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SEGUNDO CAPÍTULO

2.1 Cartas para a Posteridade

Se, ao olhar para a gênese da dramaturgia do teatro foi necessário retomar Aristóteles, no que diz respeito à dança não será necessário recuar tanto, não que a dança da época aristotélica não seja relevante mas, para o escopo dessa pesquisa é necessário regressar apenas a 1760, ano em que o bailarino e coreógrafo francês Jean-Georges Noverre (1727-1810) publicou o volume Cartas sobre a Dança. O que Noverre propôs em seu livro é considerado uma fundamental ampliação das possibilidades de se pensar e de fazer a dança cênica clássica vigente.

Naquela época, a dança cênica hegemônica era o balé de corte, realizada pela e para a realeza, enquadrada em uma poética mecânica do movimento, sob vestimentas pesadas que dificultavam tremendamente a movimentação dos dançarinos. Assim, o que existia em termos de dança cênica eram espetáculos que obedeciam a agendas políticas, que tratavam a dança como entretenimento e campo de comunicação da realeza.

Em seu livro, escrito em um formato epistolar, Noverre clamou por uma nova dança “que veicula significados e emociona” (MONTEIRO, 1998, p. 65), batizada pelo coreógrafo como balé de ação. Tal balé proposto pelo mestre francês condenava o uso de máscaras, o excesso de simetria, a mecanização dos movimentos e a incoerência entre as partes. Para Noverre a dança deveria ser uma arte autônoma, ter lógica, respeitar a verossimilhança, compor a partir de um percurso com início, meio e fim, com alma e emoção, antes de técnica e virtuose, dentro de uma lógica que reconhece e muito se assemelha à poética aristotélica.

A partir de então, atravessando os séculos em ciclos alternados em que a expressividade se sobrepunha à técnica e vice-versa, a dança cênica foi construindo um percurso no qual, independente

da estética dominante, o movimento era sempre relacionado a corpos treinados, aptos a realizar aquilo que o corpo comum não seria capaz de fazer.

Guia de muitos coreógrafos que o sucederam, Noverre deixou um documento importante para o pensamento da prática da dança. Salvo exceções, os bailarinos e coreógrafos raramente compartilhavam suas pesquisas e reflexões em manuais e livros pra posteridade.

Figura 10: Cartas sobre a Dança e Sobre os Balés, 1760, de Jean-Jacques Noverre. Folha de Rosto.

Foto: autor desconhecido. Fonte: Open Library, 2015.

Outro exemplo de coreógrafo que compartilhou um manifesto artístico e compõe, juntamente com Noverre, essa rede que vai tecendo o horizonte da dramaturgia na dança, foi o russo Michel

Fokine, originalmente Mikhael Mikhaylovich Fokine (1880-1942). Bailarino e coreógrafo, um dos mais importantes da companhia de Serge Diaghlev11 (1872-1929), o Ballet Russes12. Não seria possível

criar esse mapa rizomático da dança moderna ocidental, sem se aproximar de Fokine por um momento. Coreógrafo de obras antológicas como A Morte do Cisne (1905), O Pássaro de Fogo (1910) e Petruchka (1911), Fokine deixou o seu legado não somente em seus balés. Em uma carta escrita em 6 de julho de 1914 para o The Times (London), o coreógrafo expôs um breve e contundente manifesto com moldes para a criação de um “novo balé” (FOKINE apud COPELAND,1983, p. 260). Tal carta consiste basicamente em uma proposta de cinco regras, que vêm a ser resumidamente:

Não formar combinações de passos prontos e estabelecidos, mas criar novos passos expressivos que correspondam à representação do período e da nação caracterizada na cena;

Dança e gestos mimetizados não têm nenhum sentido no balé a menos que sirvam como expressão de sua ação dramática, desse modo não devem ser utilizados como puro entretenimento, sem conexão com o tema geral da obra em questão;

O novo balé admite o uso de gestos convencionais somente quando forem necessários ao estilo da obra e, em todos os casos, tais gestos devem ser executados pelo corpo todo não apenas pelas mãos do bailarino, que por sua vez deve ser um todo expressivo;

A expressividade do grupo, do coletivo na dança deve ser prioridade. Ao contrário dos balés antigos, nos quais o corpo de baile era visto quase como um ornamento, espécie de cenário dançante, o novo balé deve dar maior importância ao corpo coletivo;

A aliança da dança com outras artes: o novo balé deve se recusar a ser escravo da música ou do cenário e, ao reconhecer essa aliança com as outras artes em nível de igualdade, permitirá uma maior liberdade a todos os artistas envolvidos no processo de criação (FOKINE apud COOPELAND, 1983, p. 260, tradução livre da autora).

Em um de seus célebres balés, Les Sylphides, originalmente chamado Chopinianas, estreado em 1909 no Théâtre du Châtelet em Paris, Fokine propôs uma nova releitura de um balé branco13, em um

ato, a partir de uma música já existente de Chopin. Tal balé era formado por um corpo de baile de

11 Serge Diaghlev, empresário artístico russo e fundador da Companhia Ballet Russes. Trabalhou com os maiores artistas de

sua época, como Pablo Picasso, Aleksandre Benoir, Igor Stravinski, Vaslav Nijisnky, dentre outros; foi o grande impulsionador da arte russa no ocidente.

12 Ballet Russes é uma companhia de balé emigrada da Rússia, com sede na Europa, fundada e dirigida por Diaghlev, no

período de 1909 a 1929. Rompeu inúmeros paradigmas da dança clássica vigente e exerceu grande influência na dança clássica e moderna ocidentais de gerações por vir.

13 Balé branco era a denominação dos balés românticos, principalmente os segundos atos de seus espetáculos, nos quais prevalecia o uso de figurinos de tule branco, ou seja, os tutus românticos.

sílfides e apenas um bailarino, remetendo a uma estética convencional, que homenageava o célebre balé romântico, La Sylphide (coreografia de Fillipo Taglioni, de 1832). Trata-se de um balé que foge completamente da estrutura romântica daqueles em voga no século XIX. Não há uma história a se contar, um enredo particular, apenas um encadeamento de sequências clássicas, formando um dos primeiros balés abstratos14 da história. Com tal obra, Fokine inaugura a possibilidade de um novo

horizonte coreográfico, abrindo caminho para os balés também abstratos que viriam a ser criados por Balanchine15 (1904-1983) e outros coreógrafos, mais adiante, no decorrer do século XX.

Figura 11: Les Sylphides, 1909, de Michel Fokine, Londres. Foto: Fotógrafo desconhecido. Fonte:

Getty Images, 2015.

Desse modo, Fokine e Noverre, em períodos distintos, colocaram em palavras o que buscavam colocar nos corpos, em suas concepções coreográficas. Questionando e provocando a si mesmos, assim

14 Por abstrato entenda-se um balé que não seguia um enredo, uma narrativa linear, não contava uma história, não continha personagens, ou seja, propunha simplesmente exibir a dança em sua forma mais pura e concreta possíveis.

15 George Balanchine, coreógrafo de origem russa que despontou na companhia de Diaghlev, tendo imigrado para os

como a seus parceiros artísticos, ao público e à crítica, eles ajudaram a impulsionar futuras gerações, a abrir portas para experimentações e a projetar novos olhares para a dança.

Fokine, juntamente com outros artistas de seu tempo16, impulsionou uma grande reforma na

dança ocidental, que se desdobrou em duas vertentes, uma sendo a do balé moderno e a outra sendo o vasto campo da dança moderna, da qual o presente trabalho mais se aproxima.