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SEGUNDO CAPÍTULO

2.2 Dança das Margens

Se a dança clássica emergiu das cortes europeias e se afirmou como a dança das elites, a dança moderna pertenceu a uma outra realidade completamente distinta. Conforme Foulkes (2002, p. 6) “[...] a dança moderna é um espaço liminar, no entanto, ela empresta sua importância oferecendo uma perspectiva original de como as artes refletem e contribuem para as dificuldades e composições do nosso mundo”. Assim, a criação de um movimento artístico, que aponta para duas origens principais simultâneas, a América do Norte e a Alemanha do início do século XX, vem a ser o que se configurou no Ocidente como dança moderna e dança de expressão (FOULKES, 2002).

Tal historiadora aponta, na América do Norte, a prevalência de três classes criadoras desse movimento, das quais se pode citar: mulheres brancas, heterossexuais de classe média; homens homossexuais; e afrodescendentes, tanto homens quanto mulheres. Se essas três classes dominaram e desenvolveram esse movimento, de fato foram as mulheres que realmente iniciaram esse percurso, propondo uma dança que rompeu com os paradigmas clássicos, ainda que mantendo, até certo ponto, algumas semelhanças em suas estruturas.

Dentre as mulheres pioneiras que representam esse movimento, as que mais se destacam são as norte-americanas Martha Graham (1894-1998), Ruth St. Denis (1879-1968), Doris Humphrey (1895- 1958), Katherine Dunham (1909-2006), Sophie Maslow (1911-2006), Jane Dudley (1912-2001) e Anna Sokolow (1910-2000), com possíveis variações, considerando-se, por ora, apenas o universo norte- americano.É importante mencionar que, tanto Isadora Duncan, quanto Loie Fuller, são consideradas por muitos historiadores, e também nesta tese, como bailarinas pré-modernas, portanto ambas não se encontram presentes nesse breve recorte histórico que buscou focar a dança, mais aprofundadamente, a partir da modernidade. Isso não significa que não se reconheça a indubitável importância de tais artistas

16 No caso, as bailarinas norte-americanas Isadora Duncan (1877-1927) e Loie Fuller (1862-1928), assim como seu sucessor na companhia de Diaghlev, o bailarino e coreógrafo Vaslav Nijinsky (1880-1950).

no período de transição entre o balé clássico e a dança moderna ocidental. A primeira trouxe referências da dança grega clássica, dançando com os pés descalços em vestidos de gaze esvoaçante; e, a segunda, ampliou seus braços com extensões sob as mangas de seus vestidos, jogando com efeitos inéditos de iluminação colorida. De fato, tais bailarinas certamente abriram os caminhos para as gerações posteriores de artistas da dança moderna no Ocidente, que as sucedera

Mesmo sem detalhamento das especificidades e contribuições de cada uma dessas grandes bailarinas e coreógrafas modernas (e pré-modernas) do século XX, uma vez que cada uma delas realizou trabalhos artísticos bastante diferenciados e buscaram conquistar uma assinatura particular, é possível perceber de que modo esse conjunto de artistas contribuíram para a ampliação das referências da dança cênica e, consequentemente para a construção e a ampliação da noção de dramaturgia, ou melhor, dramaturgias da dança contemporânea.

Conscientes das dificuldades enfrentadas não somente, mas principalmente, por serem do sexo feminino, tais mulheres tinham um duplo desafio: além de transformarem os parâmetros da dança, trazendo para a cena questões tanto pessoais quanto da sociedade contemporânea, elas foram além, devotando sua energia para dirigir grupos de dança, buscando solidificar uma forma de arte instável e timidamente emergente.

Oferecendo uma visão feminina que fugia do estereótipo de curvas suntuosas e sensualidade exacerbada dos cabarets e music halls por um lado, e da fragilidade e graciosidade do balé clássico por outro, não parece em vão que muitas dessas companhias tivessem os nomes de suas diretoras – Martha Graham and Group, Humphrey-Weidman Group (de Doris Humphrey), Denis-Shawn Dance Company (de Ruth Saint Denis e seu marido Ted Shawn) etc. Na tentativa de estabelecer um mercado e se autoafirmar enquanto criadoras, resistindo às duras críticas da época e abrindo espaço em um domínio maioritariamente masculino, essas artistas construíram um legado que atravessou gerações e abriu portas para as conquistas que se seguiram, tanto no campo da política quanto no da estética da dança.

Ainda que os modelos hierárquicos das grandes companhias de dança do século XIX fossem mantidos – as dicotomias solista/corpo de baile, coreógrafo/ bailarinos; as narrativas lineares provenientes de temas e/ou textos literários; a noção de representatividade; dentre outros fatores – não se pode negar que um frescor e uma nova era emergiram na cena artística desse período. E se os grandes grupos ainda se configuravam com estruturas semelhantes às do período do balé clássico do século anterior, alguns trabalhos em particular apontaram para uma ruptura mais radical com tais estruturas. Um exemplo é o célebre solo Lamentation (1930) de Martha Graham, no qual a bailarina

aparece sentada em um banco, em um cenário que é apenas a caixa preta teatral, e que não prevê nem aponta um local definido. Com o corpo totalmente coberto por um tubo de malha escura, seus movimentos não têm isolamentos entre centro e periferia, seu corpo se move como um todo conectado, em um solo que se tornou um marco da dramaturgia da dança moderna. Não há nessa história uma personagem definida, aliás, não há nessa história uma história: de fato é possível perceber que aqui não se trata da imagem de uma mulher sofrendo, mas sim do próprio sofrimento encarnado.

Figura 12: Martha Graham em Lamentation, 1930. Foto: Barbara Morgan. Fonte: Dance Heritage,

2015.

Assim, tais artistas de fato transformaram a estética da dança cênica vigente no Ocidente, tendo estabelecido novas corporeidades, utilizado o tronco de forma ainda não explorada, por meio de contrações e expansões; romperam com as linhas arredondadas da dança clássica, propondo braços angulosos e fortes; cederam à lei da gravidade e exploraram o chão; bem como assumiram o peso do

corpo e as dificuldades de se movimentar, tendo experimentado até mesmo utilizar textos falados em cena, em alguns casos.

Compondo essa empreitada que surgiu das margens da sociedade norte-americana, homens homossexuais, assumidamente ou não, como por exemplo Ted Shawn17 (1891-1972), fundador de uma

companhia exclusivamente masculina, a Ted Shawn and his Men Dancers, assim como artistas desbravadores como Helen Tamires, Alvin Ailey, dentre outros, que também exerceram um importante papel na construção de novas linguagens expressivas.

Com a necessidade de buscar estabelecer a dança como uma forma de arte elevada, com potencial de diminuir os preconceitos sociais sofridos pelas minorias – mulheres, negros, homossexuais, imigrantes e as classes trabalhadoras – a dança moderna, apesar do crescimento do balé clássico norte- americano emancipou-se e se tornou realidade no mapa cultural dos Estados Unidos da América, na primeira metade do século XX.

No entanto, ainda que sejam reconhecidas todas as transformações políticas e estéticas desse período por meio de seus principais imbricamentos/referências, pouco fica explicitado em termos de uma ampliação do conceito de dramaturgia relacionada à dança. Algo que será observado mais nitidamente adiante por aqueles chamados pós-modernos, ou contemporâneos, ou até mesmo ainda nesse mesmo período, mas do outro lado do oceano.