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TERCEIRO CAPÍTULO Vaslav Nijinsky: Pré-Pós-Moderno

3.5 As Portas Abertas para a Contemporaneidade

Chocando muitos e fascinando outros, Nijinsky avançou em um caminho sem volta, que abriu as portas do desejo, da tensão, da evocação – não somente sexual – na cena coreográfica. Sobre tal evento o escultor Auguste Rodin declarou:

Nenhuma personagem mostrou Nijinsky assim tão extraordinariamente quanto a sua última criação de L’après-midi d’un Faune. Nada de saltitações, nada de bom, nada além das atitudes e dos gestos de uma animalidade semiconsciente... Nada mais impactante que seu elã, quando ao desenlace, ele se estende face ao solo, sobre o lenço escondido que ele beija e que ele penetra com o fervor de uma volúpia apaixonada. (RODIN apud DUMAS-LVOWSKI, 2009, p. 44, tradução da autora).52

O Fauno, figura materializada originalmente pelo próprio Nijinsky, se tornou, de certo modo, uma personagem-fetiche para muitos coreógrafos da contemporaneidade. Inúmeros criadores, inspirados pela obra de 1912, assim como pela sua Sagração da Primavera de 1913, criaram versões autorais a partir de obras de Nijinsky. Embora não seja o foco desse capítulo, vale mencionar as célebres versões da Sagração, criadas por Pina Bausch (1975), Maurice Bejart (1959), Luis Arrieta (1985, para o Balé da Cidade de São Paulo), Oscar Arraiz (1987, para o Balé Castro Alves) e Angelin Preljocaj (2001), apenas para citar poucos exemplos, tanto no Brasil quanto no exterior53.

No que diz respeito ao Fauno, da mesma forma um grande número de remontagens e criações a partir de e inspiradas nele também podem ser relembradas. Primeiramente as remontagens feitas na própria companhia Les Ballet Russes de Diaghlev, sob a forma de transmissões orais, como as de Bronislava Nijinska, em 1922, de Leonid Massine, em 1924, de Léon Woizikovsky, em 1939, e Serge Lifar, em 1935, sendo essa útlima, uma versão solo da obra, sem a presença das ninfas. Posterior à dissolução dos Ballets Russes vale mencionar as versões54 – de Massine-Blum Ballet Russes de Monte

Carlo (1933-1955), do Ballet Rambert (1931-1983), de Nijinska e Massine para o Ópera de Paris, em 1976, com Charles Jude no papel do fauno e, em 1979, com a interpretação de Rudolf Nureyev. Finalmente, a remontagem realizada em 1989, no Teatro San Carlo, em Nápoles, sob a direção de Anne Hutchson (essa, de todas, é a mais próxima da versão original, feita a partir das notações de Nijinsky, já anteriormente mencionadas).

52 No original: « Aucun rôle n’a montré Nijinski aussi extraordinaire que sa dernière création de “L’Après-midi d’un faune”. Plus de saltations, plus de bons, rien que les atitudes et les gestes d’une animalité à demi-consciente... Rien n’est plus saisissant que son élan, lorsque’au dénouement, ils s’étend la face contre térre, sur la voile dérobé qu’il baise et qu’il étreint avec la ferveur d’une volupté passionnée ».

53 Em 2014, a coreógrafa francesa Dominique Brum estreiou o balé Sacre #197, cujo número 197 remete à quantidade de versões realizadas a partir da primeira versão de 2013, de Vaslav Nijinsky.

54 Por “versões” não entender “remontagens”, uma vez que tais obras seguiam a tradição de transmissão oral e, raramente, possuíam registros da versão original de Nijinsky. Desse modo, uma versão seria uma nova obra, inspirada em uma montagem original, mas com aspectos autorais, enquanto uma remontagem seria uma reconstrução, mais próxima da versão original possível.

O alcance e a reverberação da obra de Nijinsky não atingiu somente o contexto do balé clássico. Artistas e grupos de dança contemporânea também se aventuraram a propor suas próprias versões e remontagens. A obra de Nijinsky tem, ainda, notável importância histórica. Um exemplo foi a atenção especial dada à sua obra no evento Un Noveau Festival55, de 2014, realizado pelo Centre Georges

Pompidou, em Paris, cujo tema estava relacionado à memória da dança56. De fato, durante um dia

inteiro, palestras, debates e vídeos de dança foram dedicados ao Fauno de Nijinsky.

Nesse sentido, é interessante descrever um dos vídeos que tomou grande parte desse dia dedicado à Nijinsky, justamente pela ampliação que tal obra propõe a partir do material de Nijinsky: a obra intitulada Faune(s), do coreógrafo Olivier Dubois (2008).

A criação de Dubois, Faune(s), estreou no Festival d'Avignon em julho de 2008 e reuniu quatro colaboradores: Dominique Brun, Christophe Honoré, Sophie Perez e Xavier Boussiron. A primeira parte, resultado da colaboração de Dubois e Honoré, consiste em um vídeo em preto e branco, um curta-metragem. Nele, assim como nas outras três subsequentes, o próprio Oliver interpreta o fauno. No vídeo, ele é uma espécie de “fauno urbano” que se esconde para observar quatro rapazes que jogam tênis em uma quadra aberta. Imediatamente é possível fazer a analogia: os rapazes seriam as ninfas nessa versão, que se despem durante o jogo. Ao perceberem que são observados, tiram suas camisas, provocam, seduzem o fauno.

Nesse trabalho, Dubois não utiliza a música de Debussy, nem tampouco movimentos de dança que remetem à coreografia de Nijinsky. Na verdade, não há nesse vídeo sequer um movimento de dança, de estilo algum. Desse modo, o que faz com que a referência à obra de Nijinsky seja percebida, além da analogia homem/fauno, rapazes/ninfas já mencionados, é somente o fato de tal peça fazer parte de um conjunto maior que se assume inspirado pelo Fauno.

A temática homossexual e o voyeurismo prevalecem nessa criação que, segundo o próprio Dubois, está mais relacionada com a ideia de perverter do que reverenciar a obra original; ou seja, trata-se, na opinião do autor, de transmitir e de transformar, uma vez que para o coreógrafo francês a ideia de perverter é também uma maneira de fazer existir (DUBOIS, 2014).

A segunda parte do trabalho acontece em um palco italiano (registrado em vídeo) e é consagrado por ser uma adaptação integral da obra de 1912, com o figurino criado conforme o original. Nessa

55 “Un Nouveau Festival desde sua primeira edição em 2009, o Nouveau festival é uma plataforma de expressão e produção, um laboratório de novas formas de criação” (CENTRE POMPIDOU, 2014, tradução minha). No original: « Un Noveau Festival Depuis sa première édition en 2009, le Nouveau festival est une plateforme d’expression et de production, un laboratoire des nouvelles formes de création ».

56 A quinta edição desse Festival chamou-se Art de l’oubli e teve como foco principal trabalhos de dança contemporânea,

reconstituição pode-se observar as sete ninfas, o fauno, o cenário e a música de Debussy, a partir da versão de Dominique Brun, que, por sua vez, trabalhou com as notações de Nijinsky, decodificadas por Anne Huchtson-Guest et Claudia Jeschke, já mencionadas.

Se, por um lado, essa versão é idêntica à de Nijinsky, por outro, ela é muito diferente do original. Essa contradição acontece uma vez que o fauno, não tem a bela e elegante figura do bailarino russo. Ao contrário, o bailarino e coreógrafo francês Olivier Dubois tem constituição bem mais corpulenta do que a de Nijinsky. Tal diferença não é sutil, não passando desapercebida. Na verdade, ela é reforçada pelo figurino colante vestido pelo bailarino. Novamente, nessa segunda parte do espetáculo, há também uma perversão, uma provocação ou, até mesmo, uma paródia. Aqui, ao contrário do projeto simbolista de Nijinsky, que buscava diminuir o ego do bailarino em prol do todo, do conjunto, existe uma escolha dramatúrgica extremamente narcisista, que coloca em evidência o sobrepeso do bailarino, quase como um deboche. Ou como um desafio estético, uma vez que toda movimentação coreográfica é muito bem executada, o sobrepeso referido não se apresenta de modo algum como um obstáculo. A versão de Dubois carrega uma intenção latente, como se dissesse que a gordura não o impedirá de ser um fauno, ao modo de Nijinsky, e que a seu modo também pode ser belo.

Figura 31: Olivier Dubois na segunda cena do espetáculo Faune(s). Foto: Michel Gangne. Fonte:

Figura 32: Dubois e elenco na segunda cena de Faune(s). Foto: Michel Gangne. Fonte: AFP/Getty

Images, 2015.

A terceira parte mantém o mesmo cenário da segunda, a floresta do fauno, a partir dos desenhos de Bakst, mas agora uma outra personagem aparece, uma figura estranha, novamente interpretada por Dubois, vestida com uma roupa típica da Bavária (suspensórios, chapéu e calcas curtas) e um grande e curioso instrumento de sopro, nada de raro, não tivesse ele mãos enormes, como de um lobisomem. No meio do palco, tal figura ora assopra, sem tocar, o instrumento, ora executa passos de jazz, ora reproduz alguns movimentos de braços da obra original de Nijinsky, ora fala textos ao microfone, tudo de forma bastante eclética e caótica.

Figura 33: Dubois na Terceira cena do espetáculo Faune(s). Foto: Michel Gangne. Fonte: AFP/Getty

Images, 2015.

Em um determinado momento, tal personagem coloca uma máscara que o faz parecer com Diaghlev, então, o bailarino começa a executar uma sequência de passos elaborados e saltos de balé clássico de alto grau de dificuldade. Ao final da cena, ele pega um vaso de louça chinesa, inverte-o com a boca para o chão e despeja uma gosma que parece uma espécie de placenta animal. A cena termina em um blackout.

Na quarta e última parte desse vídeo, Dubois retorna ao palco. Dessa vez ele está nu sob um casaco de peles longo. A música tem um ar de trilha de cinema de ficção científica, o bailarino rola no chão como se estivesse metralhando um inimigo imaginário. Ao final dessa cena surreal, Dubois encontra-se totalmente despido no palco, sobre uma montanha de casacos de peles e com um par de chifres em sua cabeça.

Figura 34: Dubois na quarta e última cena do espetáculo Faune(s). Foto: Michel Gangne. Fonte:

AFP/Getty Images, 2015.

A versão de Dubois é, enfim, geradora de uma verdadeira transformação da obra de Nijinsky. Se limitaria ela a uma paródia? Segundo Tiphaine Samouyault (2010, p.38, tradução minha):

A paródia transforma uma obra precedente, seja por lhe transformar em caricatura; seja por reutilizá-la através da transposição. Mas, que ela seja transformada ou deformada, ela exibe sempre uma ligação direta com a literatura existente. As definições especializadas, as definições de dicionários que registram o senso comum e suas depreciações, notadamente pejorativas: “Imitação burlesca de uma obra séria. Fig. Falsificação ridícula (Petit Robert);

“Imitação grosseira que não restitui certas aparências (Trésor de la langue française); “O melhor parodiador é sempre abaixo do modelo”(Grand Larrousse du XIX siècle). Contra o senso comum, as definições do discurso teórico rendem à paródia seus aspectos específicos que não implicam necessariamente seu caráter menor, relacionada a essa mistura de dependência e de independência que faz toda a ambivalência da paródia.57

Mas não foi somente por meio de versões paródicas que a dança contemporânea se apropriou do Fauno de Nijinsky. Outros trabalhos também foram apresentados e debatidos no Festival, dentre eles o do coletivo francês Quator Albrecht Knust, intitulado … d un Faune (éclats!), do ano de 2000. Nessa obra, o coletivo de bailarinos de dança contemporânea experimentou, a partir das notações de Nijinsky, uma série de possibilidades coreográficas. Os fragmentos (éclats) de tal trabalho foram exibidos no Festival Francês através de trechos filmados de tais experimentações. Em um deles, por exemplo, o fauno é interpretado por uma bailarina que está vestida com roupas cotidianas e tênis de corrida, sem qualquer referência ao cenário nem ou ao acompanhamento musical. Nessa versão, o material de Nijinsky é reduzido somente aos movimentos coreográficos. Em outro trecho, tem-se a inversão por completo, a mesma bailarina da cena anterior segue interpretando o fauno, mas agora ela dança com um outro bailarino, que por sua vez faz o papel de uma ninfa. Novamente não há referências ao cenário, figurinos ou música.

Através das reduções ou destilações mencionadas, o coletivo buscou desconstruir a dramaturgia de Nijinsky a fim de potencializar um de seus aspectos centrais, ou seja, o movimento. Transformando o material coreográfico em uma fonte inesgotável de experimentações criativas, esse coletivo problematiza a noção de originalidade assim como a noção de autoria em dança.

57 No original : « La parodie transforme une œuvre précédente; soit pour le caricaturer; soit pour la réutiliser en la

transposant. Mais qu'elle soit transformation ou déformation, elle exhibe toujours un lien direct avec la littérature existante Les définitions non spécialisées, les définitions de dictionnaires qui enregistrent les sens commun en sont dépréciatives, sinon nettement péjoratives: “Imitation burlesque d’une œuvre sérieuse. Fig. Contrefaçon ridicule” (Petit Robert); “Imitation grossière qui ne restitue que certaines apparences” (Trésor de la langue française); “Le meilleur parodiste est toujours au-dessus de son modèle” (Grand Larrousse du XIX siècle). Contre le sens commun, les définitions du discours théorique rendent à la parodie ses traits spécifiques qui n' impliquent pas nécessairement son caractère mineur, lié à ce mélange de dépendance et d’indépendance qui fait toute l'ambivalence de la parodie ».

Figuras 35, 36, 37 e 38: Quatour Albert Kunst em cena de ...d'un Faune (éclats!). Foto: Laurant

Philippe. Fonte: Divergence Images, 2015.

Ao refletir sobre esses dois casos, que escavaram e desdobraram a obra de Nijinsky, alguns aspectos importantes podem ser reconhecidos. Se, por um lado, a partir deles, é possível perceber de maneira mais detalhada as topologias e tensões internas do fauno de Nijinsky, por outro, tais desdobramentos levantam uma série de questões relacionadas com a noção de originalidade e de autoria em dança: os materiais coreográficos, seus rastros e suas latências, a questão das citações e da

transmissão oral e a de intertextualidade58. Todas essas questões estão, por sua vez, intrinsecamente

ligadas à dramaturgia na dança, seja ela clássica, moderna, pós-moderna ou contemporânea.

Desse modo, se Nijisnky pode ser considerado como um precursor da autoria em dança, paradoxalmente, e em sintonia com a poética simbolista – Mallarmé entre seus maiores representantes – ele coloca a linguagem à frente do autor, por meio de uma radical subversão dos códigos do balé clássico e compartilhando com o público a construção da obra. Em outras palavras, Nijinsky propõe a sua criação não como manifestação de sua subjetividade, simplesmente, mas como processo de catalisação de tensões e forças que estão além do indivíduo. De acordo com a poética simbolista, o artista é visto como um canal que capta tensões e materializa experiências. Mas esse processo está acima do que pode ser gerado pelas vivências individuais, trata-se de um mergulho em uma dimensão simbólica que pretende ser universalizante. Ao executar tal operação, portanto, confrontando ao mesmo tempo autoria e impessoalidade, Nijinsky antecipa, de certo modo, as elaborações feitas por Barthes em A Morte do Autor (BARTHES, 2004), abrindo caminho para as práticas e reflexões contemporâneas sobre a dramaturgia na dança. Dramaturgia vista assim como construção de sentido que dissolve e reinventa códigos artísticos tornando permeáveis as fronteiras entre artista e público.

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