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QUARTO CAPÍTULO Trisha Brown: Ilhas De Sentido

4.4 Dança Performativa e Dramaturgia de Presença

“I Think you've got to take me in parts, I work in cycles” (Trisha Brown, 2004).

Para a atual codiretora artística da Trisha Brown Dance Company, Carolyn Lucas65, “Brown é

uma coreógrafa extremamente detalhista, cria em seu corpo todo seu vocabulário coreográfico, seus passos nunca se repetem e suas instruções para os bailarinos são absolutamente rigorosas” (LUCAS, 2013). Em seus momentos de criação, Lucas descreve Brown como um vulcão em erupção, cujos movimentos escorrem num fluxo contínuo de seu corpo. Nos anos oitenta, através de um recurso batizado como throwing and catching (lançando e pegando), Brown lançava os movimentos para os bailarinos que pegavam da melhor maneira que podiam e, a partir disso, ela ia definindo as frases coreográficas que compunham suas obras, todas não representativas, puramente abstratas (LUCAS, 2013).

Coreógrafa e artista visual há mais de quarenta anos, Brown mantinha66 em sua companhia um

vasto repertório exclusivamente de sua autoria. Em constante reflexão sobre seu percurso, a coreógrafa dividiu sua trajetória em ciclos67, cujos títulos nem sempre foram atribuídos por ela mesma. Em cada

um de seus ciclos, é possível perceber um fio condutor que permeia as obras de cada fase. Nos dois primeiros ciclos, por exemplo, The Equipmemt Pieces e Accumlation, respectivamente, vindos imediatamente após sua ruptura com os experimentos na Judson, pode–se observar, de forma bastante nítida, as matrizes e fontes de estímulos para seus trabalhos. Ainda que em suas obras mais recentes ela tenha se mantido fiel à sua lógica característica e experimental de movimento, seus dois primeiros ciclos criativos são aqueles que permitem perceber, em maior grau, o ineditismo e a ousadia de suas propostas coreográficas, por isso, também se justifica a escolha de peças provenientes desses ciclos para análise nesta tese.

Em Men Walking Down the Side of the Building, por exemplo, peça que faz parte de seu primeiro ciclo, período que investe no uso de equipamentos e de espaços alternativos para composição de seus experimentos coreográficos, Brown escolheu um típico prédio nova-iorquino no bairro onde vivia e atuava a vanguarda artística de Manhattan nos anos sessenta/setenta, do século passado: o Soho. O título explica de forma literal do que trata a obra, um homem que desce a lateral do prédio. Como se sabe, lagartixas descem laterais de prédios, homens não. No entanto, Brown não quer ser encaixotada, nem tão pouco quer que lhe imponham limites, assim, desafiar a gravidade, propor novas e inesperadas perspectivas do uso do espaço, a ocupação de sítios urbanos e a redução essencial de movimentos

65 Carolyn Lucas é membro da companhia desde 1984, atual diretora artística associada da Trisha Brown Dance Co.

66 Embora Trisha Brown ainda esteja viva, encontra-se afastada da direção de sua companhia por motivos de saúde.

67 Alguns dos ciclos de Trisha são: The Equipment Pieces, Estruturas Moleculares Instáveis, Accumulations, Valiant

foram algumas das propostas desenvolvidas por ela em seus trabalhos. Tais propostas seguramente podem ser vistas na obra em questão.

Figura 39: Men Walking Down the side of a building. Foto: Carol Golden, 1970. Trisha Brown

Company, 2015.

Após o período que marca o trabalho feito pelo coletivo na Igreja Judson, a coreógrafa americana partiu em busca de uma total separação do comportamento da dança. “Nothing to hide behind” – ela provoca, assim, em uma de suas longas entrevistas para a coreógrafa Emanuelle Huynh (BROWN apud HUYNH, 2014, p. 70). De fato, sem se esconder sob técnicas corporais estabelecidas, figurinos, cenários, músicas ou iluminação artificial, a artista convidava o público a assistir às “atividades ordinárias em circunstâncias extraordinárias” (Idem, Ibidem, p. 70).

Perturbando o uso do espaço e a perspectiva cotidiana da metrópole, Brown apresentou à plateia, de uma fria primavera de 1971, um homem caminhando calmamente, descendo do último andar até chegar ao térreo, preso por um equipamento de alpinismo, perpendicular à parede exterior de um prédio de seis andares. Fazendo uma dança que se deteriorava enquanto acontecia, Men Walking Down the side of a Building deixava no ar apenas suas pegadas, coladas na parede e na memória de quem as presenciou.

Figura 40: Men Walking Down the side of a Building, em versão mais recente com o bailarino Stefen

Petronio em Nova Iorque, 2010. Foto: Andrea Mohin. Fonte: New York Times, 2015.

Em um próximo ciclo criativo, denominado Accumulation (Acumulação), a artista dá início a uma nova lógica, abandonando os equipamentos. Ainda que podendo acontecer em ambientes externos ou internos, sua pesquisa passa a valer-se exclusivamente de seu corpo e dos corpos de seus intérpretes. Tal ciclo teve início com o solo Accumulation, interpretado originalmente pela própria Brown, cuja estreia aconteceu em outubro de 1971, em um ginásio da New York University – NYU. Inicialmente, Brown separou três movimentos orgânicos do ser humano – rotação, flexão e extensão – buscando explorá-los ao realizar gestos simples, executados de maneiras diretas, sóbrias, sem nenhuma intervenção de qualidade. A fim de buscar esclarecer e definir, de forma mais precisa, a utilização dos termos gesto e movimento, para que esses não sejam entendidos como sinônimos e, tampouco, utilizados indiscriminadamente. Cabe aqui abrir um parênteses e inserir uma breve problematização sobre tais noções.

Por meio de um estudo que considera os criadores de teatro, mas igualmente da dança, tais como Pina Bausch, Martha Graham e Rudolf Laban, Bonfitto (2002) reconhece aspectos comuns que permitem reconhecer, de forma ampliada, as noções de movimento, ação e gesto. Seguindo o seu

raciocínio, pode-se entender o movimento, executado, no caso, pelo artista da cena e, portanto, também do bailarino, como um deslocamento corporal que produz desenhos espaciais. Ao mesmo tempo, a execução, repetição e desenvolvimento de movimentos pode levar a uma conexão psicofísica em vários níveis, o que conduziria à produção, por sua vez, das assim chamadas ações psicofísicas. Ações psicofísicas, portanto, seriam ações que materializam uma conexão psicofísica, envolvendo, portanto, uma articulação entre processos interiores e exteriores do ser humano e, nesse caso, do artista. Já o gesto, é visto como um detalhamento desse processo, que particularizaria os seres ficcionais, diferenciando-os em categorias: como indivíduos, tipos ou atuantes. Nesse último caso, o dos atuantes, depara-se com criações em que o ser ficcional não seria nem um indivíduo, nem um tipo, mas seres que assumem, antes de tudo, uma potencialidade expressiva, funcional a cada obra.

Já em Trisha Brown, tais noções adquirem conotações diferenciadas. Mesmo sem tecer elaborações a respeito das mesmas, Brown, em suas obras, parece, de um lado, utilizar as noções de ação e de movimento como sinônimos. Ela utiliza o termo quando se refere a uma ação, como flexionar, estender ou torcer, por exemplo. Já o gesto, para Brown, poderia ser associado a procedimentos criativos que produzem uma espécie de ruptura, de quebra de expectativa no desenvolvimento das estruturas coreográficas. Ao utilizar como exemplo um gesto de “ajeitar o cabelo” em meio a uma sequência formalmente precisa, que se repete – nesse caso, em Group Primary Accumulation –, Brown instaura uma ambivalência que pretende produzir uma tensão e uma quebra de expectativa, uma vez que, inicialmente, o gesto parece ser acidental. “A bailarina arrumou seu cabelo?”, mas que a seguir, em função de sua repetição, torna-se um gesto deliberado. Tais escolhas dramatúrgicas envolvem oposições tácitas entre forma e não forma, movimento ou ação e gesto (BROWN, 2003).

Desse modo, a partir de tal gramática corporal, Brown foi construindo um roteiro de movimentos e/ou gestos cumulativos, que constituíam um crescendo, rigorosamente coreografados, repetidos e executados, transformados em “quilômetros de movimentos”, em suas próprias palavras (BROWN, 2003).

Figura 41: Trisha Brown em Accumulation with Talking Solo, 1973. Foto: Nathaniel Tileston, 1979.

Fonte: Trisha Brown Company, 2015.

Ainda na primeira versão do solo Accumulation, 1971, (visto que tal obra se desdobrou posteriormente em várias versões), Brown utilizou uma música da banda Greatful Dead, outra novidade desse segundo ciclo, já que, nas obras do primeiro ciclo, nenhuma era acompanhada musicalmente. Mais tarde, Brown acrescentou um texto que era dito por ela enquanto realizava sua sequência de movimentos e gestos. Em seguida, partiu para uma nova experimentação cumulativa, dessa vez deitada no chão, primeiro, novamente sozinha, depois, com outras bailarinas.

Em Group Primary Accumulation, um grupo de bailarinas deitadas em decúbito dorsal, alinhadas lateralmente, executava um novo roteiro de movimentos e gestos acumulados. Novamente, a gramática básica era a mesma: torcer, flexionar e estender. Vestidas iguais, com camisetas e calças brancas, sem acompanhamento sonoro ou musical, as bailarinas desenvolviam uma sequência em uníssono, tão rigorosamente sincronizadas, que pareciam ser apenas uma bailarina multiplicada por um espelho, tamanha a semelhança entre seus corpos e a precisão de seus movimentos.

Figura 42: Group Primary Accumulation, 1973. Foto: Hugo Glendinnig, 2010. Fonte: Trisha Brown

Company, 2015.

Figura 43: Group Primary Accumulation, 1973. Foto: Hugo Glendinnig, 2010. Fonte: Trisha Brown

Figura 44: Group Primary Accumulation, 1973. Foto: fotgrafo desconhecido Fonte: Trisha Brown

Company, 2015.

A pluralidade de tais danças gera uma grande dificuldade, não só para defini-las, mas para perceber o que elas podem revelar. Cecile Roux propõe uma categoria bastante ampla e a denomina como Dança Performativa, na qual:

[...] o corpo dançante é modelado pelos saberes e pelos conhecimentos especializados provenientes segundo os contextos históricos sociais, culturais, filosóficos, científicos e pedagógicos. O corpo é um produto social que se relaciona com códigos, com valores e com culturas. Assim, compreendemos melhor a importância de uma das questões: O que é que a dança nos revela? (ROUX, 2007, p. 39, tradução da autora)68.

68 No original: « Le corps dansant est modele par des savoirs et des savoir-faire qui vient selon les contexts sócio- historiques, culturels, philosophiques, scientifiques et pédagogiques. Le corps est un produit social qui se rapporte à des codes, des valeurs et des cultures. Ainsi, comprend-on mieux l’importance de l’une des questions préliminaires: Qu’est-ce qui releve de la danse?».

Fazendo, nesse ponto, uma relação com o Teatro Performativo69, Féral (2011) insiste no aspecto

lúdico do discurso sob suas múltiplas formas, que navega para além das personagens evocadas; ele impõe o diálogo dos corpos, dos gestos e toca na densidade da matéria (Féral, 2011).

Algumas perguntas emergem nesse ponto: seria possível, a partir de tais noções, propor um desdobramento a fim de buscar definir uma dramaturgia da presença70, no caso, da dança de Trisha

Brown?

Assim como não é possível definir um modelo exclusivo para o Teatro Performativo, ou Pós- dramático, visto que as características que o definem são, de certo modo, as mesmas que dificultam a sua definição, ou seja, sua multiplicidade, sua condição híbrida e fugaz, a dança performativa também não pode ser categorizada por um único modelo específico. Segundo Roux:

[...] a dança é uma dádiva universal e ao mesmo tempo ela pressupõe abordagens e definições múltiplas segundo suas culturas. Ela permite o cruzamento entre o individual e o coletivo, abrindo as portas da relação ao Outro e, paralelamente, sugerindo uma negociação entre si próprio e o real (ROUX, 2007, p.54, tradução da autora)71.

Ao tecer um histórico cronológico no campo coreográfico francês, Roux aponta especificamente para uma irrupção de uma atitude performativa que percorre a década que inicia em 1993 e vai até o ano de 2003. Tal atitude, no entanto, não ocorre isoladamente em território francês, ao contrário ela emerge em uma rede globalizada, que conforme visto nesse capítulo teve sua origem nos episódios dadaístas, atravessando a contracultura norte-americana dos anos sessenta/setenta do século XX e que pode ser compreendida como um estado de dança performativo, ou uma Dança Performativa, projeto coreográfico polimorfo e transdisciplinar, onde se insere o trabalho de Trisha Brown.

69 Féral define como Teatro Performativo, já Lehmann define como Teatro Pós-dramático, em ambos os casos, trata-se de um fazer teatral híbrido, cujas fronteiras entre os gêneros se embaçam e cuja “noção de performatividade está ao centro de seu funcionamento” (Féral, 2011, p. 108) e, ainda, segundo a autora, está relacionado a espetáculos centrados mais sobre a imagem e a ação em detrimento do texto, cujos elementos adotados perturbam a própria noção de gênero (Féral, 2011). 70 Dramaturgia de Presença é um termo que proponho a partir da relação com o texto de Gumbrecht, que será aprofundado no desenvolvimento dessa pesquisa.

71No original: « [...] la danse est un donée universelle et en même temps ele suppose des approches et des deéfinitions multiplex selon les cultures. Elle premet le croisement entre l’individualité et la collectivité, ouvrant les portes de la relation à l’outre et parallélement, suggérant une négociation entre soi et le réel ».

Roux, ainda, sinaliza as tensões ou conexões entre as interfaces que associam o campo coreográfico da atitude performativa. Segundo a autora, as noções de representação e de espetáculo são dois pilares importantes, exaustivamente debatidos, criticados e rejeitados quando considerados os novos modos de produção e de visibilidade das obras artísticas em contexto (ROUX, 2007). Ela releva a questão da representação e a circunscreve:

[...] a noção de representação implica que há uma unidade de espaço e de tempo. A atitude performativa desenvolve a necessidade de ambos os parâmentos para poder emergir, mesmo se ela os ultrapassar por sua essência situacional. De fato, essa essência situacional leva em consideração a natureza de espaço e de tempo em função da realidade que se vive aqui e agora. Ainda, a atitude performativa vem perturbar a noção de representação uma vez que está compreendida como uma repetição incessante de um mesmo presente (ROUX, 2007, p. 80, tradução da autora)72.

Baseado nas considerações feitas por Roux (2007), podemos retomar a noção proposta aqui de Dramaturgia da Presença, a partir de Gumbrecht (2010), uma vez que essa noção catalisa muitos aspectos associados ao que ela denomina como dança performativa. De fato, é possível elencar algumas características que permitem esboçar uma silhueta do que, nesta tese, se chama como tal: a exploração de procedimentos expressivos que escapam à representação; a fuga de um aprisionamento estético que propõe interpretações majoritariamente intelectuais; a redução dos materiais coreográficos, ou seja a simplicidade dos gestos, a incorporação de impulsos de movimentos a partir de fontes inconscientes de criação; assim como a instauração de dinâmicas processuais, que ampliam vertiginosamente as possibilidades de significação. Esses seriam apenas elementos iniciais para compor uma das noções aqui propostas.

Isso implicaria em uma dramaturgia em que o corpo prevalece às outras matrizes expressivas, ou seja, ao tempo referencial, personagens, histórias, figurinos e adereços figurativos que enfatizam a exploração de situações reconhecíveis e reforçam a representação. Uma dramaturgia não descritiva, nem tão pouco evocativa, mas uma possível dramaturgia de presença, que propõe, através da corporeidade, instaurar dinâmicas relacionais entre o artista, o meio ambiente e a plateia.

72No original: « [...] la notion derepresentation implique qu’il y ait unité de lieu et de temps .L’attitude performative développe la necessite de ces deux paramètres pour povoire faire acte même si elle les dépasse par son essence situationnelle. En effet, cette essence situationnelle prende n compte la nature du lieu et du temps en fonction de la réalité qui se vit ici et maintenant. De plus, l’attitude performative vient bouleverser la notion de representation lorsque celle- ci est comprise comme la répetition inlassable d’un même présent ».

Brown trata o corpo e a movimentação de seus bailarinos como ignições particulares, esvaziadas de significações. Suas coreografias transportam o público para um lugar desconhecido. Como a própria coreógrafa escreveu:

[...] o resultado da coreografia, que vai além daquilo com o que a audiência está familiarizada, é o que você descobre que pode fazer e quais são as suas limitações pessoais. Com isso, advém a possibilidade de fazer aquilo que não é interessante para o seu público e que nunca, até então, foi pensado ser aceitável para um público. Existe também a questão da relação entre o público e o performer (BROWN apud BURT, 2005, 11, tradução da autora).73

Segundo Fischer-Lichte, o performativo envolve a produção de algo que é, ao mesmo tempo, autoreferencial e instaurador de realidade (FISCHER-LICHTE, 2008, p. 24-25). Ao observar o trabalho desenvolvido por Brown, é possível reconhecer tal traço, a relação entre performativo e presença, e perceber que existe uma tensão latente entre a autorreferencialidade de seus bailarinos e a realidade que emerge a partir de suas coreografias. Autora de uma dramaturgia da presença, o que importa é perceber os desdobramentos que podem surgir dessa ambivalência.

Vale ainda esclarecer que presença, nesse caso, não significa somente plenitude. De fato, nos referidos trabalhos de Brown é possível perceber a presença, mesmo em situações esvaziadas de movimento e descoladas de qualquer referencial de tempo e espaço. Tal presença pode ser considerada plena de espaços vazios, de espaços aptos a serem ocupados e preenchidos por aquilo que o públicoe o bailarino desejarem. Presença de corpos pungentes, geradores de experiências, como nas palavras de Navas, “[...] corpos estruturados por significados, corpos que são mapas de conteúdos e, portanto, de significação, elaborando-se metáforas corporais frente a nossos olhos” (NAVAS, 2010, s/p). Presença que busca diminuir as noções da função mimética nas artes da cena, provocando uma ampliação perceptiva, gerando “ilhas de sentido” que se posicionam além da interpretação e tentam captar o performativo em sua sensorialidade.