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(De) Composição e produção de sentido = dramaturgias na dança contemporânea = (De) Composition and Meaning: contemporary dance dramaturgies

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Academic year: 2021

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INSTITUTO DE ARTES

GISELA DÓRIA SIRIMARCO

(DE) COMPOSIÇÃO E PRODUÇÃO DE SENTIDO: DRAMATURGIAS NA DANÇA CONTEMPORÂNEA

(DE) COMPOSITION AND MEANING: CONTEMPORARY DANCE DRAMATURGIES

CAMPINAS 2015

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(DE) COMPOSIÇÃO E PRODUÇÃO DE SENTIDO: DRAMATURGIAS NA DANÇA CONTEMPORÂNEA

(DE) COMPOSITION AND MEANING: CONTEMPORARY DANCE DRAMATURGIES

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutora em Artes da Cena.

e

Thesis presented to the Arts Institute of the Univesrsity of Campinas in partial fulfillment of the requirements for the Degree of Doctor in Scenic Arts.

ORIENTADORA: PROF.A DRA CASSIA NAVAS ALVES DE CASTRO

ESTE EXAMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE, DEFENDIDA PELA ALUNA GISELA DÓRIA SIRIMARCO E ORIENTADA PELA

PROF.A DRA CASSIA NAVAS ALVES DE CASTRO

PROF.A DRA CASSIA NAVAS ALVES DE CASTRO

CAMPINAS 2015

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Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Artes Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Dória, Gisela,

D83 D_A(de) Composição e produção de sentidos : dramaturgias na dança contemporânea / Gisela Dória Sirimarco. – Campinas, SP : [s.n.], 2015.

D_AOrientador: Cássia Navas Alves de Castro.

D_ATese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

D_A1. Dança. 2. Coreografia. 3. Dramaturgia. I. Navas, Cássia,1959-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: (de) Composition and Meaning : contemporary dance

dramaturgies

Palavras-chave em inglês:

Dance Choreography Dramaturgy

Área de concentração: Artes da Cena Titulação: Doutora em Artes da Cena Banca examinadora:

Cássia Navas Alves de Castro [Orientador] Holly Elizabeth Cavrell

Silvia Maria Geraldi Marina Souza Lobo Guzzo Jussara Correa Miller

Data de defesa: 30-07-2015

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A presente tese propõe uma investigação sobre as especificidades que emergem da relação entre a dança contemporânea e as diferentes noções de dramaturgia. Objetiva-se, assim, problematizar e ampliar a noção de dramaturgia cênica. O percurso investigativo envolve o exame crítico das dramaturgias vigentes nas artes cênicas, a fim de verificar seus níveis de tensão em relação à dança contemporânea. Desse modo, busca-se perceber em que medida a dança contemporânea vem abrindo espaço para a reinvenção da noção de dramaturgia e de que maneira ela está relacionada aos modos de composição e produção de sentido. Três estudos de caso foram selecionados com o objetivo de viabilizar o desenvolvimento desta tese: L’aprés-midi d’un faune (1912), de Vaslav Nijinsky; A Trilogia Kafka, composta por três espetáculos de Sandro Borelli, a saber: Metamorfose (2002), O Processo (2003) e Carta ao Pai (2006); e, por fim, Man Walking Down the Side of a Building (1970) e Primary Accumulation (1973), ambos de autoria de Trisha Brown. Todos esses casos funcionaram como matrizes geradoras de um amplo spectrum de aspectos, princípios e procedimentos dramatúrgicos.

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This dissertation proposes an investigation into the specificities that emerge from the relation between contemporary dance and the different notions of dramaturgy. The intention is to discuss and enrich the notion of scenic drama. Thus, we seek to realize the extent to which contemporary dance has opened space for the reinvention of the concept of drama, and how it is related to the ways of composition and production of meaning. Three case studies were selected in order to enable the development of this dissertation: "L'après-midi d'un faune" (1912) by Vaslav Nijinsky, "The Kafka Trilogy" which consists of three shows by Sandro Borelli, namely: "Metamorphosis" (2002), "The Process" (2003) and "Letter to the Father" (2006), and finally "Man Walking Down the Side of a Building" (1970) and "Primary Accumulation" (1973), both created by Trisha Brown. All these cases serve as matrices generating a broad spectrum of issues, principles and dramaturgical procedures.

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Figura 1: Caderno de Balé de Gisela Dória. Fonte: acervo pessoal...2 Figura 2: Caderno de Balé de Gisela Dória. Fonte: acervo pessoal...4 Figura 3: Marina Abramovic em Body Pressure, 1974, obra de Bruce Nauman. Foto: Kathryn

Carr. Fonte: Marina Abramović Archives and Sean Kelly Gallery, 2007...22

Figura 4: Seed Bed, 1972, obra de Vito Acconti. Foto: Kathryn Carr. Fonte: Marina Abramović

Archives and Sean Kelly Gallery, 2007...22

Figura 5: Marina Abramovic em Action Pants: Genital Panic, 1964, obra de Valie Export. Foto:

Kathryn Carr. Fonte: Marina Abramović Archives and Sean Kelly Gallery, 2007...23

Figura 6: How to Explain Pictures to the Dead Hare, 1965, de Joseph Beuys. Foto: Kathryn Carr.

Fonte: Marina Abramović Archives and Sean Kelly Gallery, 2007...23

Figura 7: The Conditioning, 1973, de Gina Pane. Foto: Kathryn Carr. Fonte: Marina Abramović

Archives and Sean Kelly Gallery, 2007...24

Figura 8: Lips of Thomas, 1975, de Marina Abramovic. Foto: Kathryn Carr. Fonte: Marina

Abramović Archives and Sean Kelly Gallery, 2007...24

Figura 9: Entering to the Other Side, 2005, de Marina Abramovic. Foto: Kathryn Carr. Fonte:

Marina Abramović Archives and Sean Kelly Gallery, 2007...25

Figura 10: Cartas sobre a Dança e Sobre os Balés, 1760, de Jean-Jacques Noverre. Folha de

Rosto. Foto: autor desconhecido. Fonte: Open Library, 2015...29

Figura 11: Les Sylphides, 1909, de Michel Fokine, Londres. Foto: Fotógrafo desconhecido.

Fonte: Getty Images, 2015...31

Figura 12: Martha Graham em Lamentation, 1930. Foto: Barbara Morgan. Fonte: Dance

Heritage, 2015...35

Figura 13: Icosaedro Labaniano. Foto: fotógrafo desconhecido. Fonte: Halsman, 1990...38 Figura 14: Mary Wigman em seu solo A Feiticeira, 1926. Foto: excerto do vídeo Mary Wigman

Tantz, 1930. Fonte: Moma, 2015...39

Figura 15: A Mesa Verde, 1929, remontagem de American Ballet, coreografia de Kurt Jooss.

Foto: Andrea Mohin. Fonte: The New York Times, 2015...40

Figura 16: Ballet Triádico, 1922, coreografia de Oskar Schlemmer. Foto: fotógrafo

desconhecido. Fonte: Encuentros em el subsuelo, 2015...42

Figura 17: Anna Halprin e alunos, na década de 1980, em seu famoso deck de aulas em São

Francisco, EUA. Foto: Peter Larson. Fonte: Anna Halprin, 2015...43

Figura 18: Merce Cunninhgam (segunda da direita para a esquerda) dançando Quartet, com sua

companhia, nos anos 1980. Foto: fotógrafo desconhecido. Fonte: Le Figaro, 2015...45

Figura 19: Points and Space, 1986, de Merce Cunningham. Foto: fotógrafo desconhecido. Fonte:

Seventeen Gallery, 2015...47

Figura 20: Cravos, 1992, de Pina Bausch. Foto: Clau Damaso. Fonte: Pina Baushc, 2015...49 Figura 21: Água, 2011, de Pina Bausch. Foto: Iko Fresse Fonte: Pina Bausch, 2015...50 Figura 22: Meredith Monk em performance nos anos sessenta. Foto: Monica Moseley. Fonte:

Dance Heritage, 2015...54

Figura 23: Jérome Bel em Shirtologie, 1997, um exemplo de não-dança. Foto: Gabrielle Fonseca

Fonte: Tate, 2012...56

Figura 24: O jovem bailarino Vaslav Nijinsky. Foto: fotógrafo desconhecido. Fonte: Teoria de la

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Teoria de la Danza, 2015...71

Figura 26: Programa da temporada de 1912 dos Ballet Russes. Foto: Gisela Dória (acervo pessoal). Fonte: Biblioteca do Palais Garnier, Paris, 2015...73

Figura 27: Referências Helenísticas em um vaso, séc.III. Foto: fotógrafo desconhecido. Fonte: Estudando Arte e Cristianismo, 2015...80

Figura 28: Nijinsky como Fauno na posição de abertura do espetáculo. Foto: Barão de Meyer. Fonte: The Red List, 2015...81

Figura 29: Nijinsky na posição final do espetáculo. Foto: Barão de Meyer. Fonte: The Red List, 2015...82

Figura 30: Nijinsky como Fauno e Sokolova como a Grande Ninfa, no momento que entrelaçam seus braços. Foto: Barão de Meyer. Fonte: The Red List, 2015...84

Figura 31: Olivier Dubois na segunda cena do espetáculo Faune(s). Foto: Michel Gangne. Fonte: AFP/Getty Images, 2015...88

Figura 32: Dubois e elenco na segunda cena de Faune(s). Foto: Michel Gangne. Fonte: AFP/Getty Images, 2015...88

Figura 33: Dubois na Terceira cena do espetáculo Faune(s). Foto: Michel Gangne. Fonte: AFP/Getty Images, 2015...89

Figura 34: Dubois na quarta e última cena do espetáculo Faune(s). Foto: Michel Gangne. Fonte: AFP/Getty Images, 2015...90

Figuras 35, 36, 37 e 38: Quatour Albert Kunst em cena de ...d'un Faune (éclats!). Foto: Laurant Philippe. Fonte: Divergence Images, 2015...92

Figura 39: Men Walking Down the side of a building. Foto: Carol Golden, 1970. Trisha Brown Company, 2015...104

Figura 40: Men Walking Down the side of a Building, em versão mais recente com o bailarino Stefen Petronio em Nova Iorque, 2010. Foto: Andrea Mohin. Fonte: New York Times, 2015.. 105

Figura 41: Trisha Brown em Accumulation with Talking Solo, 1973. Foto: Nathaniel Tileston, 1979. Fonte: Trisha Brown Company, 2015...107

Figura 42: Group Primary Accumulation, 1973. Foto: Hugo Glendinnig, 2010. Fonte: Trisha Brown Company, 2015...108

Figura 43: Group Primary Accumulation, 1973. Foto: Hugo Glendinnig, 2010. Fonte: Trisha Brown Company, 2015...109

Figura 44: Group Primary Accumulation, 1973. Foto: fotgrafo desconhecido Fonte: Trisha Brown Company, 2015...109

Figura 45: Sandro Borelli e Roberto Alencar em A Metamorfose, 2002. Foto: Gal Oppido. Fonte: Cia Carne Agonizante, 2015...126

Figura 46: A Metamorfose, 2002. Foto: Gal Oppido. Fonte: Cia Carne Agonizante, 2015...127

Figura 47: O Processo, 2003. Foto: Gal Oppido. Fonte: Cia Carne Agonizante, 2015...129

Figura 48: O Processo, 2003. Foto: Gal Oppido. Fonte: Cia Carne Agonizante, 2015...130

Figura 49: Carta ao Pai. 2006. Foto: Gal Oppido. Fonte: Cia Carne Agonizante, 2015...131

Figura 50: Carta ao Pai, 2006. Foto: Gal Oppido. Fonte: Cia Carne Agonizante, 2015...133

Figura 51: O Processo, 2003. Foto: Gal Oppido. Fonte: Cia Carne Agonizante, 2015...136

Figura 52: O Processo, 2003. Foto: Gal Oppido. Fonte: Cia Carne Agonizante, 2015...140

Figura 53: Cenografia de L'aprés-midi d'un Faune, 1912, de Nijinski, criada por Léon Bakst. Fonte: Encyclopaedia Brittanica Kids, 2015...149

Figura 54: Miss Julie, 2014, versão Ópera de Paris. Foto: copyright de Anne Deniau. Fonte: Roy, 2014...150

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Agonizante, 2015...152

Figura 56: May B, 1981, Maguy Marin, Paris. Foto: Aghate Poupeney. Fonte: Photo Scene,

2015...153

Figura 57: Errand into the Maze, 2015, Martha Graham Dance Company. Foto: Andrea Mohin.

Fonte: New York Times, 2015...154

Figura 58: Roof Piece, 1971, Trisha Brown. Foto: Babette Mongolte. Fonte: Trisha Brown

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INTRODUÇÃO________________________________________________________________13 Primeiras Palavras: da Gênese desse Processo________________________________________13 PRIMEIRO CAPÍTULO_________________________________________________________20 Desmontar a Dramaturgia: um Olhar para a Dramaturgia no Teatro_______________________20 1.1 Primeira Viga: Aristóteles___________________________________________________21 1.2 Segunda Viga: Lessing e a Dramaturgia de Hamburgo_____________________________22 1.3 Terceira Viga: Reformas do Século XX________________________________________23 1.3.1 Brecht e a Dramaturgia Não-Aristotélica____________________________________24 1.3.2 Artaud e a Dramaturgia Matemática________________________________________26 1.3.3 Eugenio Barba e as Três Dramaturgias______________________________________28 1.4 Performance Art: uma Viga Deslizante_________________________________________29 SEGUNDO CAPÍTULO_________________________________________________________38 Sobre Corpos Modernos e a Dança Contemporânea____________________________________38 2.1 Cartas para a Posteridade____________________________________________________39 2.2 Dança das Margens________________________________________________________43 2.3 Dança de Expressão________________________________________________________47 2.4 Anna Halprin e o Espaço Deslocado___________________________________________53 2.5 Abstração e o Zen__________________________________________________________55 2.6 Pina Bausch e o Tanztheater_________________________________________________58 2.7 A Dança Ainda Pode Ser Considerada Dança?___________________________________62 2.8 Que Dramaturgia é Essa?____________________________________________________67 2.9 Tipologias da Dramaturgia___________________________________________________69 2.9.1 Dramaturgia do Olhar e Dramaturgia Orientada para o Processo__________________70 2.9.2 Dramaturgia do Espaço e do Público________________________________________72 2.9.3 Dramaturgia do Corpo___________________________________________________74 2.9.4 Dramaturgia do Movimento_______________________________________________75 2.9.5 Conceito Hidra?________________________________________________________76 TERCEIRO CAPÍTULO_________________________________________________________77 Vaslav Nijinsky: Pré-Pós-Moderno_________________________________________________77 3.1 Algumas Palavras sobre Vaslav Nijinsky_______________________________________77 3.2 Pré-Pós-Moderno__________________________________________________________78

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3.4 O Crime de Nijinsky e a Coreografia de Autor___________________________________87 3.5 As Portas Abertas para a Contemporaneidade____________________________________92 QUARTO CAPÍTULO_________________________________________________________102 Trisha Brown: Ilhas De Sentido__________________________________________________102 4.1 Trisha Brown – The Early Works____________________________________________102 4.2 Ready Mades Coreográficos________________________________________________104 4.3 Cultura de Sentido / Cultura de Presença_______________________________________107 4.4 Dança Performativa e Dramaturgia de Presença_________________________________110 4.5 As Ilhas de Sentido________________________________________________________120 4.6 Adendo ou Resquícios Coreográficos_________________________________________122 QUINTO CAPÍTULO__________________________________________________________125 Sandro Borelli: Dramaturgia Da Violência__________________________________________125 5.1 Sandro Borelli e um Tríptico para Kafka_______________________________________126 5.2 Em Busca de uma Dramaturgia Particular______________________________________128 5.3 Dramaturgia da Violência___________________________________________________130 5.4 Corpos Interditados ou A Violência da Dramaturgia______________________________131 5.5 Sobre Sentido e Significado_________________________________________________133 5.6 A Respeito da Atuação_____________________________________________________136 5.7 A Respeito da Encenação___________________________________________________141 5.8 A respeito da Pesquisa de Linguagem_________________________________________143 5.9 Dramaturgia como Poética?_________________________________________________144 SEXTO CAPÍTULO___________________________________________________________148 Entrelaçando os Fios: Eixos, Latências, Aberturas____________________________________148 6.1 Dramaturgia Descritiva____________________________________________________153 6.2 Dramaturgia Evocativa_____________________________________________________156 6.3 Dramaturgia Instauradora de Estados Emocionais ou Dramaturgia da Presença________160 CONSIDERAÇÕES FINAIS____________________________________________________165 REFERÊNCIAS______________________________________________________________168

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INTRODUÇÃO

Primeiras Palavras: da Gênese desse Processo

A relação entre teoria e prática representa um foco crescente no cenário atual das artes da cena. Esse processo, no entanto, não é recente, ele permeou o fazer artístico de criadores como Rudolf Laban (1879-1958) e Doris Humphrey (1895-1958), de diretores e atores como Constantin Stanislavski (1863-1938), Vsevolod Meyerhold (1874-1940) e Jerzy Grotowski (1933-1999), bem como de artistas plásticos, cineastas, músicos e poetas. Todos eles atuaram e transitaram, de alguma maneira, entre prática e elaboração, ora de maneira mais evidente, ora de maneira mais sutil, promovendo debates fervorosos e reflexões profundas em torno dessa relação.

No presente caso, poder-se-ia dizer que a minha incursão enquanto artista-pesquisadora pelo universo teórico na dança é relativamente recente. Ao menos, era isso o que eu acreditava até dar início à pesquisa que originou esta tese. Na dança contemporânea, área onde atuo profissionalmente, o pensamento sobre as relações entre teoria e prática acontece, muitas vezes, de maneira binária, dicotomizada. Assim como muitos pesquisadores em artes, iniciei meus estudos pela prática. No entanto, tamanha foi a surpresa ao me deparar – no período em que estava redigindo meu memorial artístico para o processo seletivo deste doutorado – com o meu primeiro caderno de dança.

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Figura 1: Caderno de Balé de Gisela Dória. Fonte: acervo pessoal.

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Escrito em 1982, esse pequeno caderno contém anotações de coreografias, lições de casa, pesquisas, desenhos e referências bibliográficas. Estimulada pela minha primeira professora de balé, desde muito jovem alimentei um interesse pela dança além da sala de aula e do palco. Embora nas escolas e nas academias de dança, cadernos de anotações fossem utilizados durante o processo de aprendizado do balé clássico, a utilização de recursos teóricos na pedagogia do ensino da dança não era frequente.1

1 O termo dança, usado nesta tese, compreende muitas práticas, quais sejam: dança moderna, jazz, street dance, dentre

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Figura 2: Caderno de Balé de Gisela Dória. Fonte: acervo pessoal.

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A julgar pela concisa bibliografia relativa à dança disponível em nosso país, não raro um estudante só tem acesso a pesquisas teóricas ao ingressar em uma universidade. No entanto, visto que a universidade não é um requisito obrigatório para a formação nessa área, mas uma das possíveis opções de qualificação profissional, muitos artistas percorrem suas carreiras sem estarem munidos de conhecimentos teóricos, ou apenas com esparsas e eventuais leituras conceituais. Por outro lado, vale reforçar que o acesso aos meios de comunicação é cada vez maior e a possibilidade de construção autodidata, cruzada via mídias eletrônicas, por exemplo, tem se tornado real e substancial em muitos casos. Um exemplo é a poética do pós-modernismo, que envolve uma estrutura aberta e em constante mutação, formulada a partir das relações entremeadas de teoria contemporânea e prática cultural (Hutcheon, 1991). Ao ingressarmos no estudo das artes, nos deparamos diversas vezes com pesquisadores, artistas e artistas-pesquisadores que vêm construindo legados indiscutíveis em suas áreas de trabalho e abriram um vasto caminho para os que fazem arte hoje. Ao contrário da compartimentação binária entre a teoria e a prática essas instâncias podem funcionar como interfaces que se complementam e se transformam constantemente. Tendo essas considerações em vista, cabe observar que essa pesquisa parte de uma análise de práticas, fato esse que a caracteriza como uma pesquisa prático-teórica.

Estado da tese

Esta tese, intitulada (de) Composição e Produção de Sentido: Dramaturgias na Dança Contemporânea, cuja proposta é investigar as especificidades que emergem da relação entre diferentes noções de dramaturgia e a dança contemporânea, tem como corpus as seguintes obras: L’aprés-midi d’un faune, de Vaslav Nijinsky (1912); Trilogia Kafka, composta por três espetáculos de Sandro Borelli, a saber: Metamorfose (2002), O Processo (2003) e Carta ao Pai (2006); Man Walking Down the Side of a Building (1970) e Group Primary Accumulation (1973), ambos de autoria de Trisha Brown.

Com o objetivo de problematizar e ampliar a noção de dramaturgia cênica no âmbito da dança contemporânea, algumas noções de dramaturgia, tal como aquela relacionada ao fazer teatral na Grécia clássica, assim como outras surgidas na contemporaneidade, são abordadas nesta tese.

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Corpo. Linha, forma, volume, ritmo, motor de latências expressivas. Corpo à mostra, ser vivo que habita tecidos e texturas que o transformam, restringindo-o, expandindo-o, podendo alterar a sua natureza. Corpo mudo que diferencia múltiplos silêncios, corpo-sonoro que deixa captar o processual dos esforços nos fluxos respiratórios. Corpo-falante, que faz da palavra algo não utilitário, corpo-vazio, corpo-canal, corpo-carnal, corpo-espiritual, corpo-virtual, corpo-estático, corpo-banal. Centralidade do corpo, mas não corpo isolado, e sim coletivo, luz, objeto, música, corpo-contexto, corpo-subtexto, corpo-cultura, corpo-narrativa, que materializa, de forma incessante, fluxos experienciais e modos de existência específicos.

Esses corpos, colocados aqui como rastros perceptivos, podem servir de pistas que convergem para um campo de investigação: a dramaturgia, ou melhor dizendo, as dramaturgias. Dramaturgia que, apesar de ser matéria de estudo e reflexão no campo das artes cênicas, no que diz respeito à dança, ele representa um canteiro em construção, pleno de possibilidades e pesquisas por vir.

A partir dessas reflexões e das análises do corpus selecionado, pretendeu-se compreender uma série de questões, quais sejam: 1) como se apresenta a dramaturgia na dança contemporânea? 2) como é possível pensar sobre dramaturgia nesse caso? 3) quais são os aspectos e os processos envolvidos em sua produção? 4) é possível, mesmo diante da grande pluralidade de poéticas existentes nesse campo, reconhecer aspectos ou princípios comuns que as permeiam?

As questões que surgem quando a esse tema é dirigida uma atenção especial, assim como as respostas dadas a essas perguntas, provém, algumas vezes, de elaborações derivadas da dramaturgia associada ao teatro. Tal recorrência não é casual, uma vez que a dramaturgia representa um material de reflexão consistente na história dessa forma de arte. Desse modo, optou-se por partir das reflexões desenvolvidas pelo teatro.

Assim, no primeiro capítulo realiza-se uma breve revisão histórica, que tem como ponto de partida as bases ou vigas da dramaturgia teatral ocidental e da performance art, vista, aqui, como uma espécie de viga deslizante. Neste capítulo, Aristóteles (2004), Gotthold Ephrain Lessing (2009), Bertolt Brecht (2002), Eugenio Barba (2000, 2010), são revisitados para auxiliar o leitor a construir ou a relembrar um pouco do percurso e das transformações pelas quais a dramaturgia do teatro ocidental passou.

A seguir, no segundo capítulo, outra breve revisão histórica é realizada, dessa vez passando por uma rede de coreógrafos e principais referências da dança cênica, a partir dos escritos de Jean-Georges

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Noverre (apud MONTEIRO, 1998), e pelas danças moderna e contemporânea, a fim de construir um mapeamento rizomático que aponta momentos fundamentais da expansão das dramaturgias na dança.

Nestes dois primeiros capítulos, a contextualização auxiliou a abrir espaço para a discussão dos três capítulos seguintes. Assim, no terceiro, quarto e quinto capítulos, foram analisadas as coreografias de um corpus, de autoria de Nijinsky, Brown e Borelli, consecutivamente. Tais artistas, com obras tão diferentes entre si, trazem em comum aspectos relacionados aos seus modos de criação, cuja relação com o corpo de seus intérpretes se dá em um primeiro plano, assim como suas especificidades no que diz respeito à criação de movimento e à pesquisa de linguagens, que são evidentes e bastante singulares. Ao analisar suas obras, separadamente, emergiram as bases e as indicações para os eixos de dramaturgia que são propostos, finalmente, no último capítulo desta tese, dialogando com diversos autores e pesquisadores como Marianne van Kerkhoven (1997), Isabelle Launay e (2011), Cibelle Sastre (1999) e Paulo Paixão (2011), dentre outros.

Desse modo, o que se tem pela frente é uma pesquisa dividida em seis capítulos, que, em contraste com essa breve introdução, feita em primeira pessoa, se coloca na terceira pessoa do singular em busca de se descolar de uma produção de texto subjetiva ou pessoal, a fim de construir uma pesquisa o mais objetiva possível em torno de um tema fugaz e evanescente, assim como a própria dança.

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PRIMEIRO CAPÍTULO

Desmontar a Dramaturgia: um Olhar para a Dramaturgia no Teatro

Esta tese propõe um convite a um percurso, cujo início se volta ao passado e atravessa uma paisagem histórica. Um primeiro momento teórico, uma espécie de aquecimento. Antes de partir, torna-se necessário propor uma primeira questão (neste percurso de muitas questões): no que diz respeito às noções de dança contemporânea e de dramaturgia, algumas problematizações iniciais precisam ser levantadas. A primeira delas seria interpelar a necessidade de um consenso quanto à definição de dança contemporânea e, em seguida, perceber convergências em relação ao conceito de dramaturgia em dança contemporânea. No que diz respeito aos riscos que podem emergir de tal consenso, ou convergência, um deles seria um excessivo fechamento reflexivo desses campos, apontando para uma cristalização de noções que estão em constante vir a ser e se transformam constantemente. Sendo assim, por que não aceitar simplesmente o dissenso, aquilo que, segundo Rouanet (1987, p. 236) "[…] não busca a eficácia [...], mas a invenção, o contraexemplo, o ininteligível, o paradoxal"?

Portanto, não se trata aqui de buscar produzir um consenso, mas sim a produção de um conhecimento complexo, em nome de uma dança contemporânea viva, que permita espaço para a subjetividade, que também possa ser discutida com maior propriedade, sem ser frequentemente atravessada por conceitos desatualizados e banalizados pelo uso comum.

Desse modo, a primeira parte deste capítulo, ao recuar e ampliar as indagações acerca das origens da dramaturgia, pretende destrinchar essa noção, a fim de compreender melhor suas origens e seu desenvolvimento, sobretudo no século XX.

Ao mesmo tempo que se busca descolar a noção de dramaturgia na dança da dramaturgia teatral, falar de tal noção implica, do ponto de vista histórico, reportar-se necessariamente à dramaturgia no teatro. De fato, a pesquisa sobre dramaturgia no âmbito teatral é significativamente mais extensa e certamente mais debatida, tendo passado por um nítido processo de transformação no decorrer do século XX, principalmente em sua segunda metade.

Se, por um lado, o termo “dramaturgia” no Ocidente remeteu, desde a Grécia Clássica até meados do século XX, à arte de escrever textos dramáticos – e portanto, desde Aristóteles e passando por Lessing – por outro, uma nova concepção de dramaturgia emergiu no Ocidente durante o mesmo período. Essa representa, por sua vez, uma ampliação em relação à concepção original que relaciona

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estritamente a dramaturgia ao texto dramático considerado, por sua vez, como matriz do espetáculo teatral.

Ao propor “desmontar”, ainda que brevemente, essa história da dramaturgia ocidental, não se pretende colocar uma bomba nesse edifício teórico, mas radiografá-la, na tentativa de observar suas principais vigas de sustentação, de seu processo constitutivo.

1.1 Primeira Viga: Aristóteles

Para Aristóteles (2004) as artes tinham como principal objetivo produzir imitações. Em Poética, o filósofo refletiu sobre a maneira como os artistas buscavam, por imitação, representar pessoas dos mais diversos níveis sociais em ação, enfatizando que tais variações poderiam também acontecer na dança assim como na música.

Do mesmo modo que alguns fazem imitações segundo um modelo com cores e atitudes, – uns com arte, outros levados pela rotina, outros enfim com a voz; assim também, nas artes a imitação é produzida por meio do ritmo, da linguagem e da harmonia, empregados separadamente ou em conjunto (ARISTÓTELES, 2004, p. 22).

É bastante claro para o filósofo grego que a imitação envolve uma ação e que essa, por sua vez, é realizada por agentes (atores, dançarinos, músicos) e requer uma unidade.2 Cabe à narrativa, ou seja, ao

roteiro, a construção dos atos. Tudo com o claro objetivo de que o discurso falado, no caso, a tragédia clássica, dê conta de transmitir ao público aquilo que se pensa, de forma bastante organizada e linear, com início, meio e fim.

No entanto, Aristóteles não propunha uma compreensão puramente intelectual dos acontecimentos propostos pelos textos que seriam encenados. Ao contrário, ele assinalou que pela compaixão ou pelo terror a tragédia atingiria a catarse, uma purgação de sentimentos, conforme observou Bornheim:

2 Em relação à Poética de Aristóteles, serão apontados aqui somente os aspectos e as implicações funcionais aos argumentos desta tese. Não serão considerados, portanto, os intrincados debates em torno das noções de imitação e ação, dentre outros temas.

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[…] com efeito, muitas pessoas estão expostas em alto grau a essa forma de emoção, e vemos a estas pessoas, sob a influência da música sagrada, quando empregam modos que sacodem violentamente a alma, levadas a um estado tal como se tivessem recebido um tratamento médico e tivessem tomado uma purga (BORNHEIM, 1992, p. 220).

Vale ressaltar que, se pela atração ou pela repulsa, os sentimentos emergiam no espectador e isso não se dava de forma livre e autônoma. Ao contrário, era por meio de uma detalhada e organizada estrutura que tais emoções deveriam surgir, sem que fosse concedido ao espectador a decisão de quando deveria fruí-las.

Além da questão da imitação, dos elementos da ação – a peripécia, o reconhecimento, o patético, a catástrofe – e da catarse, o filósofo discorreu também sobre os gêneros, sobre as qualidades da fábula, sobre o desenlace e sobre as partes e qualidades da elocução, dentre outros aspectos.

Embora criticada, como é possível atestar, por exemplo, em Brecht (2002) e seu conceito de “dramaturgia não-aristotélica, a Poética tem até os dias atuais uma importância inquestionável no que diz respeito à construção do que viria a ser conhecido como referência fundamental a ser seguida para a produção de uma dramaturgia, não somente no teatro, mas também na dança, como será examinado em Noverre3 e discutido no segundo capítulo desse trabalho.

1.2 Segunda Viga: Lessing e a Dramaturgia de Hamburgo

Se, para Aristóteles (2004) a dramaturgia tinha a ver necessariamente com a narrativa (roteiro) e a escrita, ou seja, a composição dramática, para compreender melhor a origem da problemática em torno da ampliação do conceito de dramaturgia se faz necessário passar pela Alemanha do século XVIII. Foi a partir das concepções do dramaturgista alemão Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) que tal conceito foi introduzido como uma forma de consciência crítica. Esse período pode ser apontado como um primeiro momento de ampliação da noção de dramaturgia.4

3 Noverre, Jean-George (1727-1810), bailarino, professor e coreógrafo do período pré-romântico no balé, criador da proposta do ballet d’action, autor de Cartas sobre a dança, legado de considerável contribuição para a emancipação da dança.

4 Sobre os novos paradigmas da dramaturgia contemporânea, a obra O Discurso da Cumplicidade de Ana Pais, resume de maneira esclarecedora o papel e a importância de Lessing para essa primeira mudança de paradigma.

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Lessing foi um filósofo, crítico, dramaturgo e escritor. Trabalhou como tradutor das obras de Voltaire durante o período em que o pensador francês viveu em Berlim, tendo sido fortemente influenciado pelo pensamento iluminista. Na célebre obra Dramaturgia de Hamburgo, redigida sob a forma de um manifesto a partir dos preceitos aristotélicos, Lessing propunha, resumidamente: libertar o teatro alemão do modelo francês5; criar um novo teatro nacional que fosse reflexo da identidade

cultural alemã; educar e cultivar o público. Com esse tratado, publicado entre os anos de 1767 e 1769, ele inaugura finalmente o cargo de Dramaturg (que pode ser traduzido para a língua portuguesa por dramaturgista). Sendo assim, ele foi considerado o primeiro dramaturgista alemão e possivelmente o primeiro dramaturgista na história das artes cênicas no Ocidente.

Em sintonia com o ponto de vista proposto por Pais (2004, p. 33), o dramaturgista, para Lessing, era uma função desempenhada por alguém que, “[...] não tendo uma função artística, integra a instituição e aí permanece como um mediador entre o teatro e o público, fato esse que configura um ‘olhar exterior’”. Tal cargo, cujas funções são mais da ordem institucional do que artística, existe ainda hoje nos principais teatros alemães. Já segundo o pesquisador e professor alemão radicado no Brasil, Baumgärtel (2012) o “dramaturgista institucional” é o responsável pela escritura dos programas das peças – que na Alemanha são verdadeiros livros, não apenas portadores de sinopses dos espetáculos e de fichas técnicas como, na maioria dos casos, é feito no Brasil. Era ele, e é ainda, quem articula as atividades didáticas com o público assinante das temporadas, além de trabalhar como intermediador entre o dramaturgo, autor da peça e o encenador e/ou diretor do espetáculo. Para Baumgärtel (2012), essa função não existe tal e qual no teatro brasileiro, ela seria uma mistura de atribuições que normalmente são delegadas ao produtor e ao assistente de direção de um espetáculo, ou do próprio teatro.

É importante ressaltar que à origem do projeto de Lessing existia não somente uma preocupação artística, mas, principalmente, política, uma vez que para o autor alemão era urgente a criação de um teatro nacional que se diferenciasse do modelo normativo francês, aquele proposto por inúmeras referências, dentre elas Diderot6, que, segundo Danan (2010, p. 17) era “[...] mais aristotélico do que

Aristóteles”.

5 Nicolas Boileau (1636-1711) foi um importante membro do Classicismo Francês, autor da Arte da Poética, manual de doutrina clássica, que seguia os preceitos aristotélicos do bem escrever. Juntamente com Corneille, Racine, Molière e Diderot, fundou um movimento intencionalmente rígido de teatro na França.

6 Denis Diderot foi um importante escritor, enciclopedista e filósofo francês do século XVIII. Nasceu na cidade francesa de

Langres em 5 de outubro de 1713 e faleceu em Paris em 31 de julho de 1784. É considerado uma das principais figuras do Iluminismo. Sua grande obra foi a elaboração editorial da Enciclopédia, em parceria com d'Alembert.

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Desse modo, as propostas revolucionárias de Lessing não cabiam em um sistema fechado de regras, constituíam-se em um olhar aberto que tinha como objetivo questionar e produzir um pensamento em torno da prática teatral vigente, processo esse que deflagrou um novo paradigma de dramaturgia no Ocidente.

Contudo, a contribuição dada pela Alemanha ao desenvolvimento da dramaturgia não se conclui com Lessing; se o autor de Dramaturgia de Hamburgo trouxe uma transformação significativa a partir da emergência do dramaturgista, outro alemão viria a ser um verdadeiro divisor de águas no que diz respeito à expansão e à transformação do conceito de dramaturgia nas artes da cena: Bertolt Brecht.

1.3 Terceira Viga: Reformas do Século XX

Dentre os artistas que contribuíram para o surgimento e o desenvolvimento do conceito de dramaturgia a partir do século XX, cabe ressaltar o trabalho desenvolvido por Bertolt Brecht e as elaborações feitas por Antonin Artaud. De maneiras diferentes, ambos foram importantes para a consolidação e a ampliação da noção de dramaturgia para além da confecção de textos dramáticos. De fato, pelo trabalho desenvolvido por Brecht, a noção de dramaturgia passa a ser relacionada não apenas à produção de textos dramáticos, mas igualmente à articulação dos diversos elementos que compõem a cena. Com ele, surgiu, de maneira ainda mais consistente e ampliada, a figura do dramaturg, diferente daquela proposta por seu conterrâneo, Lessing. Ou seja, em Brecht o dramaturg passa a ser um profissional que atua como um criador polivalente da cena, que articula o texto escrito aos outros elementos cênicos e que dialoga com o diretor de forma a contribuir efetivamente para a concepção e criação do espetáculo.

1.3.1 Brecht e a Dramaturgia Não-Aristotélica

Uma “dramaturgia não-aristotélica”, como o próprio nome diz, seria uma dramaturgia que nega os princípios dramatúrgicos definidos por Aristóteles. No entanto, minimizar a contribuição de Brecht a uma simples negação dos princípios aristotélicos seria uma redução ingênua e equivocada. Certamente, a contribuição dada pelo dramaturgo alemão vai muito além de uma negação dos preceitos aristotélicos. Pode-se dizer que a crítica sobre a dramaturgia aristotélica, somada aos conceitos criados

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em seus anos de dedicação à pesquisa e prática teatral, são de fato um marco para a reelaboração e a ampliação do conceito de dramaturgia no Ocidente.

No ensaio Crítica da Poética de Aristóteles, Brecht apontou para a noção de catarse – vista como purificação do espectador, pela imitação de ações indicativas de terror e piedade – como o traço determinante da dramaturgia aristotélica, aspecto que estaria diretamente relacionado aos efeitos da ação no nível das emoções. Esse representa o principal foco de rejeição do artista alemão. É a partir de tal rejeição que se pode compreender a emergência daquela que viria a ser a sua “dramaturgia não-aristotélica” (BORNHEIM, 1992, p. 214).

Brecht (2002) observa que tal hegemonia das emoções provocaria a ausência de espírito crítico, condição molar do pensamento brechtiano. Esse espírito crítico, segundo o artista alemão, somente poderia ser alcançado de duas maneiras, pela admiração e pelo estranhamento7, dupla de ações que, por

sua vez, construíram o que Brecht (2002) chamou de “efeito de distanciamento”.

Outro aspecto que não pode passar despercebido em relação às contribuições do pensamento e da prática do artista alemão está relacionado com a dimensão coletiva da gestualidade, concebida por Brecht (2002) como gestus, que, segundo Pavis (1998), é um dos conceitos mais sutis e produtivos da ampla teoria teatral brechtiana. Ainda que Brecht não tenha definido o gestus de maneira conclusiva, em seu primeiro sentido ele seria a relação social que o autor estabelece com a sua personagem e com os outros. Essa noção é particularmente interessante neste ponto da presente tese, uma vez que diz respeito ao corpo como um todo, isso é, às suas dimensões visuais, vocais e sociais, atuando de modo a fazer prevalecer o gesto sobre a palavra (PAVIS, 1998). O gestus foi problematizado pelas teorias pós-brechtianas, segundo as quais ele seria um agente inibidor passível de domesticar o corpo do ator e de torná-lo obediente. No entanto, para Brecht, o domínio de tal conceito forçaria o ator a encarnar as suas ideias de modo a não se tornar servo das palavras do autor (PAVIS,1998).

Autor, dramaturgo e encenador, para Brecht, a noção de dramaturgia recobre – ao menos teoricamente – aquela da encenação, pois para ele, os dois eixos principais do trabalho teatral são a elaboração da fábula, realizada pelo dramaturgo e/ou pelo coletivo, e a construção dos personagens, que, por sua vez é função dos próprios atores. Cabendo, assim, ao encenador o papel de mediador (cf. DANAN, 2010).

7 Segundo Bornheim (1992, p. 215), “[...] o despertar emerge no homem a partir de duas experiências contrapostas: o espanto, uma certa admiração (Erstaunlichkeit), e o estranhamento, que distancia (Befremdlichkeit) (III, 30). No fundo, as duas palavras se referem a uma vivência única, porquanto a admiração, bem compreendida, traz consigo a descoberta da alteridade, o sentimento de estranheza, de distanciamento”.

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Ampliando, dessa forma, significativamente a discussão em torno da dramaturgia, da encenação e das atribuições e diferenças entre tais instâncias, Brecht abre espaço para uma reflexão cujas ressonâncias são extremamente vastas e que seguiram e seguem em debate até os dias atuais; aprofundá-las, nesta tese, seria torná-las o objeto de pesquisa em si.

1.3.2 Artaud e a Dramaturgia Matemática

No caso de Artaud, de forma ainda mais radical do que Bretch, o texto deixa de ser a matriz única de significação do teatro e propõe-se à dissolução de uma relação hierárquica entre os elementos da cena. Assim, apesar de manifestarem percepções diferentes sobre o teatro, tanto em Brecht como em Artaud, abriu-se caminho para o reconhecimento de uma noção de dramaturgia que não está relacionada especificamente com o texto escrito, mas sim com o funcionamento e a articulação do fenômeno espetacular que se materializa cenicamente.

Desse modo, Artaud propõe uma espécie de “dramaturgia matemática”. Na verdade, ele não utiliza esse termo, nem ao menos se refere a uma noção de dramaturgia que não seja a da dramaturgia do texto. Então, por que matemática? Fortemente inspirado pelo teatro balinês, o artista francês se dizia absolutamente encantado pela precisão, pelo rigor e pelo controle demonstrado por tal forma de teatro oriental. Em suas próprias palavras:

Este espetáculo é superior à nossa capacidade de assimilação; assalto-nos com uma superabundância de sensações, em que cada uma é mais rica que as outras, porém, numa linguagem que parece não possuirmos já a chave; e esta espécie de limitação criada pela impossibilidade de descobrir o fio da meada – a impossibilidade de aproximar o ouvido do instrumento para ouvir melhor – é mais um atrativo para crédito desse espetáculo [...] (ARTAUD, 1996, p.56).

E, ainda:

[...] o que impressiona e desconcerta os europeus, como nós, é a admirável intelectualidade que se pressente a crepitar por toda parte da plateia apertada e sutil dos gestos, nas modulações infinitamente variadas da voz, nessa chuva sonora que ressoa como se proveniente duma intensa floresta gotejante e no entrelaçar identicamente sonoro dos movimentos (ARTAUD, 1996, p. 56-57).

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Em contraste com o teatro contemporâneo de sua época, que para Artaud (1996) era decadente, principalmente por ter abdicado do risco e do perigo, o teatro balinês possuía uma abundância de gestos rituais, matematicamente articulados, no qual não havia desperdício algum, e cuja chave de compreensão os ocidentais não seriam jamais capazes de possuir.

Dessa forma, segundo Artaud (1996), a dramaturgia deveria acontecer de forma matematicamente calculada. O teatro balinês era um exemplo vivo que deveria ser seguido, ele representa para o artista francês uma meta, um lugar para onde o teatro ocidental deveria caminhar.

A questão da encenação era também um ponto precioso para Artaud. Embora a luz, o figurino, o espaço, o tempo e a relação com o público tenham sido todas questões relevantes, que o autor francês abordou de maneira instigante, as suas reflexões em torno da encenação merecem especial atenção dentro do contexto desta tese.

Para Artaud (1996) o exemplo balinês eliminou o autor em favor do encenador, e esse último, por sua vez, tornou-se uma espécie de “[...] manipulador de magia, um celebrante de cerimônias sagradas” (ARTAUD, 1996, p. 59). Para o autor, a encenação seria:

1- a materialização visual e plástica do discurso;

2- A linguagem de tudo o que pode ser dito e que pode ter significado num palco, independentemente da fala, de tudo que se exprime no espaço, ou que por ele pode ser afetado ou desintegrado (ARTAUD,1996, p. 68).

É possível então que, para Artaud, a encenação fosse o que atualmente se entende por dramaturgia em sua noção ampliada? Talvez sim; talvez o que ele propunha como encenação estivesse estreitamente relacionado a uma das possíveis concepções do conceito atual de dramaturgia, uma dramaturgia da cena, por exemplo. Para ele,

[...] a encenação era o ponto de partida de toda criação teatral, que se constituiria a linguagem típica do teatro. E é na utilização e na manipulação desta linguagem que se dissolverá a velha dualidade do autor e do encenador, substituídos por uma espécie de Criador Único a quem caberá a responsabilidade dupla do espetáculo e da ação (ARTAUD,1996, p. 9).

Assim, Artaud nos faz perceber de maneira contundente a dramaturgia como uma articulação entre todos os elementos constitutivos da cena. Assim como afirma Pais, embora aconteça como uma

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camada invisível para o espectador, “[...] a dramaturgia está, na teoria e na prática, indissociavelmente ligada a áreas como a encenação, a interpretação ou a estética” (PAIS, 2004, p. 24). Tal invisibilidade representa um eixo central das propostas de Artaud. Para ele, mais do que para o logos, o teatro deve almejar tocar o não dito, escavar os aspectos sensíveis do fenômeno teatral. Tais aspectos seriam ulteriormente abordados e aprofundados por outro diretor relevante no panorama teatral ocidental: Eugenio Barba.

1.3.3 Eugenio Barba e as Três Dramaturgias

No que diz respeito aos desdobramentos pós-brechtianos relacionados a essa ampliação da dramaturgia, Eugenio Barba deve ser necessariamente considerado. Nos anos 1970, Barba definiu dramaturgia a partir de sua chave etimológica: drama-ergein, ou seja, trabalho das ações. Com isso, ele passa a redefinir o modo como as ações são construídas por seus atores. Nas palavras do diretor, “a dramaturgia não era um processo que pertencia somente à literatura, era uma operação técnica inerente à trama e ao crescimento de um espetáculo e de seus vários componentes" (BARBA, 2010 p. 38).

Em suas reflexões teóricas, Barba (2010) declara que aquilo que ele chamava de dramaturgia não se tratava de uma composição narrativa ou uma linha sequencial do tema construída de forma horizontal, ao contrário, ele passa a percebê-la numa relação vertical entre todos os componentes da cena teatral.

Desse modo, Barba (2010) propõe três noções de dramaturgia: 1) a “dramaturgia orgânica” ou “dinâmica”, que envolve a composição dos ritmos e dos dinamismos que agem sobre o espectador em nível nervoso, sensorial; 2) a “dramaturgia narrativa”, que entrelaça os acontecimentos, as personagens e orienta os espectadores em relação ao sentido do que estão vendo; e 3) a “dramaturgia das mudanças de estado”, que emerge quando o conjunto do que é mostrado consegue evocar algo diferente, inesperado, a exemplo do canto e da música que, através dos harmônicos, podem desenvolver outra linha sonora. Para o diretor, esse último tipo de dramaturgia tem uma natureza diferente das duas outras, tendo a classificado como “espécies de cavernas biográficas de cada espectador” (BARBA, 2000, p. 39).

O autor ainda resume sua concepção em torno da dramaturgia da seguinte maneira: “[...] a dramaturgia orgânica é o sistema nervoso do espetáculo, a dramaturgia narrativa é seu córtex, a dramaturgia evocativa é aquela parte de nós que, em nós, vive no exílio” (BARBA, 2000, p. 40).

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Dentre os artistas que contribuíram para o desenvolvimento ulterior da noção de dramaturgia, porém em menor escala, podemos ressaltar: Jerzy Grotowski (1933-1999), Peter Brook (1925-) e Robert Wilson (1941-). O aspecto fundamental aqui é perceber de que maneira se deu a absorção e ampliação desse conceito, no que diz respeito à dança contemporânea e suas especificidades.

Forma-se assim uma espécie de tripé. Três vigas que sustentam um conceito móvel: as teorias de Aristóteles, de Lessing e as concepções contemporâneas formuladas a partir da primeira metade do século XX. Mas como pensar em vigas, suportes teoricamente estáveis, que aguentam densos edifícios como sustentáculos de um conceito móvel? É possível se pensar em vigas sobre rodas? Se sim, qual estabilidade essas vigas teriam?

1.4 Performance Art: uma Viga Deslizante

Para pensar de que modo essas três vigas, ainda que instáveis, se transformaram em uma estrutura de quatro pernas, que suporta esse edifício da dramaturgia ocidental, que se ergue ainda que deslize, parece oportuno trazer para o debate, ainda que brevemente, a noção da Performance Art.

Reconhecendo a variedade de mapeamentos detalhados e aprofundados do conceito de performance, este estudo se vale basicamente de dois autores para abordar uma noção cuja definição é tão variada quanto a própria noção de dramaturgia, a saber: Marvin Carlson e Roselee Goldberg.

A razão pela qual se faz necessária essa espécie de parênteses pelo universo da performance, esse deslizamento para dentro de tal universo se dá uma vez que a performance em seu amplo leque de ações e sua densa rede de conexões interdisciplinares, provoca uma nova lógica dramatúrgica, centrada principalmente no performer e em seu corpo. E de certa forma, pode agir como uma espécie de ponte que levará ao pensamento e à pratica da dramaturgia na dança contemporânea.

Rompendo radicalmente com o texto escrito e falado como elemento central, a performance traz para a cena o corpo em evidência. Um corpo autorreferente, que não interpreta um personagem em um tempo específico determinado, mas é essencialmente “si mesmo”, aqui e agora.

Carlson (1996) argumenta que a performance é um campo complexo e variável, que se conecta com todo campo de arte possível. Em sua busca por uma subjetividade e identidade contemporânea, ela se relaciona com as estruturas de poder, questões de gênero, raça, etnicidade, dentre outras.

Autores variam quanto a um possível marco inicial da arte da performance, mas há um acordo quanto a sua herança das vanguardas históricas europeias. Goldberg (1996) aponta os futuristas e os

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construtivistas russos como pais da Performance Art que floresceu na América do Norte, no Japão e na Europa ocidental nos anos 1960 e 1970. Para Carlson, esse fenômeno tem relação próxima com a Arte Conceitual de Marcel Duchamp, que, em 1913, definiu o performer "como aquele que seleciona material ou experiência para apreciação estética, ao invés de formar algo a partir da tradicional gama de matéria prima" (GOLDBERG,1996, p. 101), uma abordagem que o levou a sua primeira exposição de objetos já existentes ou ready-mades.

O uso do espaço cumpre também uma função significativa na performance, o trabalho a partir de composições em site-specifics leva o público para espaços inusitados como barcos, cafés, galerias, parques, terraços e assim por diante. Esse novo uso do espaço resulta, por sua vez, em uma relação particular com o público, que pode ser conduzido a novos pontos de vista, ou, ainda, a participar ativamente das performances a que assiste, sendo muitas vezes o público o próprio performer da cena.

Tal inversão/alternância de papeis, performer-público-performer, implica em uma flexibilidade, em um deslizamento de atitudes. Performers como Marina Abramovic, Meredith Monk, Joseph Beuyes, Vito Acconci, dentre outros convidaram o público não somente a completar a dramaturgia de suas cenas, mas, muitas vezes, a construir tal dramaturgia.

Em Seven Easy Pieces, por exemplo, obra de Abramovic a partir de sete performances, sendo cinco de outros artistas, e duas de sua própria autoria, a artista convida o público a experimentar sete trabalhos diferentes em um museu, durante sete dias consecutivos, com a duração de sete horas cada. No vídeo filmado pela cineasta Babete Mangolte, em 2005, no Guggenheim Museum, pode-se observar o percurso de Marina, que começa com a obra Body Pressure de Bruce Nauman, de 1974. Com o objetivo de ilustrar, ainda que brevemente, de que modo o corpo prevalece no universo performático e, consequentemente, como esse domínio viria ampliar transformar a dramaturgia contemporânea, uma pequena análise de tal evento será realizada.

Na performance de Nauman, que abre a maratona performática da artista búlgara, Abramovic é instruída a pressionar seu corpo em um painel de vidro nas mais diversas formas e posições. A artista fala em alguns momentos: “[…] isso pode tornar-se um exercício muito erótico” (MANGOLTE, 2007, tradução minha)8. O público que percorre as galerias do museu observa de perto ou de longe tal

experimento, que dura sete horas.

No dia seguinte, Abramovic realiza Seed Bed, obra de Vito Acconti, de 1972, ação que consiste em uma automasturbação contínua da artista, escondida no subsolo de um palco redondo, no hall central do museu. As pessoas que caminham ou sentam sobre o chão onde se esconde Abramovic

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podem escutá-la através de um sistema de microfonia, que amplia o som por todo o espaço do museu. Como no dia anterior, a performance dura sete horas ininterruptas.

No terceiro dia, é a vez de Action Pants: Genital Panic, obra da artista austríaca Valie Export, datada de 1969. Nessa obra, Abramovic veste uma roupa que remete a um guerrilheiro, calças e jaqueta de couro preto, segurando uma metralhadora em suas mãos, com a vagina completamente exposta através de um corte em suas calças. Pânico genital, nenhuma palavra é dita durante todo período, por vezes, lágrimas escorrem pelo rosto da performer.

O quarto e o quinto dias seguem com uma performance de Gina Pane, The Conditioning (1973) seguido de How to Explain Pictures to the Dead Hare (1965), de Joseph Beuys9. A quarta performance

consiste em um ato de resistência onde Abramovic se deita sobre uma estrutura semelhante a uma cama de ferro, que está disposta sobre uma série de velas acesas. Suando copiosamente, a performer se impõe a suportar o extremo aquecimento da estrutura. Ocasionalmente, ao derreterem-se, Abramovic se levanta e as troca por novas velas.

No quinto dia, a performance de Beuys, uma das mais teatrais da coletânea, implica em uma série de ações da performer com um coelho morto em suas mãos. Com a face coberta por mel e folhas de ouro, a artista cochicha ao ouvido do animal morto palavras incompreensíveis, morde suas orelhas, balança-o em seus braços como se ninando um bebê.

Finalizando o sexto e o sétimo dias, ela realiza duas de suas próprias obras, Lips of Thomas (1975) e Entering to the Other Side (2005), respectivamente. Na primeira performance, Abramovic desenvolve uma série de ações de forma ritualística, desafiando seus limites físicos. Ela começa consumindo um quilo de mel, seguido de um litro de vinho. Depois, ela quebra a taça de vinho em sua mão. A seguir, com uma lâmina de barbear, ela começa a desenhar em sua barriga um corte que culminará na estrela de cinco pontas. A ação também incluía o ato de chicotear as próprias costas e depois deitar-se sobre elas, com o ventre e as costas sangrando em um grande bloco de gelo.

Finalmente, na última ação que ocorre no sétimo dia, durante a noite, do evento/mostra/coletânea, a performer coloca-se em um vestido/instalação de dimensões enormes, permanecendo parada, abrindo os braços ocasionalmente, olhando para o público, em silêncio. Minutos antes das doze horas da noite, hora prevista para o encerramento do evento, Abramovic fala baixinho:

9 Joseph Beuys (1921-1986) teve um papel fundamental no desenvolvimento da Performance no século XX. O artista

alemão desafiou as convenções da escultura com a utilização de materiais não ortodoxos, tais como substâncias biodegradáveis e animais mortos. Beuys avançou irrevogavelmente nas fronteiras artísticas de seu tempo, declarando que qualquer um é artista, e cunhou o termo escultura social, propondo um programa anárquico de transformação da sociedade.

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Por favor, feche seus olhos, por favor. Imagine. Eu estou aqui, e agora. Você está aqui, e agora. Não existe tempo.

Você está aqui e eu também estou aqui e passarmos tempo juntos, é milagroso. A distorção do tempo e espaço é a gravidade e nós estamos compartilhando esse mundo e vivendo juntos (MANGOLTE, 2007, tradução minha).10

Ainda que suscinta, tal descrição parece ser suficiente para percebermos o teor provocativo, íntimo e ao mesmo tempo expositivo dessas sete ações. Com isso, também se evidencia o caráter subjetivo, político e visceral que é possível perceber em muitos atos de performance, não só nessas selecionadas e agrupadas por Abramovic em Seven Easy Pieces, mas em grande parte dos trabalhos de performance, desde suas origens aos dias atuais.

Desse modo, nessa espécie de curadoria/apropriação de diversas performances, reunidas no período de uma semana, a performer expõe o corpo, seu corpo, mas acima de tudo, o corpo humano, com suas resistências, fragilidades e contradições, provocando em seu público uma série de experiências inusitadas, chocantes e contundentes, ao mesmo tempo que rememora, preserva e proporciona uma releitura de obras marcantes da Performance Art das décadas de sessenta e setenta do século passado.

10 No original: “Please close your eyes, please. Imagine. I am here, and now. You are here, and now. There is no time. You are here, and also I am here and spending time together is something miraculous. A distortion of time and space is gravity, and we are sharing that world and living together”.

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Figura 3: Marina Abramovic em Body Pressure, 1974, obra de Bruce Nauman. Foto: Kathryn Carr.

Fonte: Marina Abramović Archives and Sean Kelly Gallery, 2007.

Figura 4: Seed Bed, 1972, obra de Vito Acconti. Foto: Kathryn Carr. Fonte: Marina Abramović

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Figura 5: Marina Abramovic em Action Pants: Genital Panic, 1964, obra de Valie Export. Foto:

Kathryn Carr. Fonte: Marina Abramović Archives and Sean Kelly Gallery, 2007.

Figura 6: How to Explain Pictures to the Dead Hare, 1965, de Joseph Beuys. Foto: Kathryn Carr.

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Figura 7: The Conditioning, 1973, de Gina Pane. Foto: Kathryn Carr. Fonte: Marina Abramović

Archives and Sean Kelly Gallery, 2007.

Figura 8: Lips of Thomas, 1975, de Marina Abramovic. Foto: Kathryn Carr. Fonte: Marina Abramović

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Figura 9: Entering to the Other Side, 2005, de Marina Abramovic. Foto: Kathryn Carr. Fonte: Marina

Abramović Archives and Sean Kelly Gallery, 2007.

Ainda sobre tal evento, Mangolte (2014) declarou, em uma conversa no Centre George Pompidou, que, ao filmar Seven Easy Pieces de Abramovic, a cineasta se via muitas vezes atraída pelas expressões do público. É visível no filme da cineasta francesa como as reações da plateia são variadas. É nítido o esforço do público para completar, atribuir sentido ao que vê, em momentos em que a performer deliberadamente atribui ao público essa função.

Várias seriam as performances que poderiam ser mencionadas nesta parte da pesquisa. A escolha de Seven Easy Pieces está relacionada sobretudo à variedade de tessituras dramatúrgicas presentes na obra. De fato, as dinâmicas que emergem de forma intensificada nas propostas de performers do século

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XX e XXI – dentre elas as de Abramovic na coletânea em questão – exigem uma abordagem dramatúrgica específica, em que o espaço e o público passam a guiar/ser guiados como coautores, juntamente com o artista. Essa coautoria, que delega ao público muitas vezes a função de construir sua própria dramaturgia é apenas uma das atribuições ao amplo conceito de dramaturgia, que desliza entre a dança, o teatro e a arte da performance.

Ao descrever tais performances é perceptível que, ao apresentar as outras três vigas propostas nesta tese, há uma limitação em relação à reflexão sobre suas teorias. No entanto, chegando na quarta viga, foi necessário partir para um olhar sobre a prática da performance. Aqui se percebe um deslizamento, uma transição para um fazer dramatúrgico da dança contemporânea, que passa por essa estrutura, por esse edifício teórico com suas vigas, sejam elas estáveis ou deslizantes, e caminha de um pensar sobre a ampliação da dramaturgia em direção a uma ampliação da dramaturgia.

Desse modo, são tantas as possíveis manifestações que permeiam a noção de dramaturgia que ela acaba muitas vezes por se esvaziar. Assim, se existe uma função de dramaturgia do público, do espaço e do bailarino, para citar apenas alguns exemplos, é possível reconhecer algo como a dramaturgia quântica? Ou ainda, voltando a uma das questões iniciais que nortearam esta tese, é possível reconhecer uma dramaturgia especifica da dança?

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SEGUNDO CAPÍTULO

Sobre Corpos Modernos e a Dança Contemporânea

“A história da dança não se circunscreve unicamente em uma figura anatômica artisticamente definida, mas toma a forma de um espaço onde se dialoga e se escuta as mutações da arte e da sociedade” (FOULKES, 2002, p. 20).

Seguindo o percurso proposto, adentra-se no segundo capítulo. Se no primeiro capítulo foi realizada uma breve revisão do histórico percorrido pelo teatro, passando pela Performance Art, em busca de identificar e reconhecer novas possibilidades de dramaturgias da cena, neste momento é fundamental olhar para semelhante percurso no campo da dança. No entanto, ao pesquisar as possíveis vigas dessa estrutura que é a dança cênica ocidental, é perceptível uma paisagem que mais se assemelha a um plano rizomático – segundo o modelo epistemológico de Deleuze e Guatarri (2011) – do que a um edifício vertical. De fato, o percurso percorrido pela dança, que atravessa os séculos XVIII, XIX e XX, chegando ao XXI, tem uma formação híbrida com ligações com o teatro, as artes marciais, a ciência e as artes visuais, dentre outras disciplinas, exibindo uma paisagem ampla e horizontal, uma rede com raízes que se espalham, sobrepondo-se e interpenetrando-se. Aqui, nessa busca por um mapeamento rizomático, propõe-se capturar sincronias nas quais normalmente são percebidas diacronias.

Desse modo, apresenta-se uma espécie de voo panorâmico, olhando por cima e por dentro, ora se aproximando com rasantes mais baixas, como zooms fotográficos, das principais referências, ou imbricamentos – pensando ainda nessa trama rizomática –, ora se afastando com voos mais altos, se distanciando de acordo com um recorte que parece mais apropriado a encaminhar para o terceiro, quarto e quinto capítulos, que, por sua vez, irão analisar os três casos específicos escolhidos a fim de verticalizar essa pesquisa.

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Neste capítulo, algumas das categorias ou olhares vigentes sobre a dramaturgia são revistos: tais com a dramaturgia do espaço, da luz, do corpo etc., para possibilitar a percepção do extremo emaranhado semântico e a confusão terminológica do conceito em questão. Para tal, um novo recuar será necessário para poder avançar. Olhar para o passado para buscar compreender o presente, resgatar, na modernidade, de que modo se deu a origem da ampliação da noção de dramaturgia que se pode perceber a partir da dança moderna e mais visivelmente na dança contemporânea.

2.1 Cartas para a Posteridade

Se, ao olhar para a gênese da dramaturgia do teatro foi necessário retomar Aristóteles, no que diz respeito à dança não será necessário recuar tanto, não que a dança da época aristotélica não seja relevante mas, para o escopo dessa pesquisa é necessário regressar apenas a 1760, ano em que o bailarino e coreógrafo francês Jean-Georges Noverre (1727-1810) publicou o volume Cartas sobre a Dança. O que Noverre propôs em seu livro é considerado uma fundamental ampliação das possibilidades de se pensar e de fazer a dança cênica clássica vigente.

Naquela época, a dança cênica hegemônica era o balé de corte, realizada pela e para a realeza, enquadrada em uma poética mecânica do movimento, sob vestimentas pesadas que dificultavam tremendamente a movimentação dos dançarinos. Assim, o que existia em termos de dança cênica eram espetáculos que obedeciam a agendas políticas, que tratavam a dança como entretenimento e campo de comunicação da realeza.

Em seu livro, escrito em um formato epistolar, Noverre clamou por uma nova dança “que veicula significados e emociona” (MONTEIRO, 1998, p. 65), batizada pelo coreógrafo como balé de ação. Tal balé proposto pelo mestre francês condenava o uso de máscaras, o excesso de simetria, a mecanização dos movimentos e a incoerência entre as partes. Para Noverre a dança deveria ser uma arte autônoma, ter lógica, respeitar a verossimilhança, compor a partir de um percurso com início, meio e fim, com alma e emoção, antes de técnica e virtuose, dentro de uma lógica que reconhece e muito se assemelha à poética aristotélica.

A partir de então, atravessando os séculos em ciclos alternados em que a expressividade se sobrepunha à técnica e vice-versa, a dança cênica foi construindo um percurso no qual, independente

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da estética dominante, o movimento era sempre relacionado a corpos treinados, aptos a realizar aquilo que o corpo comum não seria capaz de fazer.

Guia de muitos coreógrafos que o sucederam, Noverre deixou um documento importante para o pensamento da prática da dança. Salvo exceções, os bailarinos e coreógrafos raramente compartilhavam suas pesquisas e reflexões em manuais e livros pra posteridade.

Figura 10: Cartas sobre a Dança e Sobre os Balés, 1760, de Jean-Jacques Noverre. Folha de Rosto.

Foto: autor desconhecido. Fonte: Open Library, 2015.

Outro exemplo de coreógrafo que compartilhou um manifesto artístico e compõe, juntamente com Noverre, essa rede que vai tecendo o horizonte da dramaturgia na dança, foi o russo Michel

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Fokine, originalmente Mikhael Mikhaylovich Fokine (1880-1942). Bailarino e coreógrafo, um dos mais importantes da companhia de Serge Diaghlev11 (1872-1929), o Ballet Russes12. Não seria possível

criar esse mapa rizomático da dança moderna ocidental, sem se aproximar de Fokine por um momento. Coreógrafo de obras antológicas como A Morte do Cisne (1905), O Pássaro de Fogo (1910) e Petruchka (1911), Fokine deixou o seu legado não somente em seus balés. Em uma carta escrita em 6 de julho de 1914 para o The Times (London), o coreógrafo expôs um breve e contundente manifesto com moldes para a criação de um “novo balé” (FOKINE apud COPELAND,1983, p. 260). Tal carta consiste basicamente em uma proposta de cinco regras, que vêm a ser resumidamente:

Não formar combinações de passos prontos e estabelecidos, mas criar novos passos expressivos que correspondam à representação do período e da nação caracterizada na cena;

Dança e gestos mimetizados não têm nenhum sentido no balé a menos que sirvam como expressão de sua ação dramática, desse modo não devem ser utilizados como puro entretenimento, sem conexão com o tema geral da obra em questão;

O novo balé admite o uso de gestos convencionais somente quando forem necessários ao estilo da obra e, em todos os casos, tais gestos devem ser executados pelo corpo todo não apenas pelas mãos do bailarino, que por sua vez deve ser um todo expressivo;

A expressividade do grupo, do coletivo na dança deve ser prioridade. Ao contrário dos balés antigos, nos quais o corpo de baile era visto quase como um ornamento, espécie de cenário dançante, o novo balé deve dar maior importância ao corpo coletivo;

A aliança da dança com outras artes: o novo balé deve se recusar a ser escravo da música ou do cenário e, ao reconhecer essa aliança com as outras artes em nível de igualdade, permitirá uma maior liberdade a todos os artistas envolvidos no processo de criação (FOKINE apud COOPELAND, 1983, p. 260, tradução livre da autora).

Em um de seus célebres balés, Les Sylphides, originalmente chamado Chopinianas, estreado em 1909 no Théâtre du Châtelet em Paris, Fokine propôs uma nova releitura de um balé branco13, em um

ato, a partir de uma música já existente de Chopin. Tal balé era formado por um corpo de baile de

11 Serge Diaghlev, empresário artístico russo e fundador da Companhia Ballet Russes. Trabalhou com os maiores artistas de

sua época, como Pablo Picasso, Aleksandre Benoir, Igor Stravinski, Vaslav Nijisnky, dentre outros; foi o grande impulsionador da arte russa no ocidente.

12 Ballet Russes é uma companhia de balé emigrada da Rússia, com sede na Europa, fundada e dirigida por Diaghlev, no

período de 1909 a 1929. Rompeu inúmeros paradigmas da dança clássica vigente e exerceu grande influência na dança clássica e moderna ocidentais de gerações por vir.

13 Balé branco era a denominação dos balés românticos, principalmente os segundos atos de seus espetáculos, nos quais prevalecia o uso de figurinos de tule branco, ou seja, os tutus românticos.

Referências

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