• Nenhum resultado encontrado

3. DAS LEHRSTÜCK: CONCEITOS OPERATIVOS

3.2 Fábula, gesto e estranhamento

A tarefa da arte é tornar a realidade impossível. Heiner Müller

O teatro épico é gestual, Walter Benjamin (1987) afirma em um texto de 1931. Esta afirmação organiza uma forma de encarar o texto literário que precisa considerar a força do gesto e sua materialidade. O texto literário, dramático no caso do teatro, não perde sua força poética ao priorizar o lugar do gesto, mas ganha em função: a cena épica relaciona-se com o texto como material, assim como com o gesto. Em um teatro que se constrói a partir da força do gesto, o texto se torna matéria moldável, aplicável. Daí o aspecto modelar do texto: ele deve servir de modelo para as construções gestuais, mantendo sua citabilidade e até expandindo sua forma literária em fisicalidade. O texto deve poder ser alterado e essa qualidade lhe confere o status de texto-modelo.

O aspecto modelar é um pressuposto ao entendimento da construção dramatúrgica e cênica no teatro épico. Brecht publicou Modellbücher33, os assim chamados cadernos de encenação (Antígona e Mãe Coragem, entre outros), escreveu textos como modelo de ação – as peças didáticas – e defendeu também teoricamente a cópia como procedimento inicial da criação. Os Modellbücher expõem quadro a quadro, em fotografias comentadas e referências textuais, a disposição espacial e física dos atores, suas posturas, seus gestos, o jogo de cena e o uso dos elementos.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

33 Brecht organizou vários Modellbücher para os espetáculos. Além dos já citados Antígona e Mãe Coragem, lembramos ainda de Vida de Galileu, O círculo de giz caucasiano, Sr. Puntilla e seu criado Matti, A Mãe. Mais sobre, ver: Carney (2005); Berlau et al. (1961); Mumford (2009).

No caso das peças didáticas a relação com a noção de modelo é outra ou, por assim dizer, anterior ao que é viável apreender por modelo a partir dos cadernos de encenação. Os textos das peças didáticas foram escritos como textos-modelo, para receberem o tratamento de modelos. São proposições que retém em sua forma exterior a síntese da fábula.

Encarar o texto como um conjunto de possibilidades para a criação de jogos é um pressuposto ao tratamento dos textos nas peças didáticas. Como Brecht (1967b) afirma, as instruções também podem ser modificadas a qualquer momento. No caso do Fatzer, cuja dramaturgia é dividida em documento e comentário, os dois tipos de escrita são apresentados como passíveis de alteração. Koudela (1991, p.44) sintetiza bem esse pressuposto: “O texto é o móvel para o processo de investigação.”

A noção de texto que subjaz aos textos-modelos das peças didáticas – cabe lembrar que Brecht (2002a, p.27) entende Fatzer e A Padaria como os modelos tecnicamente mais avançados, “[...] do mais alto padrão técnico” – é a de um texto em reescritura. Entranhadas no texto, como material de trabalho, encontram-se as noções de fábula, gesto e estranhamento. O estudo de Fatzer, a partir do aporte conceitual das peças didáticas, indica uma investigação mais detalhada de cada uma dessas noções, sabendo que estão imbricadas uma na outra. A definição de uma noção inclui necessariamente a discussão sobre as outras.

Walter Benjamin (1987) escreveu duas versões para o texto O que é o teatro épico? Uma é o desenvolvimento da outra, mas a segunda versão divide o texto em seções menores e as intitula. Um dos títulos se chama: A fábula.

Nessa seção, Benjamin (1987) defende que um autor deveria se comportar diante de uma fábula como um professor de ballet diante de sua aluna: a primeira tarefa seria deixar as articulações o mais flexíveis possível. Para Benjamin o trabalho de Brecht com a fábula é uma operação crítica: Brecht não se desvincula da importância da fábula, mas a trata em seu teatro a partir dos pressupostos épicos.

O interesse de Brecht é pelas fábulas antigas, pelos mistérios – daí vem seus modelos contra o sensacionalismo temático, como Benjamin (1987) gostava de tratar. Os heróis não-trágicos assumem uma espécie de postura do sábio, o que os desdramatiza, os epiciza. Seus modelos estão nos mistérios medievais, em Gryphius e Calderón de la Barca, Shakespeare e também em Goethe, Lenz, Strindberg. Para Benjamin (1987), uma importante questão que Brecht se colocava

era a de saber se os acontecimentos deveriam ou não ser conhecidos anteriormente pelo público. Se fosse importante, que se buscasse então os acontecimentos históricos para que a tensão se concentrasse mais nos acontecimentos do que no seu desfecho. Ou seja, Brecht estava interessado em fracionar a tensão dramática, inserindo-a entre os acontecimentos, ao longo da história, e não em uma situação específica.

Brecht (2005) trata da fábula em Pequeno Organon para o teatro como princípio estruturante do teatro épico. Para ele o ator deve assenhorar-se da fábula para assim assenhorar-se da personagem e de seus gestos. Essa indicação remete à afirmação de Benjamin que abre essa sessão: a de que o teatro épico é gestual. Sua gestualidade deve-se, em boa parte, ao manejo da fábula. O Pequeno Organon é escrito em 1948, no ano seguinte ao seu retorno à Alemanha. Nele Brecht decide tratar o teatro pelo a priori da diversão e discute os elementos constitutivos da nova representação.

O Pequeno Organon é um texto importante porque aglutina um pensamento em teatro, organizado basicamente em torno de três eixos: a fábula, o gesto, o estranhamento. Para Brecht (2005) as categorias fundamentais do teatro não são apenas conceitos-guia, são método. É nessa perspectiva que o trabalho de Fredric Jameson (1999) com Brecht é articulado, entendendo que as categorias-síntese que compõem o teatro épico são desdobramentos de um pensamento sobre teatro, que previa o texto e a cena em perspectiva teorizante. A fábula, o gesto e o estranhamento compõem um todo formado por partes emancipadas, em contínuo processo de revisão.

Para uma primeira abordagem técnica do termo fábula, convém partir da distinção entre fábula (ou história) e enredo (ou trama). A fábula é a história em si, sem o encadeamento dos acontecimentos que o enredo oferece. O enredo é a forma narrada da fábula, a forma que o autor encontrou para contar a história. Para Umberto Eco (2004, p.85):

Fábula é o esquema fundamental da narração, a lógica das ações e a sintaxe das personagens, o curso de eventos ordenado temporalmente. Pode também não constituir uma sequência de ações humanas e pode referir-se a uma série de eventos que dizem respeito a objetos inanimados, ou também a ideias.

Segundo Carlos Ceia (2011) não há consenso sobre um único termo entre as noções de fábula, récit ou story para designar a matéria pré-literária, o que dificulta a operacionalização dos conceitos. Em todo caso, vale a pena fazer a distinção entre fábula como protoforma do material narrativo e fábula como gênero literário. Fábula como gênero literário é a narração de acontecimentos fictícios, inventados para instruir ou divertir; de intenção fortemente moralizante, como produziram Esopo e La Fontaine, por exemplo.

Luís Paulo Vasconcelos (1987) separa didaticamente os dois usos mais gerais do termo fábula, o uso entre os gêneros dramáticos e o uso em literatura. Transcrevo aqui todo o verbete de seu léxico:

Palavra de origem latina cujo significado é narração. Acompanhada de diferentes adjetivos qualifica os diversos gêneros dramáticos que existiram no teatro romano, como, por exemplo, em “Fabula atellana”, “Fabula praetexta”, etc. O termo foi empregado em traduções da Poética de Aristóteles (384-322 a.C.) como correspondente a mito. Nesse sentido, significa intriga ou enredo. No teatro do século XX a palavra foi retomada pelos formalistas russos, que a usaram como equivalente a história. Para eles, a fábula era “um conjunto de motivos em sua seqüência cronológica de causa e efeito” (transcrito por Massaud Moisés em Dicionário de Termos

Literários, p.227). Em literatura, trata-se de uma narrativa, em geral de

pequena dimensão, que serve como ilustração de uma lição de cunho moral. (VASCONCELOS, 1987, p.87).

A noção de fábula empregada nessa pesquisa, tratada como termo literário e não como gênero literário, é devedora direta da revisão brechtiana que norteia a escrita dos textos das peças didáticas. A reflexão sobre o uso da fábula por Brecht é atualizada na forma que Heiner Müller (1987; 1993; 2003) dá ao fragmento e pode ser refletida a partir da crítica de Lehmann (2009). Ambos os autores ajudam a compreender a noção de história com começo, meio e fim como entidade em crise, que explode e ganha novas formas na produção contemporânea.

No Dicionário de Teatro, Pavis (1999) apresenta o verbete fábula através de sua construção histórica. A noção de fábula, no contexto do teatro, perpassa diferentes usos e entendimentos. Pavis classifica inicialmente duas concepções opostas: a de fábula como material anterior à composição da peça e a de fábula como estrutura narrativa da história. Daí, historicamente, é possível distinguir três possibilidades de acercamento da fábula: 1. fábula como matéria; 2. fábula como estrutura da narrativa e; 3. fábula como ponto de vista sobre a história.

Pavis (1999) discute fábula na primeira acepção, a de fábula como matéria, em sua tensão com a noção de assunto e na sua definição como junção das ações realizadas, a partir de Aristóteles. Fábula é a versão latina do termo grego mythos. O mythos é a matéria fundante, anterior propriamente ao assunto, construído este, por sua vez, no manejo do dramaturgo da matéria original. É o “Conjunto de motivos que se pode reconstituir num sistema lógico ou dos acontecimentos ao qual o dramaturgo recorre.” (PAVIS,1999, p.158).

A fábula como junção das ações realizadas pode ser entendida como a “[...] instalação cronológica e lógica dos acontecimentos que constituem a armação da história representada.” (PAVIS, 1999, p.158). Aqui já se anuncia um primeiro deslocamento do ponto de vista sobre a fábula, que ganha complexidade com a noção de ação. A fábula é, portanto, o que aconteceu, enquanto o assunto é como o espectador/leitor entra em contato com o que aconteceu.

O trabalho do autor dramático para compor a fábula é o de estruturar as ações em motivações, conflitos, resoluções e desenlace num espaço/tempo abstrato. A fábula dá, assim, formato textual às ações prévias e consequentes à peça, seguindo, na maioria das vezes, um esquema rigoroso. A dramaturgia clássica, por exemplo, se resume pelo tratamento linear dado à exposição do assunto, cuidando de garantir uma sequência que apresente o aumento da tensão, a crise, o nó, a catástrofe e o desenlace. Essa acepção deriva de Aristóteles (1981), para quem a fábula é imitação da ação que, tratando da narração das ações e acontecimentos, descreve os atos das personagens. Com Aristóteles a fábula é apresentada como alma do drama, construção basilar para o autor trágico. Aristóteles (1981, p. 25), na parte VI da Poética, assim define: “Está na fábula a imitação da ação [...] as ações e a fábula constituem a finalidade da tragédia e, em tudo, a finalidade é o que mais importa.”

A fábula, na segunda acepção de Pavis, também pode ser encarada como estrutura da narrativa, na qual é perceptível um segundo deslocamento da fábula como matéria. A partir do século XVIII a fábula se afirma mais fortemente como um elemento da estrutura do drama, a forma pessoal do poeta de tratar o assunto e de dispor os episódios. Nessa acepção é preciso compreender a fábula “[...] como um elemento da estrutura do drama que é preciso distinguir das fontes da história narrada.” (PAVIS, 1999, p.158). Essas primeiras duas acepções, mesmo que tenham complexificado a relação da fábula com a ação e com a estrutura da

narrativa, ainda consideram a fábula como um dado evidente, que estaria assentado sobre um sistema fixo inalterável.

Na terceira e última acepção, a fábula é sinônimo de um ponto de vista sobre a história. Esta formulação se deve diretamente à forma de Brecht se acercar dessa noção, tanto que essa terceira acepção é nomeada também de fábula brechtiana. Para Pavis (1999, p.158), a fábula com Brecht “[...] deve constituir o objeto de uma reconstituição, uma busca de todos, desde o dramaturgo até o ator.” A construção da fábula implica uma tomada de posição sobre a história e a História. A tomada de posição prevê um trabalho de leitura, de interpretação. Este trabalho do fabulador, compartilhado entre o leitor e o encenador, instaura um processo dialético que não se esgota, mas que revela um trabalho permanente de investigação e exposição de um ponto de vista sobre a realidade. A fábula é, portanto, fruto do trabalho do fabulador. Segundo Pavis (1999, p.159), em Brecht “[...] a fábula está em perpétua elaboração não só no nível da redação do texto dramático, mas também e sobretudo no processo de encenação e de interpretação.”

Maria Tendlau (2010) desenvolve essa quarta acepção na qual Pavis (1999) insere a poética brechtiana e o seu tratamento da fábula. Brecht (2005) trata a fábula como uma construção passível de alteração, por abordar dialeticamente as duas concepções opostas para fábula elencadas por Pavis. Para Brecht a fábula não é evidente, não existe, não está posta no exterior do texto como um dado natural, ela é um objeto de reconstituição pelas escolhas conscientes do fabulador. Dessa forma, pela novidade do tratamento dado à fábula em Brecht, impõe-se a necessidade de considerar como pré-brechtianas as duas acepções anteriores à acepção de fábula como ponto de vista sobre a história.

A fábula brechtiana é ambígua por princípio. Sua reconstituição é um exercício dialético de negação, afirmação e superação. Brecht (2005) defende que não se deve descuidar de contar a história, ela deve seguir seu curso, mas também deve ser constantemente interrompida, conferindo ao estranhamento a tarefa de comunicar a fábula, justamente através de sua interrupção. Para Brecht essa tarefa está imediatamente ligada à busca por uma percepção justa da história, pela exposição das contradições entre o mundo representado e a maneira de representar o mundo. A exposição dessas contradições ajuda a refletir sobre a forma de contar, reconstituindo a lógica do significado do relato: por que contar assim agora?

Brecht (2005) dedica algumas passagens do Pequeno Organon ao debate sobre o estranhamento. Ele o define como aquilo que permite que o objeto que é reconhecido possa parecer ao mesmo tempo não reconhecível. Para Brecht (2005, p.146), conseguir esse efeito é tão difícil quanto fecundo: “[...] tem de fazer que o público fique assombrado, o que conseguirá, se utilizar uma técnica que o distancie de tudo que é familiar.” Com a técnica do estranhamento se emprega o método dialético materialista. Esse método vê as transformações sociais como acontecimentos em processo, as coisas existem na medida em que se transformam, ou seja, quando estão em disparidade consigo mesmas.

O efeito de estranhamento é uma operação dinâmica porque põe em discussão o estado do que aparentemente não pode ser alterado. Seu movimento é o de, afinal, estranhar o inalterável e promover a mudança: ao expor o inalterável como passível de alteração, o altera. É preciso conhecer as coisas de forma que seja possível intervir nelas, encarar as coisas como são e também como poderiam ser.

Pavis (1999) retoma o termo em sua origem russa (priem ostranenija), como procedimento estético que singulariza, que particulariza aquilo que é objeto de estranhamento. Como efeito deve promover uma alteração na percepção, deve trabalhar para modificá-la, aumentando a sua duração e dificuldade. Jameson (1999) aborda o estranhamento brechtiano como efeito, a partir do procedimento crítico basilar: estranhando-o. Seu trabalho retira o efeito do campo da técnica e discute-o a partir dele mesmo, expondo-o em sua própria atitude analítica. A definição de Jameson (1999, p.64) de ostranenija esclarece: “Fazer-nos olhar esse algo com novos olhos, implica a existência prévia de uma familiaridade geral, de um hábito que nos impede de realmente olhar para as coisas, uma forma de dormência perceptiva.”

O estranhamento brechtiano é o desenvolvimento de um procedimento estético em ação política. No teatro, o efeito de estranhamento revela o artifício da construção dramática e evita a ilusão de realidade cênica. A escolha deliberada de operar com a transformação do mecanismo da identificação em atitude crítica é uma escolha política, que confronta a arte com um papel responsável e comprometido.

Ao abordar o estranhamento, também traduzido por distanciamento, é possível associar a este processo a interrupção como operação concreta. A interrupção da ação, do seu desenrolar – o freio na fábula –, é uma das

materializações do que é conceitualmente definido por estranhamento. A interrupção opera um corte e sublinha a presença do passado no presente.

John Dawsey (2009), tratando dos paradigmas do teatro dramático, retoma a discussão de Benjamin sobre o papel do choque e a nova dimensão do tempo no teatro, depois do advento do teatro épico:

O que interrompe a encenação do teatro dramático no palco da história é justamente a presença do passado no presente, enquanto algo soterrado. O seu irrompimento demarca uma constelação, justapondo imagens do presente e passado, e provocando o susto do reconhecimento. Presente e passado, arrancados do continuum da história, são estranhados. Quem se via num teatro dramático desperta do estado de estupor. (DAWSEY, 2009, p.367-368).

Segundo esse autor, é importante fazer uma distinção entre a interrupção e o choque. O choque por si só, quando não é promovido em articulação com a interrupção como procedimento estético, promove a descontinuidade do tempo, que se esvazia pela repetição. O choque, sinônimo de modernidade na teoria de Benjamin, diferentemente da interrupção, não age sobre a continuidade da ação, mas mobiliza uma lembrança destituída de experiência. Promove um certo estado de distração. A interrupção, por sua vez, provoca o choque, mas lhe dá objetivo, retira-o do mero efeito da repetição, tornando a descontinuidade artística.

Benjamin (1994) defende que a interrupção da ação ocupa lugar central no teatro épico. É através do que se acumula com a interrupção (a produção de gestos, o retardamento da ação e a moldura rigorosa do acontecimento), que se produz a transformação do teatro gestual em teatro épico. Benjamin defende o trabalho de Brecht por suas iniciativas de fazer o teatro representar condições sociais e não o de desenvolver ações. A representação das condições ganha relevo com a interrupção da ação. Para a compreensão de como é possível representar condições no teatro, Benjamin (1994, p.81-82) descreve uma cena-modelo, a cena de família, a qual chama de exemplo primitivo:

A mulher já está amassando um travesseiro, para jogá-lo na filha; o pai está abrindo a janela, para chamar a polícia. Nesse momento aparece na porta um estranho. Tableau, como se costumava dizer, no princípio do século. Ou seja: o estranho se depara com certas condições – travesseiro amarfanhado, janela aberta, móveis destruídos. Mas existe um olhar diante do qual mesmo as cenas mais habituais da vida de família apresentam um aspecto semelhante.

Esta cena, simples e modelar, deixa às claras a função do estranho: desfamiliarizar. O estranho mostra àquela família como, mesmo em família, suas ações podem parecer estranhas. Mostrar é o primeiro passo, o seguinte é poder tratar criticamente da condição aberta ao exame. É importante frisar o caráter material dessa situação, o que justifica a definição de Benjamin (1994) como exemplo primitivo. Nessa situação, se expõe a vida diária, com indivíduos concretos. Jameson (1999) discute o estranhamento justo pelo seu poder de desvelar a aparência, fazendo com que o familiar perca o acréscimo de natural. O estranhamento historiciza: “[...] a isso deve-se acrescentar, como corolário político que é feito ou construído por seres humanos e, assim sendo, também pode ser mudado por eles ou completamente substituído.” (JAMESON, 1999, p.65). É perceptível aqui, de forma muito simples, como o teatro épico, através do procedimento estético do estranhamento, pode transformar o desenvolvimento da ação em representação de uma condição social, ao interromper o curso da ação.

A nova técnica da arte de representar é um texto onde Brecht (2005) descreve tecnicamente o estranhamento como efeito. Há uma passagem que reitera o que Benjamin (1994) descreve na cena de família: “Os acontecimentos e as pessoas do dia-a-dia, do ambiente imediato, possuem, para nós, um cunho de naturalidade, por nos serem habituais. Distanciá-los é torná-los extraordinários.” (BRECHT, 2005, p.110). O papel do estranhamento é o de promover uma atitude crítica diante de uma experiência estética, através da naturalidade, do caráter humano, do humor, da renúncia ao misticismo, características do teatro épico. Mas não sem assombro. Essa passagem do texto de Benjamin (1994, p.81) sobre o teatro épico trata da relação entre interrupção-reconhecimento-assombro:

O teatro épico conserva do fato de ser teatro uma consciência incessante, viva e produtiva. Essa consciência permite-lhe ordenar experimentalmente os elementos da realidade, e é no fim desse processo, e não no começo, que aparecem as “condições”. Elas não são trazidas para perto do espectador, mas afastadas dele. Ele as reconhece como condições reais, não com arrogância, como no teatro naturalista, mas com assombro. Com este assombro, o teatro épico presta homenagem, de forma dura e pura, a uma prática socrática. É no individuo que se assombra que o interesse