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4. FATZER: PREPARATIVOS PARA A PRÁTICA

4.1 Exploração do material

- O assunto em Fatzer

O período que Brecht se dedica à escritura do Fatzer, entre 1926 e 1930, é um período fortemente marcado pela expansão do capitalismo industrial e de suas crises cíclicas. Moray McGowan (2011), no estudo que faz da recepção de Fatzer na Alemanha Oriental, contextualiza a produção brechtiana no período de produção do Fatzer, quando Brecht testemunha os efeitos brutais da I Guerra Mundial, da Revolução Russa e dos movimentos populares alemães rapidamente silenciados. Segundo McGowan (2011), Brecht observa nos indivíduos e coletivos um grande potencial anárquico, diante de um sistema parlamentar oscilante.

É nesse contexto que começam a ser escritos os fragmentos que dão corpo inacabado ao Fatzer, no qual Brecht experimenta tipos muito diferentes de registros e de estilos:

[...] a meia década de suas composições coincidem, no final dos anos 20, com a mudança em Brecht de um materialismo iconoclasta, antiidealista, mas politicamente inespecífico, para uma posição formada pelo marxismo,

parcialmente envolvida, mas nunca submetida aos dogmas do partido. (MCGOWAN, 2011, p.203, tradução nossa)40.

As mudanças pelas quais passam a escritura do projeto testemunham, em alguma medida, também as mudanças pelas quais Brecht passava, revelando na própria escrita o embate prolongado com questões de um contexto histórico em profunda transformação.

A história de Fatzer se passa na área industrial do Ruhrgebiet, o vale do rio Ruhr, hoje a região mais populosa da Alemanha, justo pela concentração de indústrias. É possível supor que a escolha pela região proletária de Mülheim (no Ruhr) se inspira, como Pedro Mantovani (2011) informa em uma das notas de sua pesquisa, na insurreição de um movimento popular na primavera de 1923, envolvendo desempregados que resolvem designar um conselho operário.!

O contexto caótico de desemprego e a recessão econômica da Alemanha depois da I Guerra Mundial promovem a Revolução Alemã, brutalmente silenciada com o assassinato de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo. A criação da República de Weimar é o saldo precipitado das diversas tentativas revolucionárias da década de 1920. A rápida experiência republicana é frustrada pela sua própria constituição e a vulnerabilidade auto-imposta no artigo 4841. A criação de Fatzer nesse período é sintoma e paródia dos problemas de um cenário aberto à transformação sócio- político-econômica, que – sem realizar a síntese dialética de seus movimentos revolucionários – encontra nas promessas nazistas a resposta promissora de um novo país. Brecht prenuncia com o Fatzer a ascensão do nazismo, mesmo quando ainda se afirmava a força da revolução alemã. !

A região do Ruhr, depois das determinações do Tratado de Versalhes, foi tomada por tropas belgas e francesas entre 1923 e 1925. O Fatzer ali construído !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

40 “[...] the half-decade of their composition coincides with Brecht’s development in te latter 1920s from

an iconoclastic, anti-idealist, but politically unspecific materialism to a position informed by Marxism, partially embracing but never subsumed by party dogma.” (MCGOWAN, 2011, p.203).

41 O artigo 48 da Constituição da República de Weimar continha o seguinte texto: “Se, no Reich

alemão, a segurança e a ordem pública estiverem seriamente conturbadas ou ameaçadas, o presidente do Reich pode tomar as medidas necessárias para o restabelecimento da segurança e da ordem pública, eventualmente com a ajuda das forças armadas. Para esse fim, ele pode suspender total ou parcialmente os direitos fundamentais estabelecidos nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124 e 153.” (AGAMBEN, 2004, p.28). Walter Benjamim (1994) discute, nas teses sobre o conceito de história, o risco do estado de exceção estar institucionalizado em um documento como a constituição, que estabelece o estado de direito. Mais sobre esse assunto em: AGAMBEN, G.

Estado de Exceção, 2004 e BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política, 1994.

afirma o desejo de Brecht de tratar das tentativas de revolução proletária durante a expansão alemã no seu coração industrial.!

O retorno de Brecht à Alemanha no final de 1940, depois do exílio nos Estados Unidos, traz com ele o desejo de realizar uma espécie de desmantelamento ideológico, o que poderia fazê-lo retomar o Fatzer, pelo confronto exposto entre liberdade e disciplina. Esse desejo encontra o contexto de resistência de uma Alemanha Oriental em franca necessidade de fortalecimento ideológico, justamente para manter a autonomia diante da reconstrução da Alemanha Ocidental. A República Democrática Alemã (RDA) se afirmava a partir de um conjunto de ideais sobre os quais se construiria uma sociedade e se reconstruiria uma economia, o que adiaria o retorno de Brecht ao Fatzer42. McGowan (2011), inclusive, metaforiza a escrita de Brecht depois do retorno à Alemanha como um recuo estético, pela necessidade de adequar sua prática dramatúrgica aos princípios formais da RDA. Brecht ainda tenta um retorno ao material entre 1953 e 1956, através do caso Garbe43, mas novamente não consegue desenvolvê-lo.

Walter Benjamin (1986) discute o objetivo de Brecht de pôr em discussão a potência revolucionária da figura auto-centrada, associal e baseada em ações descompromissadas. A aridez das decisões de Fatzer expõem-no em sua anatomia política: é preciso fazer da sua ação uma ação modelo para – em poucas palavras – poder aprender com o erro. Durante o exílio, Brecht chega a abandonar a idéia de desenvolver o caráter associal como caráter modelar por sua potência de transformação, mas volta a dedicar-se ao assunto no seu retorno à Alemanha. O que importa aqui é entender as questões que atravessam o Fatzer e como tratá-las hoje.

De que questões, portanto, trata Fatzer? Como Brecht dá forma à essas questões? Brecht é um autor que se empenha muito fortemente em encontrar no !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

42 Pedro Mantovani (2011, p.17) esclarece: “Neste entrave histórico, que Brecht via em aberto, pois

percebia nele mesmo uma potência coletiva que poderia superá-lo, reconhece uma similitude com o entrave histórico que reconhecera durante o trabalho com Fatzer e daí retoma o conjunto de fragmentos como modelo operatório. O trabalho é rebatizado de Büsching/Garbe, e mais uma vez Brecht não consegue traduzir o entrave em peça didática, nem em peça épica.”

43 Brecht esboça um texto chamado Büsching/Garbe e Müller escreve a peça O achatador de salários

tendo como mote o caso Garbe. “A fábula de O Achatador de Salários baseia-se em fato real, publicado no jornal Neues Deutschland em 24 de janeiro de 1950 sob o titulo ‘Pedreiro Hans Garbe Tinha Razão’. O pedreiro Garbe conserta um forno circular sem parar o seu funcionamento, isto é, a uma temperatura de 100°C, economizando para a fábrica Siemens-Plania, em Berlim-Lichtenberg, cerca de meio milhão de marcos. Garbe recebe o título de ‘Herói do Trabalho’ em 13 de outubro de 1950. (RÖHL, 1997, p.98).

seu teatro novas formas para novos temas. Fatzer, como material inacabado, apresenta questões estruturadas e desenvolvidas de forma complexa. A leitura interessada em investigar essas questões precisa estar aberta para compreendê-las, enquanto as relaciona também com a forma encontrada por Brecht para desenvolvê- las.

Proponho-me aqui a aprofundar algumas questões que estão expostas no material, sabendo que não pretendo esgotá-las. Reuni os eixos temáticos que considero principais para o desenvolvimento de jogos e exercícios na prática dessa pesquisa e sobre eles teço algumas considerações, desenvolvendo suas questões e sub-temas:

- o modelo associal como potência revolucionária;

- o conflito entre um tipo de individualismo radical e a utilidade coletiva; - a recusa e a resistência individual como contraponto às questões em torno

do estar de acordo.!

As questões fundamentais do texto aparecem de forma entrecortada e em constante re-elaboração, o que dá pistas de como Brecht constrói o problema- Fatzer, ora explorando mais diretamente a colisão de decisões individuais com decisões coletivas, ora discutindo em chave paródica o sentido e os caminhos da revolução.

O princípio de proteção que os quatro soldados estabelecem é baseado na situação que os une: a guerra. O coletivo revolucionário precisa de cada um. O espírito de camaradagem defende a solidariedade, mas o instinto de sobrevivência solicita e justifica ações egoístas. Esse embate de princípios e práticas está no cerne de um problema que não conhece curva dramática, porque se organiza em torno de sua complexidade:

A recusa de Fatzer de morrer sem sentido por um ideal abstrato é o que inspira o grupo a desertar, a escapar do maelstrom do front e então sobreviver. Mas o mesmo egoísmo que provoca a deserção aparece para ameaçar a sobrevivência dos quatro, uma vez que se torna clara que a revolução não vai acontecer. Fatzer realiza uma sequência de ações egoístas: retribui a hospitalidade de Kaumann [...], deitando com sua mulher; falha no encontro com soldados que pegariam suprimentos no mercado negro de alimentos e expõe seu amigos em visibilidade perigosa, por causa da sua briga com os açougueiros. (MCGOWAN, 2011, p.202, tradução nossa)44.

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44 “It is Fatzer anarchic refusal to die senselessly for an abstract ideal that inspires the tank crew to

Brecht (1997) discute com Fatzer uma série de questões pontuais que estão na fundação da primeira experiência republicana alemã, mas também expõe como ferida aberta os problemas que entravam as lutas históricas. Se reunidas os fragmentos de diálogos que tratam da saída do tanque, é possível observar que a decisão dos quatro soldados pela deserção indica, como bem frisa Mantovani (2011), que essa deserção não era exatamente um plano, mas a consequência dos quatro soldados terem encontrado uma chance para se afastar, como aparece no fragmento B13: !

!

KAUMANN!

Faço o que vocês fazem! !

FATZER!

Desde o mês passado/!

Não tenho mais vontade e fico de olho/! Num buraco pra que eu possa sair/! Como não gosto mais da minha comida! Era eu/!

Que ficava de pé atrás de um canhão ! Como!

Se ficasse atrás de qualquer outra coisa, eu era a favor do! Trabalho bem feito/ mas há um!

Mês estou farto e!

Vocês façam o que quiserem! Eu vou me escafeder!

Porque ali tem um buraco!! !

BÜSCHING!

Eu penso que Fatzer está certo! A gente se põe em marcha !

Se conserva um pouco à esquerda e quando! Chegar em algum lugar, fica lá.!

A pátria é boa no mapa, mas agora Iá/!

Tem um buraco por onde a gente pode escapar.! !

FATZER!

O que faz um homem atrás de um! Canhão, se ele não tem vontade! E tem uma coisa que não!

Digo com gosto, como você pode imaginar:! Eu não gosto de ficar sozinho.!

(BRECHT in MANTOVANI, 2011, p.46-47)45. ! !

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! egotism comes to threaten the men’s survival once it becomes clear that the revolution wll not happen. Fatzer repays Kaumann’s hospitality [...] by sleeping with his wife; having organized black market food he fails to rendezvous with the soldiers who are to supply it; and his brawls with a group of butchers make the four deserters dangerously visible.” (MCGOWAN, 2011, p.202).

45 Na sua dissertação de mestrado, Pedro Mantovani (2011) traduz todo o Fatzer que se encontra na

última edição alemã das obras completas de Brecht (1997). Indico sua tradução sempre que eu fizer uso dela, remetendo o leitor à sua pesquisa.

McGowan (2011) entende que o egoísmo de Fatzer é um dos fatores que inspiram a deserção coletiva, expondo também o caráter dos outros três soldados. Essa espécie de acomodação, presente na fala de Kaumann (“Faço o que vocês fazem”) e também na fala de Büsching (“A gente se põe em marcha/Se conserva um pouco à esquerda e quando/Chegar em algum lugar, fica lá”), confirma como os outros soldados, por não quererem fazer muito, se põem a esperar pela decisão de Fatzer.

Como expressão da atitude de Fatzer, aparece em contraponto formal o homem-massa. O tema do homem-massa (Massemenschen) é esboçado nos fragmentos de Fatzer (B15, B25 e B48) como esperança e fantasmagoria. A figura do homem como coletivo – “Onde antes/ havia um homem e um outro/Agora há a massa.” (BRECHT, 2002b, p.103) – é crítica também à despersonalização do proletariado, definição que Fatzer dá objetivamente à população de Mülheim, quando os quatro decidem ficar ali, porque ali estão as fábricas.

A representação do associal é a representação de uma experiência negativa, mas que pode ser útil por iluminar o que há de sabedoria e objetividade nesta representação. Ingrid Koudela (1991) indica que a prática com as peças didáticas como modelo de ação é necessária para a crítica a essa representação, através de sua imitação. O comportamento associal não é apenas anárquico, ele é modelar: pressupostos tidos como naturais precisam desmoronar e serem transformados em questionamentos, para que o sujeito opere uma revisão do pensamento pela via negativa. Dessa forma, Brecht constrói a apresentação do associal de forma relativizada, como aquele que não é reconhecido com antecedência, mas que oscila entre um comportamento responsável, depois anárquico, depois novamente responsável.

Importa discutir também a tensão entre espontaneidade e disciplina. McGowan (2011) alerta que Brecht não trata essa tensão de forma binária, mas a complexifica quando as ações do grupo se tornam ações abertas ao exame, diante das atitudes de Fatzer. O modo de agir de Fatzer revela também o que os companheiros deixaram de fazer ou ainda o que decidem fazer depois das ações de Fatzer.

Brecht (1997) interpõe aos diálogos, já em verso, coros e contra-coros, o que, por operarem um corte na forma dramática, pode provocar o olhar distanciado e reflexivo. O coro é uma voz intermediária. É uma espécie de interlocutor de Brecht

com o público e também com as figuras do próprio texto. O coro se afirma em Fatzer, na definição de Lehmann (2009), como sujeito coletivo. O sujeito coletivo é a corporificação de um comportamento gestual no coro. O coro substitui os indivíduos, seus gestos são desligados da ação interior. A dimensão didática do coro não se apresenta como etapa consequente, pois é preciso também saber dar ao conteúdo seu valor de aprendizagem. O coro no Fatzer é uma espécie de exibição teórica. Koudela (2001, p.114-115), tratando especialmente do papel do coro nesse material, resume: “O interesse do Fragmento Fatzer reside justamente em colocar em evidência o processo de elaboração de um pensamento, a experimentação com o método dialético, em função de uma ação política.”

As figuras do Fatzer que aparecem nos fragmentos são, em síntese, quatro soldados desertores (Fatzer, Koch, Büsching e Kaumann46) e a mulher de um deles (Therese Kaumann). Há também um diálogo entre Therese Kaumann e outras mulheres, além de uma outra mulher (mais jovem) que aparece em um diálogo com Fatzer, a menina (Mädchen). O episódio com os açougueiros, os diálogos com os soldados e com os trabalhadores são desenvolvidos em diversos fragmentos, que esboçam desenvolvimento das falas, apresentam os personagens, os caracterizam. Brecht faz mudanças nos nomes dos personagens ao longo das fases de trabalho e em algumas situações. Os coros e contra-coros são incluídos entre os diálogos, também como fragmentos, além das fábulas e de inúmeras indicações para a possível ordem do material.

O trecho que foi publicado em 1930 contém o Passeio de Fatzer pela cidade de Mülheim, o Segundo desvio de Fatzer (partes 1 e 2) e o coro Fatzer, venha. Esses fragmentos publicados apresentam algum desenvolvimento dramático, a partir dos quais é possível encaixar os demais diálogos. Contudo, para esta pesquisa, a ordem de arquivo, em estado bruto, interessa justamente pelo caráter modelar e pela possibilidade de ver a construção, revisão e reordenação das situações, de personagens e de demais formas de registro. A forma do documento como fragmento é potente para o trabalho com o texto como modelo.

Na terceira fase de trabalho com o Fatzer, Brecht (1997) desenvolve um modelo, que pode ser traduzido como o centro de medo da peça (Furchtzentrum des !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

46 Ao longo das fases de trabalho (Arbeitsphase) do Fatzer, Brecht muda o nome dos personagens, e

em alguns casos, condensa algumas funções. Koch é também Schmitt e Keuner, Büsching aparece às vezes como Mellermann e Frühhaupt e Kaumann é Nauke ou Leeb.

Stücks), como parte do fragmento A9. Aqui é possível perceber que Brecht expõe a tensão em fábula, apresentando-a como uma espécie de resenha:

Centro de temor da peça.

Enquanto são acometidos pela fome, o teto sobre suas cabeças se vai, seu melhor camarada os abandona e eles se desunem por causa do Sexus. Deliberações oscilantes vão e vem. Anarquia. Embrutecimento. Depois se constitui uma espécie de soviete.

A desunião leva ao sistema de voto da maioria: "Muito fracos para nos defender, passamos para o ataque”. Diante do interesse ameaçador do ambiente por eles, sempre mais desesperados por atividade revolucionária, Koch luta sob essa divisa.

Koch

começa então a utilizar todas as dificuldades que surgem para o revolucionamento – queda de Fatzer, crescente atenção sobre a casa, fome, individualismo sexual, compulsão de propriedade de Kaumann etc. – de forma consciente (cínica). (BRECHT in MANTOVANI, 2011, p.78)47.

A situação é de desorientação: “Muito fracos para nos defender, passamos ao ataque”. Heiner Müller (BRECHT, 2002b), na sua adaptação de Fatzer, destaca essa fala como uma fala de Koch. Brecht, no fragmento, destaca Koch do texto anterior, apresentando suas ações, como faz com outros personagens ao longo do fragmento A9. O destaque dado ao nome, em itálico e separado do texto escrito em terceira pessoa, indica que o tratamento dramático pode sofrer variações formais narrativas, abrindo o material para usos diversos, como o que Müller fez, por exemplo.

Sérgio de Carvalho observa que Müller enfatiza a relação entre Fatzer e Koch como central para o tratamento das questões de base da peça, revelando:

[...] uma complexa dialética entre o individualismo de Fatzer e o projeto coletivista de Koch” Fatzer é movido por uma "vontade que só dá para o crime", de tendências anarquistas. Repudia aqueles que pretendem que "todos sejam iguais". No lado de Koch, a busca da disciplina partidária, da decisão a favor do terror. Fatzer é um ponto geométrico, os outros uma linha. Nenhum deles pode ter três dimensões enquanto determinados pela fome, enquanto o teto foge sobre suas cabeças, enquanto exilados da força da massa. Como resposta ao embrutecimento, vemos a tentativa vã de se constituir um tipo de soviete, em que "a falta de união conduz o sistema ao voto da maioria." (CARVALHO, 200248).

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47 A tradução deste trecho é de Pedro Mantovani, como indicado. Na tradução de Christine Röhrig

(BRECHT, 2002), Furchtzentrum aparece como epicentro do medo. O substantivo die Furcht em alemão pode ser traduzido por medo ou temor.

48!O texto de Sérgio de Carvalho é uma resenha à edição brasileira do Fatzer de Heiner Müller e foi

publicado com o titulo de Obra expande caráter "laboratorial" de Brecht, no jornal Folha de São Paulo em 06 de abril de 2002. Não há paginação. Está também disponível como Apontamentos

A paródia do soviete revela os interstícios de uma convivência forçada, em crítica sofisticada às formas democráticas e seus desdobramentos. A contradição entre estar fraco para atacar, mas não para se defender, mostra os quatro desertores em situação extrema: Brecht apresenta-os tendo que tomar decisões diante das condições elementares de sobrevivência, de fome, de abrigo, de sexo e de amizade. A crise, ou o centro de medo, apresenta essas situações em toda sua grandeza material e os desertores, manipulados de forma conscientemente cínica por Koch, coisificam-nas sob o pretexto da coletivização. Elas se tornam objeto para as decisões, agora votadas em conselho. A instauração do terror, definida por Koch, quando toma as necessidades por problemas, torna a permanência no quarto de Kaumann uma condição-limite. Ao longo das fases de trabalho com o Fatzer, a figura de Koch se transmuta em Keuner, o racionalista pragmático. Müller (2003, p.55) o descreve bem: “[...] o pequeno-burguês com look de Mao, a máquina de calcular da revolução.”

Outra questão importante sobrevém da condição que os quatro se impõem quando decidem manter-se escondidos. Vivem a tensão que há entre serem pegos como criminosos de guerra, porque são soldados desertores, e a de ganharem o status de heróis da resistência, se acontece a revolução. No primeiro caso seriam simplesmente executados, no segundo desfrutariam de uma condição redentora. Afastam-se da lei, mas ela os cerca de medo e ponderação. Fatzer é justo o que a desafia continuamente: “Quando eu sair amanhã/ Para buscar a comida de vocês/ Porque vocês querem comer/ Mesmo se não estiverem aqui/ Eu vou precisar de um