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4. FATZER: PREPARATIVOS PARA A PRÁTICA

4.2 Abordagem do material Sobre a prática

A experimentação prática se estruturou a partir da construção do plano operativo. Esse plano organiza as atividades em cada etapa, articulando os conceitos operativos que norteiam essa pesquisa aos jogos e atividades extraídas do Material Fatzer. Para a criação de um plano operativo geral segui uma série de indicações de trabalho com as peças didáticas, entre elas: o jogo com o texto como modelo de ação (Handlungsmuster); e o trabalho com o conceito de estranhamento através da introdução de trechos de invenção própria, do comentário, da crítica, da improvisação, da imitação de gestos e atitudes. A partir dessas indicações – algumas operantes como princípios de trabalho, outras como procedimentos – criei planos operativos específicos para cada etapa, que contemplam, em seu planejamento, as atividades previstas.

Um plano operativo com as peças didáticas como matéria poética espera poder contemplar, concomitantemente: a) a dimensão pedagógica, na qual o jogo teatral exerce papel formador e b) a dimensão política, na qual os atores, por serem ao mesmo tempo atuantes e espectadores, são convocados a tomar partido, a expressarem-se através de suas questões cotidianas em articulação com o texto como modelo de ação. A dimensão estética é a mais importante no trabalho com as peças didáticas. É ela que dá suporte às dimensões pedagógica e política.

O trabalho com as peças didáticas é familiar aos atores do Teatro Máquina, porque o grupo já trabalha com essa tipologia dramática na criação de alguns espetáculos, mas, especialmente, por oferecer desde 2006 cursos e oficinas para jovens artistas, onde experimenta mais diretamente jogos de improviso com textos, seguindo o conceito de modelo de ação. Uma prática colaborativa, como a que está sendo produzida a partir do Fatzer, conhece e considera também as contribuições dos Performance Studies e sua metodologia das fases de criação, principalmente a desenvolvida por Richard Schechner (2003), além do trabalho de Pina Bausch (FERNANDES, 2007), especialmente os exercícios que provocam e desafiam a autoria, como o depoimento pessoal. Alguns dos exercícios e jogos se cruzam com essas práticas contemporâneas, o que afirma a proposta avançada da prática com o texto como modelo de ação e aponta sua atualidade nos seus desdobramentos artísticos e pedagógicos.

- Sobre a seleção dos textos

Para escolher os fragmentos da etapa prática da pesquisa, fiz o cotejamento do material reunido na última edição das obras completas de Brecht, em alemão, com o que havia sido publicado em português. Antes de selecionar os fragmentos para o trabalho prático, me detive em encontrar no material publicado em alemão os trechos traduzidos para o português, a fim de refazer uma cronologia de criação e poder compreender melhor as variações de cenas, os desenvolvimentos dos diálogos e as personagens, porque elas mudam de nome e são acrescidas de características ao longo das fases de trabalho.

Brecht (1997) organizou o Fatzer em um arquivo e o nomeou de Documento- Fatzer (Fatzerdokument). Esse arquivo, seguindo a orientação da publicação em 1997, contém cinco fases de trabalho (Arbeitsphase) e o Comentário-Fatzer (Fatzerkommentar). Desse material fiz um tratamento comparativo com a adaptação de Heiner Müller (BRECHT, 2002) e escolhi diferentes formas de texto para as diferentes etapas de trabalho com o grupo Teatro Máquina.

Para a primeira e a segunda etapas de trabalho, selecionei situações em diálogo que classifico como situações de apresentação do problema-Fatzer. Através dessas situações acredito poder introduzir os atores ao núcleo de personagens e à condição fabular. Indico a seguir os trechos selecionados, informando a localização no texto original. Criei um título próprio para cada seleção feita, o que também nomeia o jogo de cada encontro:

- As beterrabas, trecho do fragmento B15, da segunda fase de trabalho (BRECHT, 1997, p. 416-418);

- O almoço, trecho do fragmento B85, da quinta fase de trabalho (BRECHT, 1997, p. 508-509);

- O quarto de Kaumann, trecho do fragmento B15, da segunda fase de trabalho (BRECHT, 1997, p.407-409);

- O espancamento, trecho do fragmento B85, da quinta fase de trabalho (BRECHT, 1997, p.509-511 e outros dois trechos associados ao espancamento: Fragmento B15, da segunda fase de trabalho (BRECHT, 1997, p.422), Fragmento B22, da terceira fase de trabalho (BRECHT, 1997, p. 440-441);

- Carne ou luta?, trecho do fragmento B24, da terceira fase de trabalho (BRECHT, 1997, p.441-444) e outros trechos em relação: fragmento B26,

da terceira fase de trabalho (BRECHT, 1997, p. 445) e o fragmento B77, da quarta fase de trabalho (BRECHT, 1997, p.495);

- As colheres, trecho do fragmento B15, da segunda fase de trabalho (BRECHT, 1997, p.418-419);

- As carteiras, trecho do fragmento B15, da segunda fase de trabalho (BRECHT, 1997, p.419-421);

- A carta, fragmento B14, da segunda fase de trabalho (BRECHT, 1997, p. 401-403);

- A corda, fragmento B27, da segunda fase de trabalho (BRECHT, 1997, p. 401-403).

Para a terceira etapa de trabalho previ a exploração de outras formas de texto, como alguns coros, fábulas e comentários:

- Fragmento B59, da quarta fase de trabalho (BRECHT, 1997, p.477-478); - Fragmento A31, da quarta fase de trabalho (BRECHT, 1997, p.468-469); - Fragmento C21, Visão do Pensador sobre o tempo depois dele, do

Comentário-Fatzer (BRECHT, 1997, p.523);

- Fragmento B11, Coro Fatzer 7, da segunda fase de trabalho (BRECHT, 1997, p.399);

- Fragmento A9, Centro de medo da peça, da terceira fase de trabalho (BRECHT, 1997, p.428);

- Fragmento B18, Sobre Fatzer, da terceira fase de trabalho (BRECHT, 1997, p.438-439).

Para a quarta e última etapa da prática selecionei fragmentos em torno do centro de medo da peça (Furchtzentrum des Stücks), para explorar a qualidade modelar de um texto que mescla, no próprio fragmento, trechos de diálogo, coro e fábula.

- Fragmento A9, Centro de medo da peça, da terceira fase de trabalho (BRECHT, 1997, p. 426-428);

- Fragmento B34, que contém o coro sobre o coito, da terceira fase de trabalho (BRECHT, 1997, p. 456);

- Fragmentos A20, A21 e A22, da terceira fase de trabalho (BRECHT, 1997, p. 435-437).

Os trechos para a etapa prática dessa pesquisa foram escolhidos obedecendo ao planejamento das etapas de trabalho pré-definidas. Ao longo da

prática, o interesse por determinados assuntos modificaram em alguma medida o plano original, com novos acréscimos de texto ou desdobramento das atividades programadas em mais dias. Os exercícios com o texto partem dele e deixam-se atravessar por suas questões. A idéia não é dar uma ordem ao material, mas observar, na sua ordem de arquivo, o que interessa aprofundar, o que é possível aprofundar.

O texto é considerado material para o jogo, para a improvisação, recebendo o tratamento de modelo de ação. Tratar o texto (o texto poético da peça didática), considerando o conceito de modelo de ação, é fazê-lo operar, é acionar o texto através de sua experimentação. A primeira operação que realizo é a de extrair situações para o jogo, a partir do texto. Steinweg (1992,p.59) indica que

[...] para não permanecer no simples desempenho de papéis ou treinamento de comportamentos é importante orientar o jogo diretamente a partir da estrutura do texto. Só assim será possível incorporar no jogo a complexidade social para a qual o modelo do texto aponta de forma abstrata.

Nos escritos teóricos sobre as peças didáticas, Brecht diz, em certo momento, que é preciso dominar intelectualmente toda a peça, mas evitar, contudo, saber tudo antes de atuar: “[...] o domínio intelectual de toda a peça é imprescindível. Mas não é recomendável encerrar todo o ensinamento sobre a peça antes da atuação em si.” (BRECHT, 1967b, p.1024 apud KOUDELA, 1991, p.17).

Tomei esse alerta como estratégia de trabalho: meu plano foi apresentar aos atores os fragmentos como fragmentos em si, recortados e apartados, sem a noção prévia do todo. Dessa forma eu poderia ir apresentando a eles as questões que acredito como centrais ao problema-Fatzer, enquanto experimento diretamente o texto. O fragmento é tratado em sua forma sintética e em sua potência crítico- reflexiva.

A leitura do material em alemão sugere a montagem de um quebra-cabeça numa certa dimensão arqueológica, já que o que me resta é, diante de um arquivo fragmentário, encarar as partes como esfaceladas por princípio, o que pode gerar, na reunião dessas partes, uma entre tantas outras formas de ordem.

- Sobre a divisão dos encontros

A fase prática da pesquisa aconteceu entre fevereiro e novembro de 2012. Defini com o grupo os melhores períodos para a realização dos encontros, conciliando a agenda do grupo, entre estréias, temporadas, viagens e demais compromissos.

Foram realizados treze encontros de quatro horas cada, concentrados nos meses de fevereiro, março e novembro. Entre os meses iniciais e finais dos encontros foram feitas algumas leituras teóricas, o grupo discutiu sobre questões tangenciais à pesquisa e ofereceu oficinas, nas quais alguns dos assuntos que estão mais diretamente ligados ao Fatzer puderam também ser explorados. A dinâmica de um grupo de teatro é complexa. Esforcei-me em escolher com o grupo os momentos mais adequados à realização da prática, a fim de evitar interrupções durante as etapas de trabalho.

O planejamento das etapas de trabalhou seguiu a indicação de encarar os textos como modelo de ação. Nas duas primeiras etapas os textos foram experimentados em jogos de aproximação e apropriação. Na terceira etapa, o material textual deveria ser manejado para produzir jogos de leitura sugeridos pelo tipo de registro escolhido. Nessa etapa iniciei uma divisão das proposições de jogo, para que os atores pudessem experimentar também o planejamento dos jogos. Na última etapa, a idéia foi a de experimentarmos uma dramaturgia do grupo, tendo por base o Fatzer e a série de materiais reunidos, produzidos e discutidos ao longo dos encontros. As especificações de cada etapa e seus respectivos planos operativos são apresentadas antes da descrição de cada uma, no capítulo no qual relato o dia- a-dia da prática.

Os encontros foram assim divididos:

- Etapa de trabalho 1, com realização de cinco encontros:

Dia 01: encontro de apresentação do projeto de pesquisa. Optei pela apresentação formal da pesquisa, em caráter expositivo, por entender esse momento também como ponto zero da prática, onde se dava início a um novo processo criativo;

Dia 02: exploração do tema “desconfiança”, tomando como modelo de ação o trecho As beterrabas;

Dia 03: exploração do tema “acordo”, tomando como modelo de ação o trecho Segundo desvio de Fatzer;

Dia 04: exploração do tema “invasão”, tomando como modelo de ação o trecho O quarto de Kaumann;

Dia 05: exploração do tema “espera”, tomando como modelo de ação o trecho O espancamento. Leitura dramática de trechos associados ao do modelo de ação explorado.

- Etapa de trabalho 2, com realização de dois encontros:

Dia 01: jogos de improviso com dois trechos associados (As colheres e As carteiras), em tratamento de modelo de ação;

Dia 02: jogos de improviso com dois trechos associados (A carta e Diga que você está de acordo), em tratamento de modelo de ação.

- Etapa de trabalho 3, com realização de quatro encontros:

Dia 01: criação de jogos de leitura a partir de fragmentos (coros e fábulas); Dia 02: criação de jogos de leitura a partir de fragmentos (coros e fábulas); Dia 03: produção de texto;

Dia 04: criação de jogos de leitura, com fusão dos textos produzidos e de um dos fragmentos trabalhados nessa etapa.

- Etapa de trabalho 4, com dois encontros:

Dia 01: produção de texto, a partir do modelo de ação centro de medo da peça e seus fragmentos associados;

Dia 02: produção de texto e apresentação de jogo com troca de papéis.

- Sobre as atividades

As atividades foram planejadas de uma forma em que pudessem ser mesclados, a cada encontro, exercícios de leitura, jogos, improvisações, produção de texto, discussões. Cada etapa de trabalho, pelo seu plano operativo próprio, solicita no seu planejamento determinadas atividades. O rol de atividades segue aqui descrito, considerando as afinidades formais:

- Relato pessoal;

- Improvisação (da situação, com ações pré-definidas, com ações dirigidas, com troca de papéis, com inserção de trechos de relatos pessoais dentro dos papéis);

- Leitura do texto;

- Leitura dramática, com troca de papéis com papéis demarcados; - Produção de texto;

- Discussão.

As atividades foram distribuídas em quatro etapas de trabalho, considerando o plano operativo de cada etapa. Estruturei previamente o plano operativo de cada etapa57. Os planos operativos chegaram à configuração abaixo, considerando os objetivos de casa etapa:

- Etapa de trabalho 1:

1. Relato pessoal sobre tema afim; 2. Jogo das pedras;

3. Jogos com regras

3.1 Improvisação livre com a situação; 3.2 Improvisação com ações dirigidas; 3.3 Discussão;

4. Leitura do texto

4.1 Produção da fábula;

4.2 Jogos de improviso com o texto; 4.3 Troca de papéis;

4.4 Discussão;

5. Leitura dos protocolos.

- Etapa de trabalho 2:

1. Primeira sub-etapa - jogos de improviso, com troca de papéis 1.1 Discussão sobre a primeira sub-etapa;

1.2 Leitura do texto;

2. Relato pessoal sobre tema afim;

3. Segunda sub-etapa - jogos de improviso, com trocas de papéis 3.1 Discussão sobre a segunda sub-etapa;

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57 O plano operativo das etapas de trabalho (1-4) encontra-se nos anexos, com todas as atividades

3.2 Leitura do texto; 4. Leitura dos protocolos.

- Etapa de trabalho 3:

1. Divisão das tarefas propositivas;

2. Apresentação de novas formas de texto;

3. Desenvolvimento e apresentação de jogos de leitura; 4. Produção textual;

5. Discussão, avaliação e encaminhamentos para o dia seguinte.

- Etapa de trabalho 4: 1. Produção textual;

2. Desenvolvimento de jogos de improviso; 3. Apresentação dos textos;

4. Improvisação;

5. Discussão e avaliação.

Diante desses planos operativos, distribuí as atividades por dia, respeitando o planejamento feito. Distribuir as atividades a partir dos planos operativos de cada etapa me garante uma noção geral sobre o todo da prática e me assegura a divisão equilibrada das diversas sub-etapas previstas a cada dia.