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TERCEIRO CAPÍTULO Vaslav Nijinsky: Pré-Pós-Moderno

3.4 O Crime de Nijinsky e a Coreografia de Autor

Nas palavras de Jean Cocteau para o programa de Fauno na temporada dos Ballets Russes em Paris:

[...] um fauno cochila; as ninfas o seduzem; uma echarpe esquecida satisfaz seu sonho; a cortina é abaixada para que o poema comece dentro de todas as memórias (COCTEAU apud DUMAIS-LVOWSKI, 2009, p. 7).49

48 Por narrativa entenda-se a acepção de Sodré: “[...] discurso capaz de evocar, através da sucessão de fatos, um mundo dado como real ou imaginário, situado num tempo e num espaço determinados. Na narrativa distingue-se a narração (construção verbal ou visual que fala do mundo) da diegese (mundo narrado, ou seja, ações, personagens, tempos). Como uma imagem, a narrativa põe diante de nossos olhos, nos apresenta, um mundo” (SODRÉ, 1988, p. 75, grifos do autor).

49 No original : « [...] un faune sommeille; des Nymphes le dupent; une écharpe oubliée satisfait son rêve; le Rideau baisse

Um poema musical coreografado, ou seja, um poema coreográfico com duração inferior a dez minutos, cuja construção consumiu cerca de cento e vinte ensaios (HUTCHINSON-GUEST, 2010). Constituído de simples, mas elegantes posições bidimensionais, inspiradas nas figuras de vasos gregos, a coreografia se constituiu pelo uso de frases curtas de movimentos que culminavam em poses. Um trabalho preenchido por pausas e com uma evidente economia de deslocamentos no espaço, contrastando dramaticamente com a música fluída e lânguida de Debussy.

Figura 27: Referências Helenísticas em um vaso, séc.III. Foto: fotógrafo desconhecido. Fonte:

Estudando Arte e Cristianismo, 2015.

Um fauno se reclina sobre uma paisagem rupestre, meio homem, meio animal, uma figura humana com chifres, cauda e pernas de bode, toca uma flauta, sozinho. Ele para, observa, afasta a flauta de sua boca, repousa-a no chão, eleva-se e caminha em direção a um farto cacho de uvas, recolhe as uvas, simula comê-las. Essa é a primeira cena do balé. Simples, limpo, sem virtuosismo algum e, principalmente, sem nenhum movimento reconhecível de dança para a época.

Figura 28: Nijinsky como Fauno na posição de abertura do espetáculo. Foto: Barão de Meyer. Fonte:

The Red List, 2015.

De fato, esse foi o “crime” de Nijinsky, que declarou: “Eu sou acusado de um crime contra a graciosidade” (apud Homans, 2010, p. 312). O aclamado bailarino, dono do mais potente salto, aquele que foi considerado “o Deus da dança”, apresenta para o público um balé, seu primeiro trabalho coreográfico, que não contém passos de balé, nem solos ou pas des deux.

Conforme o Jornal Le Figaro publicou em 30 de maio de 1912:

Eu estou convencido que todos os leitores do “Figaro” que estiveram ontem no Châtelet aprovarão se eu protestar contra a apresentação bastante especial que pretenderam nos servir como uma produção profunda, perfumada da arte preciosa e de harmoniosa poesia. Esses que nos falam da arte e da poesia, a propósito de tal espetáculo, riem de nós. Isto não é nem um pequeno poema gracioso, nem uma produção profunda. Nós vimos um Fauno inconveniente com movimentos infames de bestialidade erótica e gestos de um pesado impudor (CALMETTE apud DUMAS-LVOWSKI, 2009, p. 44, tradução da autora).50

Esse não era um balé aos moldes existentes da época e, embora já houvesse testemunhado as inovações de Duncan, de Fuller, de Fokine, dentre outras figuras da cena europeia, a plateia francesa estava habituada a ver grandes corpos de baile dançantes em seus figurinos variados, majoritariamente

50 No original: « Je suis persuadé que tous les lecteurs du Figaro qui étaient hier. Au Châtelet m’approuvent si je proteste

contre l’exibition trop sepéciale qu’on prétendait nois servir comme une production profonde, parfumée d’art précieux et d’harmonieuse poésie. Ceux qui nous parlent d’art et de poésie à propôs de ce spetacle se moquent de nous. Ce n’est ni une églogue gracieuse ni une production profonde. Nous avons eu une Faune inconvenant avec de vils mouvements de bestialité érotique et des gestes de lourde impudeur».

formado por bailarinas com sapatilhas de ponta, executando passos de alta sofisticação técnica, bailarinos de porte atléticos que, em um segundo plano, serviam para apoiar e destacar suas parceiras, essas sim, as verdadeiras protagonistas.

Mas não foi isso que Nijinksy ofereceu ao público parisiense. Ao contrário, o que ele propôs foi de uma simplicidade assustadora, nada de virtuoso, nada de cenários espetaculares, nem trocas de roupas magníficas. Sete bailarinas e um bailarino, sete ninfas e um fauno, que falam, ou melhor dançam a provocação, a atração, o sonho e o desejo. Esse, o outro crime do coreógrafo: evocar de forma tão deliberada o desejo carnal. Após recolher em seus braços um lenço da roupa deixada pela Ninfa, que se despe para se banhar, o Fauno retorna sozinho ao seu local de início, uma leve colina ao fundo do palco. Ele caminha carregando o lenço em seus braços, imagem que nitidamente sugere a ação de carregar uma Ninfa em seus braços. Ao chegar no mesmo lugar onde começara o espetáculo, o Fauno estende delicadamente o lenço/ninfa sobre o solo e deita-se lentamente de bruços sobre tal lenço. Nessa posição, Nijinsky – ele próprio, o Fauno – eleva o quadril, colocando sua mão embaixo da pelve e, muito suavemente, simula um orgasmo. Cena final, fecham-se as cortinas.

Figura 29: Nijinsky na posição final do espetáculo. Foto: Barão de Meyer. Fonte: The Red List, 2015.

Entre a cena inicial e a final, corpos que atravessam o palco, que se olham e que se escondem, jamais se tocam, a não ser por um brevíssimo entrelaçar de braços do casal de protagonistas. São

corpos que evocam um jogo de sedução, de proibição e consentimento. Pés que pisam pelos calcanhares, aterrados, corpos de perfil, braços em ângulos geométricos. Faces neutras, esvaziadas de expressividade, mas, ao mesmo tempo, contidas e pulsantes. Tudo milimetricamente concebido e rigorosamente registrado por Nijinsky posteriormente.

O padrão dos coreógrafos de sua e de épocas precedentes era o de construir suas coreografias por meio de uma organização espaço/temporal de passos pré-existentes, dentro de uma estrutura mais ou menos delimitada, que previa momentos de grupos, solos, trios e casais, com prólogos e codas finais. Nijinsky rompeu completamente com tal modelo, ainda que, para isso, contasse com um elenco de formação clássica, que, por sinal, muito estranhava suas propostas.

Esses aspectos fizeram de Nijinsky um autor bastante particular, como aponta Launay:

Nijinsky foi o primeiro a exigir que toda sua coreografia fosse executada não somente como ele a via, mas segundo sua própria interpretação artística. Nenhum balé havia sido jamais ensinado com uma exatidão musical e coreográfica como o de L’après-midi d’un faune. Cada posição, cada movimento do corpo até a ponta dos dedos era organizado segundo um estrito plano coreográfico” (LAUNAY, 2010, p. 48, tradução da autora)51.

51 No original: « Nijinski fut le premier à exiger que toute sa choréographie soi executée non solement comme il la voyait, mais selon sa propre interprétation artistique. Aucun Ballet n’avait jamais été donné avec une exactitude musicale et choreographique comme celle de L’Aprés-midi d’un faune ».

Figura 30: Nijinsky como Fauno e Sokolova como a Grande Ninfa, no momento que entrelaçam seus

braços. Foto: Barão de Meyer. Fonte: The Red List, 2015.

Desse modo, o coreógrafo russo, também em função de sua figura mítica e icônica, cujo personagem do Fauno transformou-se em um desafio e até mesmo um fetiche para muitos bailarinos de futuras gerações, produziu um importante material para a posteridade – uma espécie de equivalente ao Hamlet para os atores de teatro – graças à consistência de seu trabalho artístico e do registro de sua obra. Deixou uma herança para aqueles que desejem analisá-la, estudá-la, remontá-la, ou simplesmente desfrutá-la.