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SEGUNDO CAPÍTULO

2.3 Dança de Expressão

Falar de dança na Europa da primeira metade do século XX, implica em reconhecer duas guerras mundiais, e todas as adversidades desse período, assim como o eco que tal momento ressonou nas corporeidades dessa região. Desse modo, fazer tal observação não implica no desconhecimento de que na América a presença da guerra também tenha sido massacrante. Tal fato é evidente, mas ocorre que, no caso europeu, principalmente em função da importância da dança e das artes corporais emergentes na Alemanha em tal época, o impacto e o terror das guerras e do pós-guerra parecem ter deixado marcas visivelmente profundas, tanto nos corpos da dança, quanto nas criações que emergiam durante esse período.

17 Ted Shawn foi companheiro afetivo e criativo da bailarina Ruth St. Denis, e co-fundador em 1914 da Denis-Shawn Dance

No início do século XX, a ode à natureza e aos rituais coletivos, a prática da teosofia18, da

antroposofia19 e da eurritmia20, a busca da totalidade entre corpo, alma e espirito, encontraram

ressonância no meio artístico e intelectual alemão.

Dos expoentes desse período é imprescindível mencionar o trabalho de Rudolf Laban (1879- 1959), dançarino, coreógrafo, arquiteto e teórico, que dedicou toda sua vida à pesquisa no campo do movimento. Pregador de uma movimentação criativa, Laban acreditava que o movimento humano, fosse ele cotidiano, funcional, ou artístico, deveria ser constituído sempre dos mesmos elementos. Considerando que corpo e mente não são duas entidades distintas, mas um todo inseparável, Laban sistematizou uma análise de movimento que ainda é utilizada amplamente.

O teórico alemão baseou seu sistema de análise, assim como sua Labanotation21, em quatro

fatores: espaço, peso, tempo e fluxo. Posteriormente foi acrescido o elemento forma por um de seus discípulos, Warren Lamb (1923-2014). Laban estabeleceu também os cinco elementos: corpo, esforço, forma, espaço e ritmo como ferramentas essenciais e estruturantes do movimento.

Ainda que Laban não tenha criado os fatores, tampouco os elementos acima citados, mas realizou a organização e a sistematização de um pensamento voltado para a movimentação criativa. O “como” e os caminhos para se movimentar e, ainda, registrar tal movimentação foram adventos fundamentais para o desenvolvimento não somente da dança, mas da movimentação teatral e de diversas técnicas somáticas e de dança-terapias. Valendo-se das escalas musicais, Laban desenvolveu escalas de movimentos “[...] a fim de que, por meio dessas escalas, como na música, se pudesse explorar e experimentar a harmonia” (MOMMENSHON, 2006, p. 46). Interessado e estudioso das artes visuais, Laban também associou o movimento à arquitetura, traçando linhas de movimento que passam pelos pontos de orientação de figuras geométricas, utilizando todas as diagonais, planos e direções possíveis

18 Teosofia ou “A Sociedade Teosófica (S.T.) foi fundada em Nova Iorque, E.U.A., em 17 de novembro de 1875, por um

pequeno grupo de pessoas, dentre as quais se destacavam uma russa e um norte-americano: a Sra. Helena Petrovna Blavatsky e o cel. Henry Steel Olcott, seu primeiro presidente” (SOCIEDADE TEOSÓFICA, 2015).

19A Antroposofia, do grego conhecimento do ser humano, introduzida no início do século XX pelo austríaco Rudolf Steiner, pode ser caracterizada como um método de conhecimento da natureza do ser humano e do universo, que amplia o conhecimento obtido pelo método científico convencional, bem como a sua aplicação em praticamente todas as áreas da vida humana” (SOCIEDADE ANTROPOSÓFICA DO BRASIL, 2015).

20 “A Euritmia é uma forma de dança desenvolvida desde 1912, baseada no conhecimento do ser humano e do mundo como

apresentado na Antroposofia. Seus movimentos são coreografias, solísticas ou em grupo, sobre a linguagem poética, em verso ou em prosa, e sobre a música instrumental tocada ao vivo” (SOCIEDADE ANTROPOSÓFICA DO BRASIL, 2015).)

21 “Labanotation ou Kinetographia é um sistema de sinais gráficos criado para o registro de movimentos” (RENGEL, 2003,

dentro de um icosaedro22, estrutura geométrica cujo conceito espacial possibilita a experimentação de

uma amplitude quase infinita de movimentação.

Figura 13: Icosaedro Labaniano. Foto: fotógrafo desconhecido. Fonte: Halsman, 1990.

Em seus experimentos no Monte Verità23, em 1913, local por onde já havia passado Isadora

Duncan (1877-1927), Laban funda a comunidade L'école pour l'art, em um ambiente que privilegiava técnicas corporais, ginásticas, jogos, danças, exercícios vocais e instrumentais. Tudo realizado dentro de um programa que incluía o espiritismo, o vegetarianismo, o naturismo, a medicina natural e o higienismo (HUESCA, 2012). Realizando performances ao ar livre, com grupos, formatos de coros dançantes, Laban rompeu com diversas estruturas vigentes de espaço cênico, de narrativas tradicionais, desestabilizando e desafiando os limites tradicionais entre a arte e a não-arte, entre o fazer artístico pelo bailarino e o não-bailarino.

22 “O icosaedro é um corpo geométrico de estrutura tridimensional utilizado por Laban como uma estrutura onde o corpo

pode se mover visivelmente em todos os planos e direções” (RENGEL, 2003, p. 75).

23 Em 1900, o casal Henry Oedenkoven e Ida Hofman fundaram, na Suíça, uma colônia cooperativa vegetariana, que se tornou uma referncia artística e política, tendo acolhido inúmeros artistas e intelectuais da época como Paul Klee, Carl Jung, Herman Hesse, dentre outros.

Dos discípulos mais destacados de Rudof Laban, aqueles que contribuíram significativamente para a ampliação da noção de dança moderna, na Alemanha, foram Mary Wigman (1886-1973) e Kurt Jooss (1901-1979).

Mary Wigman insere-se em movimentos feministas da primeira metade do século XX. A bailarina alemã, diferentemente de suas contemporâneas norte-americanas, não buscou desenvolver uma técnica específica que padronizasse o movimento de seus bailarinos e pudesse ser identificado como uma assinatura de seu estilo. Discípula também de Émile Jacques-Dalcroze (1865-1950), Wigman frequentou as aulas do método desenvolvido pelo músico e pedagogo suíço, conhecido como A Rítmica, que fez grande sucesso na Europa e veio a influenciar muitos coreógrafos e bailarinos modernos.

Movida pela busca de uma dança expressiva e criativa, ela negava totalmente a técnica do balé clássico, dançando de pés descalços e, por vezes, utilizando máscaras faciais. Wigman trouxe o grotesco e o terror do entre guerras para a dança. Suas escolas atravessaram as fronteiras da Alemanha e seus discípulos espalharam suas propostas por diversos países, inclusive os Estados Unidos.

Figura 14: Mary Wigman em seu solo A Feiticeira, 1926. Foto: excerto do vídeo Mary Wigman Tantz,

1930. Fonte: Moma, 2015.

Kurt Jooss por sua vez, não negava o valor da técnica clássica, pelo contrário. No departamento de dança da Folkwang School, que dirigiu a partir de 1927, criou um ambiente multidisciplinar a partir

de três direções – a dança, a música e o teatro –, que formava bailarinos de um novo gênero, vindo a ser conhecido como German Tanztheater, ou seja, dança-teatro alemã, um estilo de dança expressivo, que combinava movimento, texto e drama. Em suas aulas de dança, além do sistema de dança criativa de Laban, os bailarinos eram expostos à técnica de balé clássico, assim como a aulas de voz, interpretação, música, dentre outras técnicas.

Em seu mais célebre balé, A Mesa Verde (1929), Jooss inspirou-se na economia falida alemã e na obra de arte medieval Lubeck's Dance of Death. A cena inicial da obra tem um grupo de bailarinos, supostamente líderes mundiais, disfarçados sob máscaras, ao redor de uma mesa retangular, coberta por uma flanela verde. Simulando uma reunião decisiva e turbulenta, os políticos gesticulam, sobrepondo- se uns aos outros, numa caricatural cena de dança-teatro, que ficaria consagrada para posteridade.

Figura 15: A Mesa Verde, 1929, remontagem de American Ballet, coreografia de Kurt Jooss. Foto:

Andrea Mohin. Fonte: The New York Times, 2015.

Outra trama importante desse tecido, rede artística que constitui a formação da dança moderna, foi o trabalho desenvolvido pelos artistas da Bauhaus em Weimar, de 1921 a 1925 e depois em Dessau, de 1925 a1929. No que diz respeito à dança em particular, se faz necessário aproximar o olhar para o trabalho desenvolvido por um de seus principais mestres, Oskar Schlemmer (1888-1943), um artista

que partiu em busca de conteúdos comuns de representações, procurando, de um lado, “[...] nas fontes da vida, no interior de si mesmo, nas profundezas das sensações e da sensibilidade, e de outro lado dentro da ordem estabelecida pelo espirito humano, dentro dos números, das medidas, das regras” (HUESCA, 2012, p.71).

Em suas pesquisas coreográficas, Schlemmer buscou instaurar uma relação profunda entre o homem e a geometria, por meio de figurinos em formas de círculos, cones, cilindros. Com uma movimentação restrita em função de tais vestimentas, esse coreógrafo desnaturalizou os corpos dos bailarinos e sua expressividade, de modo a se assemelharem a robôs ou a marionetes. À procura de algo que singularizasse o homem, associando a dança a uma espécie de arquitetura em movimento, Schlemmer criou o conceituado Balé Triádico (1922), obra que traz referências da geometria e da arquitetura, assim como do dadaísmo e das vanguardas russas.

Figura 16: Ballet Triádico, 1922, coreografia de Oskar Schlemmer. Foto: fotógrafo desconhecido.

Fonte: Encuentros em el subsuelo, 2015.

A Alemanha seria ainda palco de muitas transformações no campo da dança contemporânea ocidental, contudo, antes de dar continuidade por esse território, trilhemos uma nova paisagem, uma outra travessia.