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SEGUNDO CAPÍTULO

2.7 A Dança Ainda Pode Ser Considerada Dança?

Ao examinar essa vasta e espessa rede da qual faz parte a dança moderna e que se ramifica para a dança contemporânea, nos deparamos imediatamente com uma dificuldade que provém da necessidade de abordar as especificidades que permeiam ambas manifestações. No caso da dança contemporânea pode-se reconhecer uma atitude de acolhimento de seus antecessores e uma agregação de outros gêneros e formas de arte. Já no caso da dança moderna, percebe-se uma atitude de negação, de recusa daqueles que a antecederam. Por outro lado, em função dessa múltipla agregação presente na dança contemporânea, torna-se nebulosa a identificação de suas especificidades.

Por mais complicado que seja identificar tais especificidades, tal tarefa se faz extremamente necessária, a fim de tentar abrir um caminho nesse denso novelo que inclui coreógrafos e grupos tão distintos como o “quase tradicional” Grupo Corpo, de Minas Gerais, ou o “quase-heavy-metal” Cena 11, de Florianópolis,30 apenas para citar dois exemplos da cena brasileira. Para tanto, é preciso buscar

definir alguns parâmetros.

Para Tomazzoni (2005, s/p) “[...] a dança contemporânea não é uma escola, tipo de aula ou dança específica, mas sim um jeito de pensar a dança”. Cada coreógrafo constrói, por meio de uma ampla e variada fonte de referências corporais e estéticas, sua proposta de linguagem, valendo-se muitas vezes da contribuição criativa de seu elenco de performers, que não são necessariamente dançarinos, mas podem ser também atores, artistas visuais, e até não-artistas.

Não raro, acontecem na dança contemporânea obras com assinaturas coletivas, contrariamente ao pressuposto da dança moderna que exigia de seu coreógrafo uma assinatura específica, diferenciando-o

30 O Grupo Corpo é um renomado grupo mineiro de dança contemporânea, fundado pelos irmãos Pederneira em 1975 (GRUPO CORPO, 2015). O Grupo Cena 11 é uma das principais companhias de dança contemporânea brasileira, situada em Florianópolis, sob a direção de Alejandro Ahmed desde 1993 (GRUPO CENA 11, 2015)

dos demais, assim como um elenco de bailarinos que seguia, como discípulos, sua linha estética, a ponto de serem facilmente reconhecidos por denominações, como: “alguém que dança Graham”, ou “esse bailarino dança Cunningham” e assim por diante.

Frimat (2010), por exemplo, se vale do “paradigma do híbrido”31 para tentar compreender o que

há de comum nas diversas manifestações artísticas que se encaixam dentro desse rótulo, bastante flexível, da dança contemporânea. Para o autor francês, embora não seja exatamente original evocar a dança contemporânea a partir da noção de hibridismo, visto que vários artistas já reivindicaram para si essa denominação, inclusive na modernidade, é possível identificar o hibridismo como uma característica recorrente na dança contemporânea, cujo corpo de obras rompe, ou deveria romper, com duas noções equivocadamente associadas à noção de contemporâneo: o tempo e a simultaneidade.

É possível observar esse rompimento, por exemplo, nas obras de Vaslav Nijinsky, que chocava as plateias parisienses com coreografias ousadas e originais no início do século XX, assim como nas coreografias da norte-americana Trisha Brown32, sobretudo em seus primeiros trabalhos realizados na

década de 1970, em Nova Iorque. No caso de Brown, a maioria dessas obras teve um caráter experimental, muitas vezes realizadas em ambientes públicos, como parques, museus, edifícios, dentre outros, cuja movimentação, em sintonia com outras coreografias desenvolvidas nos Estados Unidos, explorava um universo inusitado de movimentos. Esse período trouxe para a cena movimentos cotidianos como correr, caminhar, saltar, além de trabalhar com a exploração de materiais que desafiavam a gravidade, como cordas, redes ou bastões. Os figurinos eram constituídos por roupas funcionais, que facilitavam a movimentação dos dançarinos; a música era pouco ou não utilizada e o cenário era aquele do local onde a dança era proposta. Tais características, dentre outras, podem contribuir para o reconhecimento de padrões que classificam os fenômenos como dança contemporânea e que ainda permanecem.

Diante de uma dança tão “diferente” da imagem mais virtuosa, que normalmente é associada ao mainstream da dança cênica contemporânea ocidental, por mais variada que esse seja, uma das questões que surgem é se toda essa variedade de manifestações corporais poderia ainda ser considerada dança.

31 François Frimat reconhece a dança híbrida como parte de um hibridismo típico da arte coreográfica contemporânea.

Figura 22: Meredith Monk em performance nos anos sessenta. Foto: Monica Moseley. Fonte: Dance

Heritage, 2015.

A reflexão em torno dessa pergunta abre, por sua vez, um diálogo com a pensadora norte- americana Rosalind Krauss. Em seu artigo de 1979, ela questiona a categoria “escultura”, para delimitar um campo tão investido de possibilidades como o campo da escultura dos anos 1960 e 1970. Para Krauss (1979, p. 20, tradução da autora), “[...] a categoria escultura, assim como qualquer outro tipo de convenção, tem sua própria lógica interna, seu conjunto de regras, as quais, ainda que possam

ser aplicadas a uma variedade de situações, não estão em si próprias abertas a uma modificação extensa”.33

Ela nos mostra como a arte contemporânea, seja ela representada pela dança, pelo teatro, pelas artes visuais ou por qualquer outra vertente artística, pedia modificações extensas. Ao contrário da arte moderna, ela se legitima pelo heterogêneo, pelo inesperado, pela diferença (ROUANET, 1978), o que dificulta categorizações e aponta para o inevitável esgarçamento das fronteiras artísticas. O que propõe Krauss (1979), e que pode ser relacionado à dança, não é a eliminação de fronteiras delimitantes de um território que se designou chamar escultura. Ao contrário, a autora propõe um campo finito, que tem suas bordas expandidas ou ampliadas, mas não borradas. Cabem no campo ampliado, portanto, as formas negativas. Segundo Krauss (1979, p. 173, tradução da autora) “[...] poder-se-ia dizer que a escultura deixou de ser algo positivo para se transformar na categoria resultante da soma da não- paisagem com a não-arquitetura”.34 No que diz respeito à dança, é possível de maneira semelhante

perceber uma ampliação de seu campo, uma vez que a dança contemporânea também materializa em suas obras uma ampliação de seu território, incluindo nele não somente a busca por uma teatralização, mas também, formas negativas, cuja recusa ao entretenimento é total, expressadas muitas vezes pela não-dança35 e pelo still movement,36 explorações radicais que levam ao extremo a própria noção de

dança, ampliando esse campo para inesgotáveis possibilidades.

33 No original: “As is true of any other convention, sculpture has its own internal logic, its own set of rules, which, though they can be applied to a variety of situations, are not themselves open to very much change”.

34 No original: “Sculpture, it could be said, had ceased being a positivity, and was now the category that resulted from the addition of the not-landscape to the not-architecture”.

35 A não-dança é um movimento que surgiu majoritariamente na França nos anos 1990, no qual coreógrafos se valiam de

procedimentos transdisciplinares e externos à dança, como vídeo, teatro, artes visuais, dentre outros, para compor espetáculos denominados de dança, mas que não continham movimentos de dança, convencionalmente falando. Um de seus precursores foi o bailarino Orazio Massaro, ex-membro da Companhia de Domenique Baguet. Outros nomes que remetem a não-dança são: Boris Charmatz, Jérôme Bel, Hervé Robbe, Xavier le Roy e Alain Buffard.

36 Still movment ou still act conforme André (2005, p. 14), deriva da noção de Stil act – conceito proposto pela antropóloga

Nadia Seremetakis, “[…] para descrever momentos quando um sujeito interrompe o fluxo histórico e pratica uma interrogação histórica. Assim, enquanto o still-act não pressupõe rigidez ou morbidez, ele requer um estado de suspensão, uma corporeidade baseada na interrupção dos modos impostos de fluxos”.

Figura 23: Jérome Bel em Shirtologie, 1997, um exemplo de não-dança. Foto: Gabrielle Fonseca

Fonte: Tate, 2012.

Nesse ponto, é possível retornar para a rede e aproximar o olhar dos coreógrafos que orbitavam o Judson Church Dance Group e que esgarçaram, de maneira sem precedentes, o campo da dança cênica ocidental. Desde então, o novo corpo que dança não precisa necessariamente ter sido treinado dentro dos moldes do balé clássico ou de técnicas de dança moderna, o novo dançarino pode ser qualquer um que queira dançar, homem, mulher, magro, gordo, alto, baixo, jovem, velho, destro, canhoto... E a questão, se “isso” pode ser considerado dança, passa a ser entoada com frequência, visto que quem dança não é mais somente o dançarino treinado, mas o dançarino-pessoa-comum, fato que provocaria comentários familiares também em outras formas de arte: “isso, até eu faço”. Desse modo, embora em meio a constantes batalhas categorizantes, é possível vislumbrar um campo ampliado para a dança, que de certa forma também amplia a noção de dramaturgia. Ao olharmos a tessitura dessa rede, não é

possível ignorar algo que está presente em todos os imbricamentos mencionados até esse momento e que vem a constituir a dramaturgia da dança, nesse caso, da dança contemporânea.