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QUARTO CAPÍTULO Trisha Brown: Ilhas De Sentido

4.3 Cultura de Sentido / Cultura de Presença

Gumbrecht, professor da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, propõe dois conceitos para compreender a crise da representação na pós-modernidade, que auxiliam a compreender uma forma de ultrapassar o “estatuto exclusivo da interpretação nas Humanidades” (GUMBRECHT, 2010, p. 105). São eles a Cultura de Sentido e a Cultura de Presença. Essas duas culturas, segundo o autor, não são excludentes e podem coexistir em todos os objetos culturais, não aparecendo de forma pura, ou ideal (GUMBRECHT, 2010).

Na tentativa de compreender a obra de Trisha Brown como portadora, ou disseminadora estética, que muito se aproxima ao que Gumbrecht define como Cultura de Presença, é importante trazer um olhar mais atento para o que propõe o autor alemão.

Em seu contundente livro, traduzido para o português do Brasil como Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir (2010), Gumbrecht traça um percurso que inclui uma série etapas, buscando apontar as especificidades das duas culturas supracitadas. Não cabendo aqui repeti- las, é importante comentar algumas dessas etapas para que se possa relacionar o trabalho de Brown com a segunda categoria cultural, ou seja, a Cultura de Presença.

Na primeira etapa, ao buscar analisar tais culturas, o autor afirma que a autorreferência predominante na Cultura de Sentido é o pensamento, a consciência, enquanto a autorreferência predominante na Cultura de Presença é o corpo (GUMBRECHT, 2010, p. 106). Em conexão com o trabalho de Brown, tanto em Men Walking Down the Side of the Building, assim como em Group Primary Accumulation, quanto em várias outras de suas obras, o corpo é a autorreferência predominante. A exploração do espaço, o desafio da gravidade, a relação entre os corpos dos bailarinos, assim como a relação entre performers e público se dão primeiramente, e, sobretudo, por experimentações corporais.

A noção de espaço, elemento núcleo na obra de Brown, é justamente uma das outras etapas citadas por Gumbrecht. Para ele, na Cultura de Presença “[...] a dimensão que se constitui ao redor dos corpos deve ser a dimensão primordial em que se negociam a relação entre os seres humanos e as coisas do mundo” (GUMBRECHT, 2010, p. 110). Brown, em sua negociação constante com o espaço, acessa atmosferas cuja confluência entre o espaço individual do dançarino e o espaço coletivo da cena, assim como o do público e do meio ambiente, são recriados constantemente, ressignificando o lugar-

comum, seja ele por meio de uma simples flexão de braço, ou a encenação em um gramado, em um parque da cidade. Em contrapartida, para a Cultura de Sentido, o tempo é a dimensão primordial, a associação fundamental entre a consciência e a temporalidade.

Quando se pensa na dramaturgia de um balé clássico, por exemplo, O Quebra Nozes63, existe uma

noção de tempo claramente definida, a trama se passa numa noite de Natal; ou mesmo quando não se tem uma definição de tempo tão precisa como em Giselle64, recebe-se informações que auxiliam na

compreensão temporal histórica; pelo cenário, é possível observar que se trata de uma trama desenvolvida durante a noite ou o dia, em uma cidade ou em um cemitério, com o auxílio de um figurino que remete a um determinado período histórico reconhecível. Existe também o recurso do programa, que traz importantes informações para auxiliar a compreensão do público.

No caso das experimentações coreográficas de Brown, assim como nas de outros criadores da dança contemporânea ou pós-moderna desse período, o que acontece se dá no aqui e agora, e a consciência de temporalidade é transformada de forma radical.

De volta a Gumbrecht, a última etapa que o pensador elenca leva ao “[...] lúdico e à ficção como conceitos por meio dos quais as Culturas de Sentido caracterizam interações em que os participantes têm uma ideia vaga, limitada ou nula das motivações que lhes orientam o comportamento” (GUMBRECHT, 2010, p. 111). Desse modo, em situações de jogo, ou de ficção, as regras substituem o lugar das motivações dos participantes. Por outro lado, essas ações definidas como comportamento humano estruturado por motivações conscientes não cabem nas Culturas de Presença. Brown refere-se frequentemente a motivações inconscientes quando reflete sobre seu trabalho. Sempre que questionada sobre a criação de uma escola para transmissão de sua técnica, sua resposta é imediata: “Não me coloquem em uma jaula!” (BROWN apud HUYNH, 2014, p. 21). Suas motivações de criação buscam esquecer conscientemente o intelecto para deixar surgir um movimento orgânico e, embora toda sua obra seja matematicamente estruturada, sua linguagem emerge de exercícios de improvisação, que jorram em seu próprio corpo através de um fluxo inconsciente de experimentações, posteriormente decupadas, codificadas e transmitidas para seus bailarinos em danças individuais e coletivas. Para Brown, tal sistema possivelmente se perderia em um formato convencional de escola, cuja transmissão de técnica se dá a partir de outras técnicas. Para a artista, práticas de movimentação somáticas, como

63 Balé em dois atos, libretto de Marius Petipa, coreografia de Lev Ivanov e música de Tchaikovsky; estreou em 1892 no Teatro Marinsky em São Petersburgo, montado por diversas companhias de balé em todo mundo. (KOEGLER, 1987). 64 Balé em dois atos, libretto de Vernoy de Saint-Georges, Gautier e Coralli, coreografia de Coralli e Jules Perrot, música de Adams, estreou, em 1841, no Teatro Ópera de Paris e é considerado um marco do apogeu do romantismo no balé (KOEGLER, 1987).

Alexander, Feldenkrais e BMC são o caminho para o autoconhecimento do corpo, o resto deve emergir das improvisações guiadas e estruturadas que costuma realizar (BROWN, 2004).

Desse modo, nas dramaturgias construídas por Brown não existe uma ficção a priori, embora o público possa projetar sua própria leitura ficcional, não existem princesas, fadas ou bruxas, nem tão pouco personagens mitológicos como em Martha Graham ou Ruth St.Dennis.

Um homem desce a parede lateral de um prédio e é isso, um homem, simplesmente. Brown tampouco recorre ao uso de programas instrutivos, para ela, suas obras devem se sustentar sem a necessidade de explicações. Ainda que reconheça que os textos e as sinopses de programas sejam um modo eficiente do artista se comunicar com seu público, Brown não os utiliza de tal forma. Em suas próprias palavras “não quero nada que seja previsível, eu não vou anunciar nada” (BROWN apud HUYNH, 2014, p. 35).

Assim, se tal abordagem pode parecer, por um lado, intransigente e radical, por outro, Brown está de fato oferecendo ao seu público uma autonomia e uma liberdade de leituras, o que pode provocar, em muitos, um sabor estranho na boca, aquele semelhante ao se experimentar um alimento novo, não familiar, cujo gosto não se tem registro anterior. Nesses casos, não se trata de gostar ou de não gostar daquilo que traz consigo um novo paladar, mas de experimentar, de conhecer primeiro e, novamente, de ampliar registros, expandir possibilidades e, acima de tudo, estar presente na cena, seja como artista, seja como público.

Estar presente enquanto artista, cujo passo em falso pode levar a uma queda que pode causar lesões, assim como estar presente enquanto público, mesmo sem participar ativamente da cena, uma vez que Brown não convoca seu público para co-atuar com seus dançarinos, exige, da mesma forma, um testemunhar que atua de outro modo, como um co-autor do sentido que se constrói, de forma diversa para cada um de seus participantes.