecht entre 1926 e 1930, exploro experimentalmente a qualidade de texto-modelo a partir da teoria da peça didática, elegendo como instrumentos didáticos e metodológicos o modelo de ação (Handlungsmuster) e o estranhamento (Verfremdung), na perspectiva de explorar estratégias narrativas com o grupo cearense Teatro Máquina.

Posso sintetizar assim o problema que move a minha investigação: é possível descobrir novas formas de narrar através da construção ficcional da experiência? Como desdobramento dessa questão, construo minha hipótese: O Fatzer é um modelo para a investigação contemporânea de novas formas de narrar. Esse material me permite desenvolver essa hipótese pelas seguintes razões: 1. pela forma literária do fragmento; 2. por ter sido produzido no período em que Brecht desenvolveu o projeto da peça didática; 3. por sua qualidade de texto-aberto que indica a apropriação e a reestruturação. O caminho que escolho para descobrir e criar estratégias narrativas é o de explorar o texto como texto-modelo, elegendo como instrumentos didáticos e metodológicos o modelo de ação e o estranhamento. Defendo que a produção de novas estruturas narrativas está imediatamente relacionada à descoberta e criação de jogos para a cena. Abordo o Fatzer a partir do conceito de modelo de ação, desenvolvendo com os atores do Teatro Máquina diversos jogos para a cena.

O campo teórico dessa pesquisa abriga uma série de conceitos e termos operacionais. É preciso compreender inicialmente o contexto de surgimento das peças didáticas na obra de Brecht, a importância de Fatzer na sua obra, os conceitos relacionados ao teatro épico e os conceitos específicos produzidos pela teoria e prática da peça didática, que dão suporte a essa pesquisa. Assim posso apresentar mais claramente seus objetivos e o percurso metodológico. Bertolt Brecht escreveu textos dramáticos e refletiu sobre os aspectos teóricos e práticos do seu teatro de forma profícua e intermitente por mais de trinta anos. Sua produção teórica

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se revela fundamental para o pensamento teatral, porque se dá concomitantemente ao desenvolvimento de sua prática e à descoberta de novas formas. Brecht é um desses artistas que consegue fazer confluir o pensamento sobre seu momento histórico com uma produção literária que se configura como ato artístico. Tal confluência projeta sua obra para o futuro. A análise do seu processo criativo precisa considerar essa relação de confluência, em um trabalho que tem uma inscrição histórica específica.

Diversos comentadores da sua obra (BORNHEIM, 1992; ESSLIN, 1979; HINCK, 1962; KESTING, 1986; WILLET, 1967) organizam a produção brechtiana enfeixando-a em fases, sejam biográficas ou estéticas. É comum ouvir falar do jovem Brecht expressionista, do Brecht exilado, do Brecht em Hollywood, do Brecht do Berliner Ensemble. E também do Brecht das óperas, das peças didáticas e do Brecht tardio das grandes peças.

Para essa pesquisa, interessa uma abordagem do projeto brechtiano que o considere em sua totalidade, de forma ampliada e reflexiva, em suas contradições internas e em sua autocrítica. Fredric Jameson (1999) escreveu um livro chamado O método Brecht. Nele trata de construir a defesa de que o trabalho brechtiano acontece através do desenvolvimento dinâmico de sua dramaturgia, de seus escritos teóricos e da sua atitude política. O desafiador diante da obra de Brecht, segundo Jameson (1999), é investigar o que Brecht quis representar e os meios que escolheu para fazê-lo. Os conceitos e as técnicas que se associam a esse teatro são conformados dentro deste mesmo teatro, lhe dão corpo e método.

Compreendo a escrita teórica de Brecht (2005), assim como sua dramaturgia, em um fluxo que não conhece interrupções, mas desvios, deslocamentos e superação. Brecht está interessado em pensar novas formas para os novos temas e experimenta de maneira inquieta o modelo ópera, o modelo parábola, o modelo tragédia. Escreve “ao modo de”, fazendo da sua escrita um campo para que as formas narrativas e dramáticas possam ser testadas e refletidas, discutindo, afinal, o próprio teatro.

Um desses modos, o que interessa diretamente a essa pesquisa, é a peça didática – o Lehrstück1 –, como também é encontrado o termo em parte da literatura !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

1 Peça didática é o termo em português para Lehrstück. Nessa pesquisa usarei tanto o termo em

alemão (das Lehrstück no singular, die Lehrstücke no plural) quanto em português, em oposição ao termo episches Schaustück, ou peça épica de espetáculo.

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revisada. Os textos foram escritos no período do entre-guerras, fortemente marcado por uma instabilidade econômica e política brutais. “Berlim febril de 1927, República de Weimar, comunismo e pré-nazismo, miséria proletária e civilização cinematográfica [...]” (CARPEAUX, 2011, p.2793) definem o cenário alemão de transformações políticas profundas depois da Primeira Guerra Mundial. Sobre esse período da produção brechtiana, Heiner Müller (1997, p.166) diz: “A etapa mais importante de sua obra é para mim o período do fim dos anos vinte até 1933”. O Fatzer expressa esse contexto histórico de forma visceral.

As peças didáticas formam um conjunto específico dentro da escrita de Brecht. É possível, pelo seu caráter e unidade, distingui-las dos demais textos, chamados de peças épicas de espetáculo (episches Schaustück). Nas peças épicas de espetáculo se concentra a maior e mais conhecida produção dramatúrgica brechtiana, pelo volume de textos e pela quantidade de encenações. Como não prevêem necessariamente a encenação, as peças didáticas indicam outra relação entre texto e representação.

Os textos da tipologia dramatúrgica das peças didáticas se inscrevem em um lugar determinado no teatro de Brecht e se caracterizam como uma etapa criativa bastante radical de seu trabalho, ao reunirem a experimentação prática dos textos como modelo de ação com a discussão teórica do papel do teatro e de seus principais elementos. Brecht, quando escreveu essas peças, estava interessado em intervir diretamente no seu público, em experimentar uma dramaturgia que promovesse a discussão e a reflexão.

A produção dramatúrgica e ensaística de Brecht, que condensa o projeto do Lehrstück, está diretamente relacionada a dois fatores importantes: à sua experiência com as óperas e ao experimento sociológico do Processo dos Três Vinténs2. As óperas e o experimento sociológico são estratégias político-estéticas que Brecht desenvolve em paralelo à produção das peças didáticas. Ingrid Koudela (2009, p.XVI) descreve a importância desse processo no contexto de produção dessas peças:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

2 Em 1931, o diretor Georg Wilhelm Pabst lança o filme Ópera de Três Vinténs, cuja versão é

rechaçada por Brecht ainda durante a filmagem. Brecht processa o diretor e escreve um texto como experimento sociológico, discutindo os mecanismos ideológicos que subjaziam à produção artística burguesa. (BRECHT, 2006).

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A peça didática, na obra de Brecht, nasce do conflito legal com a versão filmada da Ópera de Três Vinténs, quando o dramaturgo sentiu a necessidade de produzir arte distante da indústria cultural. O embate, iniciado nos tribunais de justiça, como um experimento para revelar a ideologia da industria cinematográfica, gerou o Lehrstück ou learning play (jogo de aprendizagem), como Brecht traduziu o termo para o inglês.

Brecht (2005), ao final dos seus apontamentos sobre a ópera Ascensão e queda da cidade de Mahagonny, afirma que nas obras seguintes a essa ópera procuraria acentuar cada vez mais o aspecto didático. Procuraria, portanto, “[...] transformar os fatores de prazer em fatores de ensinamento e transformar determinadas instituições de estâncias de recreio em órgãos de instrução.” (BRECHT, 2005, p.38) É a partir das óperas que Brecht define a idéia de que o teatro deveria passar por uma troca de função (Funktionswechsel), deveria ser refuncionalizado.

O projeto utópico de Brecht (1967b) com as peças didáticas esperava poder promover o ponto de vista do produtor, para que o artista fosse esclarecido quanto à apropriação social dos aparatos. O artista precisava se compreender como produtor. Sem essa compreensão era impossível qualquer transformação social e estética importante. O projeto teórico da peça didática discute uma distinção entre Pequena Pedagogia e Grande Pedagogia, como campo de exercício do teatro na transformação da sociedade capitalista. As peças didáticas, na fase chamada de Pequena Pedagogia, ainda seriam experimentadas na separação palco-platéia, com a ressalva do trabalho necessário com amadores, que deveriam permanecer amadores. Na Grande Pedagogia a separação entre atuantes e espectadores seria superada. O teatro estaria a serviço de uma nova sociedade sem classes. Aqui é possível antever um novo modelo para o teatro épico e uma reformulação profunda na compreensão do fazer teatral, já que a radicalidade da sua teoria propõe inclusive a supressão de um dos pólos fundamentais do espetáculo: o espectador.

O ator, o espectador, o texto, o teatro como lugar físico, todos esses elementos que compõem formalmente o teatro passariam, diante da experimentação com as peças didáticas, por uma completa troca de função, aqui ainda mais incisiva do que a realizada com a proposta das óperas como peças épicas de espetáculo. Nesse teatro as acepções tradicionais de ator e espectador desapareceriam, já que o espaço do teatro seria, fundamentalmente, o espaço do conhecimento. Os textos dos Lehrstücke, em seu caráter formal, compreendidos a partir do conceito de

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modelo de ação, são essencialmente abertos para o jogo e a atualização. O conceito de modelo de ação (Handlungsmuster) implica em uma atitude diante do texto, em abordá-lo como um material poético sobre o qual uma ação se dará. As peças didáticas são peças abertas ao jogo.

O Lehrstück surge como crítica de Brecht (1967b) às instituições teatrais estabelecidas, com artistas e público alienados. O projeto de Brecht, que Heiner Müller (2003) chama de iluminista, é um projeto que acredita que o teatro – uma vez refuncionalizado – pode se afirmar na luta pelo esclarecimento dos meios de produção e como exercício real pela experiência de controle desses meios.

O período que antecede a produção específica das peças didáticas é de grande efervescência na escrita brechtiana. Além de receber, já em 1927, um prêmio literário pela publicação de seus poemas (Hauspostille), nesse ano trabalha ainda como colaborador de Erwin Piscator em uma adaptação de Schweik. Realiza também seu primeiro trabalho com Kurt Weill e estréia em 1928 a Ópera de três vinténs, com sucesso, seguida, já em 1929, pela sua segunda ópera: Ascensão e queda da cidade de Mahagonny.

Entre 1929 e 1930 Brecht escreve a maioria das peças didáticas3, as que nomeia assim em seu título ou subtítulo: O vôo sobre o oceano (peça didática radiofônica para rapazes e moças), A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo, Aquele que diz sim e Aquele que diz não (óperas escolares), Os Horácios e os Curiácios (peça escolar), A decisão (peça didática), A exceção e a regra (peça didática). Fatzer e o Malvado Baal, o associal são fragmentos. A peça A mãe também foi caracterizada como texto didático, mas implicando necessariamente a presença do público. Walter Benjamin, por exemplo, contextualiza A mãe como uma das peças didáticas, embora Brecht tenha se posicionado de outra forma a esse respeito4. Nesses textos, encontram-se elementos comuns à escrita dessa tipologia dramática, além dos tipos associais e dos eixos temáticos recorrentes como a

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3 O vôo sobre o oceano foi escrita entre 1928/1929 (BRECHT, 1988d). A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo foi escrita em 1929 (BRECHT, 1988b). Aquele que diz sim e Aquele que diz não foram escritas entre 1929/1930 (BRECHT, 1988c). A exceção e a regra foi escrita entre

1929/1930 (BRECHT, 1990a). A decisão foi escrita entre 1929/1930 (BRECHT, 1988a). Os

Horácios e os Curiácios foi escrita em 1934 (BRECHT, 1991a). Fatzer (BRECHT, 1995b, 1997,

2002b) e o Malvado Baal, o associal (KOUDELA, 2001) são projetos inacabados.

4 Ingrid Koudela (1991) esclarece que embora Walter Benjamin, por exemplo, considere A mãe um

texto didático, é no próprio Brecht que encontramos a definição de A mãe como biografia histórica, mas que tem na sua concepção afinidades com a forma didática.

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questão da ajuda e do acordo, o que vem a ser o homem, as tensões indivíduo versus coletivo.

Tal panorama permite perceber que em cerca de dez anos Brecht se dedica a escrever textos em um formato que, mesmo tendo uma aplicação imediata no contexto do teatro de agit-prop, dos corais de operários e das escolas5, define – no que concerne à dimensão dramatúrgica – uma outra forma de escrever, porque é um formato extremamente ligado à urgência dos novos temas.

Desde as óperas, portanto, o projeto das peças didáticas vem sendo desenvolvido por Brecht na tensão entre forma e conteúdo. Nas notas sobre Mahagonny, Brecht defende que os conteúdos devam ser atualizados, embora o modelo ópera ainda deva permanecer sendo oferecido como uma iguaria ao público. Brecht acreditava que a atualização do conteúdo operaria uma discussão com os princípios formais fundamentais da ópera. A função da ópera, portanto, seria posta em discussão. O exercício com o modelo, a escritura de uma ópera, nesse caso, se dá como etapa necessária a essa tarefa: a de discutir o modelo, experimentando-o. Brecht (2005, p.28) é enfático: “[...] mesmo que quiséssemos pôr em discussão a ópera como tal (função da ópera), ser-nos-ia forçoso fazer uma ópera.”

Barthes (2007), em seu artigo Por que Brecht?, aponta possibilidades de investigação da obra brechtiana, quando, constatando a necessidade de pensar o teatro politicamente, reúne três lições importantes encontradas no teatro de Brecht.

A primeira delas é que “[...] não se deve ter medo de pensar intelectualmente os problemas da criação teatral.” (2007, p.147). Cabe ao teatro exercitar-se como arte consubstancialmente crítica. A dimensão expressiva do teatro precisa aliar-se à lucidez e à reflexão.

A segunda lição é a afirmação da obra brechtiana como uma vitória sobre o formalismo. Para Barthes, o Episierung, a epicização, é um instrumento dramático que surge da paixão política. Em seu teatro, Brecht não faz determinado conteúdo se adaptar a uma forma antiga, antes cria um instrumento dramático onde conteúdo é forma e forma é conteúdo. Segundo Barthes (2007, p.148), Brecht “[...] nos dá minuciosamente as leis de funcionamento. [...] Brecht reivindicou para a matéria !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

5 Os textos mais diretamente ligados ao teatro de agit-prop são A Padaria (BRECHT, 1995a) e A mãe

(BRECHT, 1990b). Aquele que diz sim e Aquele que diz não (BRECHT, 1988c), utilizado na Escola Karl Marx em Berlim, foi a única experiência de peça didática em escolas. (BORNHEIM, 1992; KOUDELA, 1991).

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teatral um estatuto inteiramente novo e totalmente submetido, não a algum álibi de engajamento, mas a uma verdadeira eficácia política.”

E a terceira lição trata de defender para todos os elementos do teatro, do cenário à maquiagem, uma função política. A última das lições, finalmente, se resume à necessidade de “[...] desalienar não apenas o repertório, mas as técnicas teatrais.” (BARTHES, 2007, p.149). Essas três lições, readequadas a esta pesquisa, oferecem algumas categorias importantes para a discussão do problema: a reflexão teórica sobre as peças didáticas, a epicização como forma surgida da urgência dos novos temas e a função política do teatro, expandida para todos os seus elementos.

O teatro épico, este que segundo Barthes (2007) inventa um instrumento dramático, fomentava a investigação da significação social do seu texto, oferecendo-a oferecendo-a seu público como umoferecendo-a questão oferecendo-a ser resolvidoferecendo-a. Esse teoferecendo-atro, como um oferecendo-a priori, não estava interessado em oferecer uma vivência artística coletiva, em provocar as mesmas reações em seu público, mas antes em dividi-lo, em fazê-lo estranhar a ação, o texto e a si mesmo. O principal desafio, me parece, é compreender e poder expressar determinada forma em confluência com o conteúdo exposto para ser examinado.

O conceito de estranhamento (Verfremdung) é um conceito-chave para o entendimento das múltiplas relações entre texto, ator e espectador na poética brechtiana. No trabalho com a peça didática é um instrumento metodológico e crítico para a experimentação do texto a partir do conceito de modelo de ação. O estranhamento é um dos meios artísticos que o teatro épico dispõe para distanciar o espectador dos acontecimentos representados. Seu emprego é condição indispensável para que não se estabeleça entre palco e platéia nenhuma espécie de magia, de campo hipnótico:

Distanciar é cortar o circuito entre o ator e seu próprio pathos, mas é também e essencialmente restabelecer um novo circuito entre o papel e o argumento; é, para o ator, significar a peça, e não mais a si mesmo na peça. [...] O distanciamento não é uma forma (e é precisamente o que fazem dele todos os que querem desacreditá-lo); é a relação de uma forma com um conteúdo. Para distanciar é necessário um ponto de apoio: o sentido. (BARTHES, 2007, p. 240-241).

Diante do uso do estranhamento, o ator deve, sem renunciar completamente à identificação, antes apresentar do que representar um comportamento a seu público; deve oferecer uma forma acabada dos acontecimentos, dando-lhes o

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caráter de coisa mostrada. Assim o ator pode expor uma opinião sobre os acontecimentos relacionados ao personagem e convidar o espectador a também desenvolver um olhar crítico.

As três lições reunidas por Barthes (2007) encontram, a meu ver, um campo aberto para o exame na teoria e na prática das peças didáticas. Acredito que através da experimentação com os textos das peças didáticas é possível encontrar elementos para a discussão intelectual sobre o lugar do teatro na contemporaneidade, permitindo também refletir, dialeticamente, sobre a pertinência dessa dramaturgia. A característica fundamental de serem textos abertos para o jogo apresenta a relação forma/conteúdo de maneira bastante instigadora, já que o exercício com as peças didáticas tem revelado que o tratamento dos seus temas recorrentes está previsto na proposta dramatúrgica: esquemática e aberta, operando uma reorganização das técnicas teatrais.

Hans-Thies Lehmann (2009) vê a peça didática como um modo de escritura política, porque está comprometida com o teatro como lugar de revisão de si mesmo. A atualidade dessa tipologia dramatúrgica está inscrita em sua própria forma: árida, simples, popular, irônica e aberta. Perscrutá-la contemporaneamente é uma tarefa que os artistas deveriam encarar como política, pelo compromisso com o teatro.

A temática recorrente a essas peças e de tratamento explicitamente aberto sobre questões como o “estar de acordo” e a “ajuda”, indicam que, nessa tipologia dramatúrgica, a cena, como afirma Lehmann (2007), é origem e ponto de partida de um pensar teatral que faz da forma seu conteúdo. Os textos como modelo de ação operam uma decomposição do diálogo, dando ao gesto um lugar de destaque e uma responsabilidade ainda maior de condensar em si a consciência da representação.

Tomar a peça didática, sua teoria e sua prática, como orientação metodológica para o tratamento do Material Fatzer com o Teatro Máquina é uma forma de alinhar diferentes pontos de partida em uma investigação interessada na descoberta de jogos para a cena. O material de base para a prática nessa pesquisa é um material que se encontra em fragmentos. O Fatzer é um projeto inacabado, mas que reúne em si a força do fragmento como forma literária. Defendo que o projeto pode ser recuperado e experimentado a partir dessa qualidade. Para tanto, planejei uma prática cujas atividades se fundamentam em suportes conceituais do Lehrstück. Essa sobreposição de referências, em procedimentos de fusão e de

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separação, está na base da produção contemporânea em artes. (LEHMANN, 2007; PAVIS, 2010; PICON-VALLIN, 2006; 2008).

1.2 Objetivos e metodologia

O objetivo geral dessa pesquisa concentra-se na descoberta e na criação de jogos para a cena com o Material Fatzer6 como modelo de ação, tomando como grupo de experimentação o Teatro Máquina, da cidade de Fortaleza.

Os objetivos específicos dessa investigação são:

- Explorar o Material Fatzer, através dos instrumentos didáticos do Lehrstück, elegendo para análise e criação de jogos as categorias ancoradas (i) nas estratégias narrativas que expõem o drama em crise, (ii) na tensão experiência/vivência benjaminiana, (iii) no conceito de modelo de ação, (iv) nos conceitos operativos de fábula, gesto e estranhamento, (v) na improvisação e na troca de papéis como principais procedimentos técnicos e (vi) no fragmento como estrutura dramatúrgica e crítica.

- Desenvolver um plano operativo para a prática com o modelo de ação, a partir do Material Fatzer;

- Desenvolver uma prática criativa como espaço de aprendizagem;

- Criar condições para uma experimentação coletiva, com enfoque formativo, em que seus participantes revezem-se na situação de jogadores e observadores;

- Refletir sistematicamente sobre a experiência e o percurso criativo e considerá-los na descoberta de novos procedimentos;

- Estruturar uma dramaturgia a partir das matérias poéticas reunidas e discutidas, na perspectiva de experimentar novas formas de narrar;

- Discutir a peça didática – nas dimensões estética, política e colaborativa – como um campo de possibilidade para a prática contemporânea em teatro.

Para atingir esses objetivos, é preciso que a pesquisa se estruture dentro de um desenho metodológico que reúna teoria e prática em retroalimentação constante, porque o tratamento da dramaturgia indica categorias para a análise teórica e a reflexão conceitual dá indicativos para o trabalho prático.

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6 O material que serve de base para os jogos e para a criação de situações de improviso é o que está

reunido na edição alemã mais recente das obras completas de Bertolt Brecht (1997). As traduções de Koudela (BRECHT, 1995b), Röhrig (BRECHT, 2002b) e Mantovani (2011) também são utilizadas.

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Entendo que o percurso metodológico deva contemplar a complexidade das relações entre os diversos temas e etapas da pesquisa. Tomo, assim, as noções de modelo de ação e de estranhamento como balizadoras da investigação por seus princípios de inacabamento e de desfamiliarização e pelo que elas refletem das novas formas de conhecer, defendendo que a arte cria ela mesma seus próprios métodos de pesquisa (SALLES, 1998). A presente pesquisa constrói a partir dessas noções balizadoras uma metodologia própria, compreendendo que os métodos são gerados a partir dos objetivos de abordagem dos textos escolhidos. Dessa forma, oriento-me pelas seguintes etapas:

1. Revisão de literatura (teoria do teatro épico, teoria da peça didática, teoria do drama, pedagogia do teatro, teatro pós-dramático, conceitos benjaminianos de experiência, choque e crítica);

2. Exame de dramaturgia (leitura das peças didáticas como dispositivos para a experimentação e investigação dos modelos de ação no Material Fatzer; seleção de situações);

3. Criação de plano operativo para as atividades práticas (jogos para a cena, exercícios, proposições para atividades de leitura e criação);

4. Acompanhamento e desenvolvimento dos processos criativos; 5. Registro e relato descritivo dos encontros práticos;

6. Produção de material poético como síntese crítico-criativa das etapas da pesquisa.

A proposta metodológica de tratamento da dramaturgia como modelo de ação tem enfoque pedagógico, naturalmente, pelo caráter de aprendizagem que o jogo entre os participantes promove, sem a necessidade de apresentação pública. O espaço do jogo é o espaço de representação. Defendo, contudo, que essa prática, pela sua qualidade processual e de descoberta criativa, deva promover prioritariamente uma experiência estética entre os participantes, a ser examinada tanto na perspectiva do jogo, como da cena.

O jogo com o texto e com os elementos épico-narrativos, como a repetição; a fragmentação; a representação como um ato de mostrar, já experimentados com o Teatro Máquina em outros processos criativos, apontam recursos metodológicos para criação de jogos para a cena, a partir dos experimentos com a peça didática, como a collage, a ambiguidade ator/figura, a construção corporal através da observação e da análise dos próprios gestos.

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A necessidade de abordar o Material Fatzer sob a perspectiva da criação com esses textos, tratando-os metodologicamente a partir do conceito de modelo ação, é uma espécie de formulação-síntese do meu trabalho como encenadora inserida no funcionamento de um teatro de grupo e também como pesquisadora do teatro de Brecht. Com meu grupo sinto-me livre para fazer as escolhas e aplicações necessárias da teoria da peça didática às demais partes que interessarem do Material Fatzer e não apenas à que Brecht publicou como peça didática. Assim acredito poder ampliar as perspectivas de jogo e criação. O trabalho com o grupo de atores depende do entendimento ampliado do projeto teórico-prático da peça didática, para que as proposições com o texto possam gerar um trabalho produtivo e refletido.

1.3 Teatro Máquina

O grupo de teatro do qual faço parte desde 2003 – o Teatro Máquina – atualmente é composto por sete artistas. Há seis atores: Aline Silva, Ana Luiza Rios, Edivaldo Batista, Levy Mota, Loreta Dialla e Márcio Medeiros; e eu como encenadora. O grupo faz parte da geração que se engaja na defesa do teatro de grupo, através do desenvolvimento de um trabalho continuado, da afirmação de uma criação compartilhada e da luta pela manutenção de um espaço de ensaios, pesquisa e arquivo que ofereça condições de trabalho e sustento aos seus integrantes.

O grupo se insere dentro da história do teatro feito em Fortaleza como um dos novos grupos cearenses. Rogério Mesquita (2012), integrante do Grupo Bagaceira de Teatro, também de Fortaleza, escreveu um texto introdutório sobre o teatro cearense que compõe a publicação Cartografia do teatro de grupo do Nordeste (YAMAMOTO, 2012), no qual o Teatro Máquina é um dos grupos entrevistados. Nesse texto Mesquita trata do teatro de grupo no Ceará e apresenta o contexto de surgimento dos grupos mais recentes:

Nesse novo milênio, os grupos surgidos a partir de 2000, são frutos diretos ou indiretos da prática de produção instalada pelo Colégio de Direção ou surgem dos novos cursos de graduação em teatro do IFCE, URCA e UFC. Os festivais de esquetes da cidade são a vitrine viva dessa nova produção e primeiro palco de vários grupos. No início da década de 2000 surgiram o Palmas Produções, Grupo Bagaceira, Teatro Máquina, Pavilhão da

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Magnólia, Grupo Parque de Teatro, Grupo 3x4, Cia Vão, Teatro de Caretas, Grupo Mimo, Grupo Imagens, Coletivo Cambada, Grupo Ninho, entre outros. Esses grupos todos com novos autores, diretores e atores recolocaram o Ceará no mapa do pensamento da produção teatral do Brasil, aproveitando o investimento feito na produção nordestina através de editais nacionais que serviram como modelo para editais estaduais e municipais. (MESQUITA, 2012, p.27).

Já o estudo de Dourado (2011) qualifica os grupos de teatro nordestinos através das suas atividades estéticas e políticas, traçando um panorama sobre o teatro de grupo feito no Nordeste. O autor elogia a diversidade dos modos de fazer teatral da região. O Teatro Máquina é um grupo que, segundo Dourado (2011, p.33) se destaca, assim como os grupos Dimenti (BA), Coletivo Angu (PE), Magiluth (PE) e Piollin (PB), por realizar “[...] um teatro que investiga as configurações do urbano no contexto nordestino, interagindo com várias linguagens e referências culturais.”

O teatro que o grupo pratica se afirma através de práticas colaborativas7. Os atores e eu desempenhamos múltiplas funções nas rotinas criativa e organizacional do grupo. Os processos criativos que podem ou não gerar novos espetáculos são, em sua maioria, proposições minhas que são desenvolvidas através de procedimentos variados de improvisação com os atores. As proposições podem ser textos ou idéias. O importante é como o grupo se apropria dessas proposições e experimenta em conjunto. Os processos criativos do grupo acontecem em diferentes fases, onde me envolvo ora como dramaturgista, ora como encenadora, ora como observadora. Meu trabalho tem sido o de convocar a criação compartilhada e também de participar dela através das minhas colaborações para o texto e para a cena. Os atores têm produzido os projetos e espetáculos, planejado ações de circulação e formação, promovido atividades abertas no espaço do grupo, gerido as atividades administrativas e têm, cada vez mais, pensado e desenvolvido estratégias para manter o grupo como lugar de pesquisa e produção.

A prática do grupo se pauta na investigação da linguagem teatral, realizando trabalhos que têm nas dimensões da pesquisa e do processo colaborativo sua principal base. A linguagem narrativa, os aspectos épicos e diferentes modelos de !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

7 O teatro de grupo no Brasil tem se caracterizado, especialmente nas últimas duas décadas, por

práticas colaborativas de criação. Cada grupo desenvolve sua forma de trabalho. As funções criativas, pedagógicas e administrativas são divididas entre seus integrantes, mas é preservada a figura de alguém (um ou mais artistas do grupo) que realiza uma síntese do material improvisado e reunido durante a criação e estrutura o processo colaborativo. A prática colaborativa se difere das práticas de criação coletiva. Sobre o tema vem sendo produzida uma vasta literatura por críticos, pelos grupos de teatro e por grupos de pesquisa ligados às universidades: Abreu (2011), Carreira (2007; 2011), Piccon-Vallin (2011) e Trotta (2008).

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composição gestual e vocal são desenvolvidos a cada novo trabalho. Cada trabalho novo deve se apresentar com um campo inseguro, desafiador. Dessa forma o grupo alinha seu trabalho de criação a um trabalho de formação. Além dos espetáculos, faz parte da pesquisa do grupo a realização de debates, desmontagens, demonstrações técnicas e a oferta de cursos e oficinas.

A atividade do grupo como coletivo de pesquisa e produção em teatro já trabalhou a revisão de duas peças da dramaturgia didática brechtiana: A decisão (BRECHT, 1988a) e A exceção e a regra (BRECHT, 1990a). Com a primeira o grupo realizou um experimento entre seus integrantes, interessado em discutir a formação do ator através dos temas abordados nessa tipologia dramatúrgica. O segundo texto resultou em 2008 no espetáculo O Cantil, cuja encenação elegeu elementos de representação com suporte principal na plasticidade gestual e cenográfica, além de criar campos sonoros e desenhar uma gestualidade baseada no jogo, na manipulação direta e aparente e na repetição.

O grupo realiza continuamente experimentos em torno de textos diversos, que vão de Nelson Rodrigues a Harold Pinter, passando por Büchner, Tchekhov e Heiner Müller. Desde 2003, o grupo acumula a produção de sete espetáculos, cinco deles em repertório, e a participação em inúmeros festivais nacionais e internacionais. O grupo tem realizado também experimentos em vídeo e dança-teatro (PRIMO; ROCHA, 2011). A pesquisa do grupo é aberta a um campo bastante diversificado de interesses, mas busca se orientar através deles por princípios formais de composição, que encontram especialmente na exploração do gesto (em sua construção, definição e decupagem) e na noção expandida de narração (como contraponto aos elementos dramáticos) os principais focos de investigação.

O Teatro Máquina tem realizado seus trabalhos com diversos colaboradores, que se tornaram parceiros dos projetos. Ayrton Pessoa e Consiglia Latorre na preparação musical, Andréia Pires na preparação corporal, Frederico Teixeira na comunicação visual e cenografia e Diogo Costa com os figurinos. Para cada trabalho, há outros colaboradores ocasionais para o desenho de luz, as trilhas sonoras e algum treinamento específico. O grupo se interessa também por intercâmbio criativo com outros grupos, o que já aconteceu em residências artísticas com os grupos cearenses Teatro de Caretas, Oficarte, Artejucá e os paraibanos Alfenim e Piollin.

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Pelo tempo que o grupo está junto e pela trajetória que tem construído, acredito que os experimentos práticos em torno da peça didática como modelo de ação podem encontrar no grupo um campo propício para a investigação, a descoberta e a criação, também porque já há uma familiaridade de seus integrantes com essa tipologia dramatúrgica e porque já foram realizados diversos outros exercícios exploratórios, como as leituras de O vôo sobre o oceano (BRECHT, 1988d) e A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo (BRECHT, 1988b). Entendo que essa pesquisa é também uma reflexão sobre a prática do grupo. Com o Teatro Máquina tenho construído um espaço para invenção que me permite transitar livremente entre processos mais formais de criação e descobertas experimentais.

1.4 Material Fatzer

A história de Fatzer se passa durante a I Guerra Mundial. Quatro soldados alemães desapareceram em 1918 em Mülheim, no rio Ruhr. Fatzer se afirma como líder desse grupo e os quatro tentam sobreviver na clandestinidade. Esperam por uma revolução que não ocorre, o que faz deles desertores. Esta situação mantém-se como foco para o exame das ações de Fatzer, o egoísta, que põe em risco o grupo quando resolve tomar decisões sozinho, até que finalmente seus camaradas decidem executá-lo.

Brecht desenvolve a fábula em diferentes fases de trabalho com esse material. O Fatzer, segundo Andrzej Wirth (1999), é a reunião de dois projetos incompletos: uma versão para peça de espetáculo, de 1927, e uma versão para peça didática, de 1929. Todo o material é denominado de Documento Fatzer (Fatzerdokument), contém cinco fases de trabalho e uma outra subdivisão chamada de Comentário Fatzer (Fatzercommentar). O Fatzer foi publicado na íntegra pela primeira vez pela Editora Suhrkamp, no volume 10 da Grande Edição Comentada das Obras Completas, em 1997. Nesta edição, os fragmentos aparecem reunidos sob o título Fatzer, apenas. Material Fatzer, como trato aqui nesta pesquisa, é uma citação de uma terminologia de gosto mülleriano, na tentativa de sintetizar as partes do documento e do comentário no complexo que reúne os fragmentos. Uso o termo material porque ele indica também uma posição diante do texto, assumindo-o literalmente como lócus de manejo, corte, montagem, supressão, adaptação.

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No período do tratamento do material que compõe o Documento Fatzer, entre 1926 e 1930, Brecht escreveu a maioria de suas peças didáticas e outros textos como a Ópera dos Três Vinténs8, como já tratei no início desse texto. Segundo a edição alemã, Brecht (1997) organiza os fragmentos do projeto, os nomeia de Fatzerdokument e os arquiva.

Durante os anos de trabalho com o Fatzer Brecht colabora com Piscator em diversas produções, com textos de Jaroslav Hasek e de Leo Lania. Isso se dá especialmente entre 1927 e 1928, justamente o período mais produtivo de desenvolvimento do Fatzer9. Piscator, inclusive, interessa-se em encenar Fatzer em 1927. Mas apesar da experiência extremamente produtiva da colaboração com Piscator, Brecht posiciona-se criticamente ao tratamento que ele dá aos fatos históricos e considera ainda bastante burguesas as formas de drama documentário, que abordam os temas sociais fazendo arranjos naturalistas, ou seja, que ainda se pautam por formas antigas no tratamento dos novos temas. Esse período é importante para a formulação imediatamente posterior de um modelo poético alternativo, especialmente para a teoria e a prática dos Lehrstücke. “Em contraste com o teatro de Piscator e seu uso de eventos históricos [...] Brecht desenvolveu a sua idéia do documento como um artefato que seria ‘autêntico’ só por provocar interpretações contraditórias.” (WILKE, 1999, p.123, tradução nossa10). Para Ingrid Koudela (1991), Piscator compreendia que a totalidade dos meios teatrais teriam a função de interromper a ação, como comentário, enquanto Brecht trabalha o comentário em textos específicos.

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8 Ingrid Koudela (2001, p.96): “A ocupação com o Fatzer coincide com um momento na vida de

Brecht em que ele se ocupava principalmente em experimentar as diferentes possibilidades do teatro épico. Nesta fase, que consta como uma das mais ricas em matéria de experimentação surgiu o Songspiel Mahagonny (1927), os fragmentos Joe Fleishhacker (1927-1929), A Padaria (1930), as peças didáticas Vôo sobre o oceano/O Acordo (1929), Aquele que Diz Sim/Aquele que

Diz Não (1929-1930), o sucesso da Opera de Três Vinténs (1928), bem como Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny (1930) e Santa Joana dos Matadouros (1929-1930), que não foi

encenada à época.”

9 Segundo a cronologia do material, disposta na pesquisa de Pedro Mantovani (2011), a terceira fase

de trabalho do Fatzer se deu entre o final de 1927 e o começo de 1928, especificamente até maio de 1928. A quarta fase de trabalho e alguns textos iniciais do Comentário Fatzer foram escritos ainda no final de 1928, seguindo até o final de 1929.

10 “In contrast to Piscator's theatre and its use of historic events [...] Brecht developed his idea of the

document as an artifact that would become "authentic" only by provoking conflicting interpretations.” (WILKE, 1999, p. 123).

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Em 1930, Brecht realiza a primeira e única publicação do Fatzer, que intitula Parte 3 da Decadência do egoísta Johann Fatzer, no primeiro volume dos Versuche11. Judith Wilke (1999) esclarece que embora Brecht tivesse publicado partes do Fatzer no primeiro número dos Versuche em 1930, ele não chega a completar a peça, nem indicar o que seriam as partes anteriores ou posteriores. Wilke (1999, p.122) faz uma boa descrição do material:

Fatzer é um fragmento em progresso. Brecht trabalhou com ele entre 1926-1930, cobrindo mais de 500 páginas com inúmeros rascunhos da história, cenas dramáticas, peças de coro, notas teóricas e pedaços de frases pouco decifráveis. Espalhados por diferentes pastas e cadernos de notas, peças deste material também podem pertencer a outro projetos e fragmentos da época (tradução nossa).12

No diário de Brecht, no exílio em 1939, há uma referência a Fatzer e à peça A Padaria como os textos que contém o mais alto padrão técnico, recomendando sua leitura e estudo como etapas prévias ao experimento com outros textos13. Em 1951 Brecht volta ao material, interessado em incluir elementos do Fatzer numa peça sobre Hans Garbe, o operário que fica famoso por consertar um forno em funcionamento. Esse projeto também não é finalizado. Brecht morre em 1956. Fatzer permaneceu inacabado até essa data e sem ter sido representado.

Durante a década de 1970, segundo estudo de Moray MacGowan (2011), Fatzer foi não mencionado nos relatos sobre o teatro de Brecht ou em estudos publicados na Alemanha Oriental. Na década de 1970, na Alemanha Ocidental,

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11 Versuche são cadernos numerados, publicados por Brecht a partir de 1930. Em português Versuche pode ser traduzido por tentativas, experimentos, ensaios. Neles Brecht publicou

materiais e notas de suas peças, poemas, ensaios teóricos e narrativas em prosa. Trato deles mais profundamente ao longo do capitulo 1.

12 “Fatzer is a fragment in progress. Brecht worked on it from 1926 to 1930, covering over 500 pages

with numerous drafts of the story, dramatic scenes, chorus parts, theoretical notes and bits of sentences barely decipherable. Spread out over different folders and notebooks, parts of this material might also belong to other projects and fragments of that time.” (WILKE,1999, p.122).

13 Extrato do Diário de trabalho, de 25.2.1939: “Vida de Galileu é tecnicamente um grande passo

para trás, como a Sra. Carrar é oportunista demais. A peça precisa ser inteiramente reescrita, para captar esse “sopro de vento que/vem de novas praias”, essa rósea aurora da ciência. Tudo mais direto, sem os interiores, a “atmosfera”, a empatia. E tudo baseado em demonstrações planetárias. A estrutura podia ser mantida, a caracterização de Galileu também. Mas o trabalho, que podia ser divertido, só poderia ser feito numa situação prática, em contato com um palco. Primeiro teriam que ser estudados o fragmento de Fatzer e depois o fragmento A venda de pão. Esses dois fragmentos são do mais alto padrão técnico.” (BRECHT, 2002a, p.27). Nessa tradução

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Reiner Steinweg promove o primeiro estudo mais abrangente sobre as peças didáticas, trazendo a público sua importância e atualidade.

Fatzer foi encenado pela primeira vez em 197614, no Schaubühne, em Berlim Ocidental, dirigido por Frank-Patrick Steckel. Müller trabalha os fragmentos para uma encenação do Fatzer no Deutsches Schauspielhaus de Hamburgo, em 1978. Como dramaturgo, dá a sua ordem ao material e faz também inserções autorais com rubricas e títulos, realocação de personagens e textos de outros autores. Matthias Langhoff (que havia saído do Volksbühne com Benno Besson em 197715) encenou Fatzer em Hamburgo, em 1978, utilizando a versão de Müller, que só viria a ser publicada em 1994.

MacGowan (2011) destaca que o lugar de Fatzer no teatro da Alemanha Oriental é inseparável da carreira de Heiner Müller (1929-1995). A importância de Fatzer na obra de Müller é tão grande quanto a importância de Müller para a discussão sobre o Fatzer. Para Müller (2003, p.54), Fatzer é o

[...] maior esboço de Brecht e o único texto no qual ele, como Goethe com o material do Fausto, permitiu-se a liberdade da experimentação, desonerando-se da obrigação de forjar um produto perfeitamente acabado para as elites contemporâneas ou do futuro, de embalá-lo e entregá-lo a um público, a um mercado. Fatzer é um produto incomensurável, escrito como exercício de auto-compreensão. O texto é pré-ideológico, a linguagem não formula resultados do pensamento, mas coloca-o de escanteio. Ele tem a autenticidade do primeiro olhar sobre o desconhecido, o espanto da primeira aparição do novo.

A versão de Müller apresenta uma configuração do material a partir de um embate mais direto entre as figuras de oposição Fatzer e Keuner. Suas referências se misturam ao Fatzer de Brecht e conformam um texto com sequências cronologicamente coerentes e “[...] combinações arbitrárias, nas quais Brecht não poderia ter pensado, um quebra-cabeças.” (MÜLLER, 1997, p.226). O trabalho de Müller com o Fatzer se gesta desde suas experimentações com a tipologia dramatúrgica da peça didática, quando Müller (1987; 2003) escreve, por exemplo, O Horácio em 1968 e Mauser em 1970. Müller (2003) escreve ainda um texto crítico, o !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

14 Storch (2010), que participou da produção como dramaturgista, trata desta primeira montagem do Fatzer no artigo Political climate and experimental staging: The decline of the egoist Johann Fatzer.

15 Segundo McGowan (2011), o episódio da renúncia de Benno Besson, em 1977, ao cargo de

intendente do Volksbühne de Berlim Oriental em parte se relaciona ao impedimento de encenar

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Fatzer ± Keuner, que discute a importância da peça didática como material incendiário.

O trabalho de Macgowan (2011) traz um levantamento de outras montagens do Fatzer depois de 1978, inclusive relatando a experiência da andcompany&Co em parceria com atores brasileiros16. No Brasil, diferentes coletivos (Bando de Teatro Olodum, da Bahia e Coletivo Bruto, de São Paulo) já fizeram suas apropriações do material, dando a ele um tratamento aberto e inventivo.

Em português temos duas traduções publicadas de parte desse material: a que se encontra no Volume 12 da Coleção Teatro Completo de Bertolt Brecht, da Editora Paz e Terra (BRECHT, 1995b), traduzida por Ingrid Dormien Koudela como Decadência do egoísta Johann Fatzer, e a tradução publicada pela Editora Cosac & Naify (BRECHT, 2002b), como O declínio do egoísta Johann Fatzer, a partir de material organizado por Heiner Müller em 1978, com tradução de Christine Röhrig. No ano de 2011, Pedro Mantovani defendeu no Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade de São Paulo a dissertação de mestrado O Complexo Fatzer de Brecht (Tradução, introdução e notas), tomando por base a edição alemã de 1997, oportunizando aos leitores de língua portuguesa o contato com o material completo, na ordem publicada na edição alemã. Os manuscritos do material encontram-se disponíveis para consulta no Arquivo Brecht, agora pertencente à Academia das Artes de Berlim, e também há uma cópia na Biblioteca de Harvard, nos Estados Unidos.

Para essa pesquisa também consultei o material em alemão (BRECHT, 1997). Fiz o cotejamento desse material com as traduções em português, para que eu pudesse escolher quais trechos inéditos seria importante trabalhar para as finalidades de jogo que eu planejava. Esse trabalho contou com o auxílio da Profa. Dra. Ute Hermanns, Leitora do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) em Fortaleza, que se dispôs a enfrentar esse material comigo, em um grupo de tradução.

O trabalho de Brecht com o Fatzer não se configura como um material ordenado convencionalmente, obedece antes a uma ordem de arquivo, na qual !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

16 Alexander Karschnia, co-fundador do coletivo internacional de performance teatral andcompany&Co, escreveu um artigo sobre o trabalho FatzerBraz, que realizou em São Paulo

em 2009. O texto se chama Experimento carne: um pouco sobre a “Estética da fome” de Bertolt

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Brecht organiza por fases de trabalho e diferentes subseções o que ele chama de Documento-Fatzer. A publicação da Suhrkamp traz a divisão em duas seções, organizadas por Reiner Steinweg, seguindo a ordem definida por Brecht: a primeira em cinco fases de trabalho (Arbeitsphase), com suas subsecções A e B; e uma segunda seção, chamada de O Comentário-Fatzer (Der Fatzerkommentar), que contém a subseção C, numerada de C1 até C32.

O trabalho de tradução me mostrou os escritos da primeira seção, a das fases de trabalho, como um verdadeiro material em acabamento que já fornece pistas do seu caráter modelar, pois apresentam versões, desdobramentos, revisões, desenvolvimentos de trechos de coros e de diálogos, além de descrições de personagens e até esquemas para cenas. O Comentário-Fatzer, a segunda seção, exerce uma função específica na leitura e exegese do material reunido nas fases de trabalho. Ao Comentário-Fatzer reservo uma discussão pormenorizada, que faço no início do capítulo 3, a partir, especialmente, do estudo de Wilke (1999).

Das cinco fases de trabalho do Documento-Fatzer, a quinta fase de trabalho é a que reúne os trechos já disponíveis em português desde 1995, com a tradução de Ingrid Koudela. Nessa tradução, Koudela inclui também os coros Visão do pensador sobre o tempo depois dele, A injustiça é humana e Bom isso, mau isso!, que se encontram em diferentes subseções no material em alemão (BRECHT, 1997).

Interessa-me, nessa pesquisa, abordar o Fatzer procurando pelo seu problema. O problema-Fatzer é complexo: aparece metaforizado na espera, no quarto apertado para cinco pessoas, nos passeios pela rua, na quebra dos acordos, na coletivização do corpo da mulher. O que essas metáforas transformam em imagens e em situações naturalizadas é a questão de base que dá corpo ao problema-Fatzer: a violência do próprio coletivo contra ele mesmo, que expõe a perda de sentido das ações revolucionárias. As questões abertas pela oposição de atitudes entre as figuras de um Fatzer associal e a de um Keuner pragmático discutem, afinal, a crise da representação política. Com Fatzer é possível pensar nas razões do fracasso das revoluções populares, no seu silenciamento e também nas suas formas de organização e de resistência.

Fatzer é um texto sobre a experiência da espera, sobre a crise da representação política, sobre o esvaziamento dos ideais revolucionários, sobre o perigo dos modelos. Os quatro soldados à espera da revolução tornam sua formação nuclear isolada um modelo de radicalização e de negação de si mesmos

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em nome de um ideal coletivista. A violência se volta contra eles mesmos, o modelo que imaginam superar é praticado como saída para manutenção do coletivo.

Abordar o Fatzer é também a tentativa de compreender o projeto brechtiano em suas brechas, como incita Koudela (2009), atualizando sua escrita através da análise e experimentação prática do modelo.

1.5 Descrição dos capítulos

Para a divisão dos temas de interesse dessa investigação em capítulos, me oriento por uma seleção dos principais assuntos subjacentes à discussão teórico-prática do Lehrstück, encontrados nos escritos teóricos de Brecht sobre as peças didáticas e readequados aos acréscimos teóricos que a pesquisa me apresentou. A escolha dos temas recebe influência direta das categorias reunidas nas leituras de Roland Barthes (2007), Walter Benjamin (1987, 1994, 2002) e Heiner Müller (1997; 2003). Os capítulos foram estruturados para que se estabelecesse um diálogo produtivo entre teoria e prática, como um caminho de inspiração.

O segundo capítulo desta pesquisa tem um enfoque prioritariamente teórico, discutindo em sua primeira parte a Episierung ou epicizacão, a partir de um entendimento ampliado da presença de traços estilísticos épicos na dramaturgia brechtiana. Staiger (1972), Rosenfeld (1997), Szondi (2001), Bornheim (1992), Wirth (1999), Lehmann (2007; 2009) e Sarrazac (2012) são os principais interlocutores na discussão sobre as tensões entre ação e narração como elementos fundantes da forma épica brechtiana, radicalizada com as propostas formais da peça didática. A segunda parte do primeiro capítulo chama-se Erhfarungstheater: experiência, vivência, choque. Trata especialmente da possibilidade de leitura das peças didáticas como experimentos onde os conceitos benjaminianos de Erhfarung e Erlebnis ganham força na descoberta de novas formas de narrar, através do uso refuncionalizado do teatro como linguagem. Lehmann (2009) e Wirth (1999) articulam as tensões entre teatro e política, postas no Lehrstück quando experimentado como modelo de ação. A terceira parte desse capítulo examina as noções de crítica e a forma dramática do fragmento, recorrendo ao primeiro romantismo alemão e às discussões postas por Schlegel e Novalis, a partir, especialmente, da leitura de Walter Benjamin (1993). Através dessas categorias chego à obra de Heiner Müller e abordo seu teatro e seu trabalho com o fragmento

Referências

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