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EDUCAÇÃO E ORALIDADE NO OESTE AFRICANO PELA REPRESENTAÇÃO DE AMADOU HAMPATÉ BÂ

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

EDUCAÇÃO E ORALIDADE NO OESTE

AFRICANO PELA REPRESENTAÇÃO DE

AMADOU HAMPATÉ BÂ

ANTONIO FILOGENIO DE PAULA JUNIOR

PIRACICABA, SP (2014)

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EDUCAÇÃO E ORALIDADE NO OESTE

AFRICANO PELA REPRESENTAÇÃO DE

AMADOU HAMPATÉ BÂ

ANTONIO FILOGENIO DE PAULA JUNIOR

ORIENTADOR:PROF.DR.CESAR ROMERO AMARAL VIEIRA

Dissertação

apresentada

à

Banca

Examinadora

do

Programa de Pós-Graduação

em

Educação

da

UNIMEP

como exigência parcial para

obtenção do título de Mestre

em Educação

PIRACICABA,SP (2014)

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Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da Unimep Bibliotecária: Luciene Cristina Correa Ferreira CRB-8/8235 Paula Junior, Antonio Filogenio de.

P324e Educação e oralidade no oeste africano pela representação de Amadou Hampaté Bâ./ Antonio Filogenio De Paula Junior. – Piracicaba, SP: [s.n.], 2014.

158 f. ; il.

Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Ciências Humanas / Programa de Pós- Graduação em Educação - Universidade Metodista de Piracicaba. 2014.

Orientador: Dr. Cesar Romero Amaral Vieira. Inclui Bibliografia

1. Educação. 2. Oralidade. 3. África. 4. Tradição. 5. História. I. Vieira, Cesar Romero Amaral .II. Universidade Metodista de Piracicaba. III Título.

CDU 37

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BANCA EXAMINADORA

Prof.Dr. Cesar Romero Amaral Vieira Prof.Dr. Acácio Sidinei Almeida Santos ProfªDrª. Anna Maria Lunnardi Padilha

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus pela sua misericórdia.

Agradeço aos meus pais Etelvina e Antonio pela minha existência e educação. Esse trabalho é dedicado a eles de todo o meu coração.

Agradeço a minha esposa Alexandra e o meu filho Kauê pelo apoio durante esta jornada acadêmica. Agradeço a minha filha Luana que mesmo no ventre materno já era fonte de inspiração e motivação.

Agradeço aos meus irmãos e mestres: Cosmo, Djop, Barcellos, Zequinha e Lumumba. Aos amigos parceiros de caminhada: Vande, Vandeco, Mauro, Márcia, Viviane, Elide e Dida.

Agradeço aos amigos da Biblioteca Pública Municipal: Lucila, Tite e Rosana pela condição que me foi oferecida para realização do mestrado.

Agradeço ao meu amigo Alexandre Cruz por sua orientação na elaboração do Projeto. Agradeço ao Djop, Acácio e Dida pelo apoio com materiais de pesquisa. Agradeço aos funcionários, professores e alunos do PPGE – Unimep que sempre se

mostraram generosos e atenciosos as nossas necessidades.

Agradeço de maneira muito especial aos membros da banca: a Profª. Anna por sua competência, cuidado e atenção, ao Prof. Acácio por me ajudar a compreender cada vez mais uma África sujeito que ainda tem tanto a nos dizer. A sua amizade sempre foi um grande incentivo.

Agradeço com muito carinho e respeito ao meu orientador Prof. César por me acolher neste programa e por me dar a segurança intelectual e metodológica para o desenvolvimento da pesquisa. A sua presença foi essencial.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – Brasil.

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RESUMO

Educação e oralidade no oeste africano pela representação de Amadou Hampaté Bâ

O trabalho tem como objetivo responder qual o papel da oralidade na educação do oeste africano, tendo como objeto principal de investigação as ideias sobre educação e oralidade contidas na obra Amkoullel, o menino fula do filósofo e mestre tradicional do Mali, Amadou Hampaté Bâ (1900-1991). A tradição oral é uma das fontes investigativas basilares para a historiografia da África. De acordo com o historiador de Burkina Faso, Joseph Ki Zerbo (1922-2006), a oralidade ao lado da escrita e da arqueologia, tendo como ciências auxiliares a linguística e a antropologia, forma o material de pesquisa do historiador que investiga o continente africano. Em nossa pesquisa buscamos perceber o papel que a tradição, conhecida como tradição oral, desempenha na formação do homem africano. Esta pesquisa justifica-se também pela necessidade de ampliar os conhecimentos sobre o continente africano, já pensando na Lei Federal 10.639 de 2003, que institui a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas do país. Deste modo, compreender melhor a África, também é reconhecer com mais coerência a formação do nosso povo e suas matrizes culturais ampliando as possibilidades do diálogo entre os povos.

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Abstract

Education and oral tradition in West African by the representation of Amadou Hampâté Bâ.

This study aims to answer what the role of orality in education of West African is, whose the main object of research is the idea about education and orality that comes from ‘Amkoullel, A Fula Child’. It is a literary work made by philosopher and traditional master of Mali, Amadou Hampâté Bâ (1900-1991). The oral tradition is one of the basic investigative sources for the historiography of Africa. According to the historian of Burkina Faso, Joseph Ki Zerbo (1922-2006), the oral tradition along with writing and archeology that have linguistics and anthropology as auxiliary sciences form the historian's research material who investigates the African continent. In our research we seek to understand the role that tradition, known as oral tradition, plays in the formation of African man. This research is also justified by the need to expand the knowledge about the African continent, already thinking of Federal Law 10,639 of 2003, establishing the obligation of history teaching, African and Afro-Brazilian cultures at schools of the country. Therefore, a better understanding of Africa, it is also to recognize with more consistency a training of our people and our cultural matrixes by expanding the possibilities of dialog between peoples.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: A África no contexto de um mundo descentralizado...09

Capitulo I: A representação africana: avanços e desafios...25

I.1-Desconstruindo imagens: unanismo e afropessimismo...32

I.2 - A África sem ilusões: Racismo e Antirracismo...41

I.3 – A África no contexto mundial: História e Cultura...54

I.4 – Nação e representação...59

Capítulo II: A questão da memória...67

II.1 – A memória coletiva...73

II.2 – Memória e História...80

II.3 – Memória e Oralidade...84

Capítulo III: Saberes e Práticas Culturais...95

III.1 – Palavra e Tradição...107

III.2 – Palavra, Espiritualidade e Cosmovisão...117

III.3 – África e Brasil: Diálogos culturais para a educação...125

CONCLUSÃO: Uma educação para emancipação do ser humano...133

BIBLIOGRAFIA e REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...139

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Anexo:

Figura 1 - Amadou Hampaté Bâ em Treichville (Abidjan – Costa do Marfim) em

1966. Foto de Philippe Dupuich extraída de Sur les traces d´Amkoullel, L´enfant peul, Actes Sud, 1998 ...154

Figura 2 - Mapa da África Ocidental com delimitação dos países na colonização mas

apresentando algumas divisões anteriores, baseada nos territórios de alguns grupos étnicos. Imagem do livro Amkoullel, o menino fula (2003) ...155

Figura 3 - Mapa do Mali apresentando a região em que Amadou Hampaté Bâ viveu

a sua infância e adolescência. Nesta região viviam vários grupos étnicos entre eles: fulas, dogons, bozos, sereres, tucolores, diwambés, entre outros. Imagem do livro

Amkoullel, o menino fula (2003) ...156

Figura 4 - Mapa mais detalhado da região em que viveu Amadou Hampaté Bâ que

destaca a cidade de Bandiagara. Imagem do livro Amkoullel, o menino fula (2003)

...157

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Introdução

A África no contexto de um mundo descentralizado

Na atualidade torna-se cada vez mais evidente a percepção de que o mundo - e aqui se diga o mundo humano dos sentidos e significados - não suporta mais uma perspectiva hegemônica. A ideia de uma visão única e centralizada sobre o mundo torna-se assíncrona de um momento histórico contemporâneo, que tem evocado e provocado múltiplos (des)encontros entre diferentes pessoas e lugares. É neste cenário que nos reencontramos também com o continente africano.

Ao longo dos anos, em especial a partir da modernidade, o continente africano tem sido retratado por um olhar externo, impregnado de elementos ideológicos, constituídos dentro de uma visão de mundo que prioriza os dados culturais oriundos da Europa.

A África tem sido, ao longo de muitos séculos, alvo de interesses variados; na maioria das vezes esses interesses estiveram ligados à exploração. Nessa perspectiva, não foi possível estabelecer-se uma relação de compreensão e entendimento, na qual o respeito e a valorização dos aportes culturais africanos fossem reconhecidos.

Em praticamente toda a sua extensão territorial, a África é descrita pelo ocidente de maneira diversa, sendo essa descrição alheia ao que de fato acontece internamente em suas culturas. Esse olhar exógeno esteve muitas vezes imbuído de ideologias que justificassem a relação que se desenvolveria com as populações africanas. É nesse sentido que ao menos duas dessas relações se tornaram emblemáticas e, digamos, traumáticas para muitas ações que aconteceriam no continente africano posteriormente. São elas: a escravização, com a consequente disseminação dessas pessoas para o novo mundo, e a colonização que estabelece heranças políticas e econômicas delicadas ao continente africano, visíveis até os dias de hoje.

O continente africano visto dessa maneira acaba por não ser conhecido de fato, já que nesse contexto de uma visão hegemônica e de uma descrição apenas externa, existe uma dificuldade de aproximação com os traços culturais da África.

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O contato com a África solicita a participação efetiva desse continente no diálogo mundial atual, e para isso é preciso reconhecer as suas expressões e os seus modos de pertencimento.

A noção de pertencimento e de identidade não é homogênea para os próprios africanos. Assim, na proposta de irmos ao encontro da África através de alguns dos seus autores, ou seja, da África descrita a partir de sua própria percepção, procuramos trabalhar com autores que a descrevessem de maneira também endógena.

Essa condição descritiva é enfatizada por Castiano (2010)1, que trata essa questão sob a perspectiva do olhar externo, percebido como um olhar objetivo e do olhar interno, denominado de subjetivo. É necessária essa retomada de si mesmo para pensar-se a África no contexto mundial de relações, mas tendo como base a condição de que os africanos se percebam, se reconheçam e passem a dizer quem são e o que buscam, em uma perspectiva também interior de sua identidade. Essa análise e proposta de Castiano coincidem com Fábio Leite2.

Vejamos a sua constatação dessa condição objetiva e subjetiva do continente.

Esta visão periférica é ainda impactada negativamente pela pouca pesquisa de campo e fragilidade de dados realmente concretos, indispensáveis ao conhecimento das sociedades de que se deseja falar, ocorrendo pela combinação desses fatores à configuração da África-objeto a ser dissecada e observada nos microscópios equipados com lentes impróprias para não dizer partidas. (2013, p.36).

Então,

A essa visão periférica opõe-se outra corrente, que se pode denominar de visão interna, nascida de uma metodologia diferencial, isto é, uma metodologia cujos limites são estabelecidos por uma dada realidade concreta, seja ela qual for, e não por outra. Isso é decisivo no processo progressista de conhecimento de vez que faz captar a imagem da África-sujeito e liga-se a uma atitude que deseja conhecer tanto a estrutura como a dinâmica dos processos. (LEITE, 2013, p.36).

A nossa investigação parte deste princípio, de procurar ir ao encontro da África para ouvir os seus agentes intelectuais, saber quem ela é, e, para isso, nos voltamos para a obra “Amkoullel, o menino fula” (2003) como lugar privilegiado para

1

José Paulino Castiano é filósofo e historiador moçambicano do departamento de Filosofia da Educação da Universidade Pedagógica de Maputo.

2

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obtermos essa percepção da África sujeito. Aproximamo-nos do texto como um documento, no qual procuramos compreender a relação oralidade e educação no oeste africano. Neste ponto é válido dizermos que o oeste africano é uma vasta extensão territorial que não se constitui em uma unidade territorial, mas que apresenta uma unidade cultural que estabelece uma proximidade entre os povos que habitam esse local. De acordo com Hampaté Bâ (2003), aspectos como o valor dado à palavra e o respeito aos mais velhos são comuns em todas as culturas.

Para realizarmos essa leitura da obra Amkoullel, o menino fula, precisamos localizar o autor e suas memórias em um contexto histórico maior, procurando compreender o que estava acontecendo na África no período de infância e juventude de Amadou Hampaté Bâ. No período retratado na obra, aproximadamente de 1905 a 1921, pleno período colonial da África, o que estava acontecendo no local?

Temos na África nesse período, de acordo com Conceição (2006), a forma do colonialismo contemporâneo, que fez por ampliar as bases europeias em território africano e boa parte do território asiático. Essa colonização da África é estabelecida pela Europa e procura a afirmação dos países europeus no cenário mundial. A própria divisão territorial africana foi determinada por esses interesses fundamentados em bases econômicas principalmente.

De acordo com Latouche

O ocidente fez mais que modificar seus modos de produção, ele destruiu o sentido de seu sistema social ao qual seus modos estavam fortemente aderidos. Desde então, o econômico tornou-se um campo autônomo da vida social e uma finalidade em si mesmo. As velhas forças onde predominava o ser mais foram substituídas pelo objetivo ocidental do ter mais. (1989, p.22)

Também somos levados a investigar o momento em que essas memórias são trazidas à tona, já que Amadou Hampaté Bâ (1900-1991) coloca essas lembranças no papel, já com a idade de 80 anos. Nessa idade, já havia assistido ao surgimento de vários movimentos pela emancipação africana, em especial o movimento pan-africanista e a negritude. Estes movimentos são fenômenos relevantes na organização dos povos negros na África e nos países em que essa comunidade se fez presente. Ambos buscam uma proposta de identificação de grupo em torno de valores comuns, observáveis na cultura e na própria condição de exploração a que são submetidos os negros em distintas sociedades. Hampaté Bâ é um intelectual formado nesse contexto, tendo participado desses processos de maneira ativa. O

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modo com que essas lembranças são trazidas à tona se torna bastante relevante para termos uma noção mais apropriada do sentido de sua obra.

O texto Amkoullel, o menino fula é um registro autobiográfico da infância e juventude de Hampaté Bâ, que foi publicado após a sua morte por Hélene Heckmann, responsável por sua obra literária. O título original em francês é

Amkoullel, L´enfant peul. A palavra Amkoullel é o modo como Amadou Hampaté Bâ

era chamado quando criança e Fula ou Peul refere-se ao grupo étnico ao qual pertence, que, de acordo com historiadores especialistas em etnias africanas, trata-se de uma etnia que tem origem na África oriental e Península Arábica, mas que foi migrando até o oeste africano em um longo percurso que permitiu que a cultura desse povo seja complexa, revelando traços presentes em outros povos, ao mesmo tempo que mantém as suas características próprias.

O autor escreveu doze obras ao longo de sua vida, tratando na maioria delas sobre a cultura do oeste africano, com ênfase na sua região. Entre as obras escritas por ele, podemos destacar: L´entrange destin de Wangrin; Oui, mon comandante;

Contes initiaques Peul; Contes des Sages d´Afrique; Vie e enseignement de Tierno Bokar-Le sage de Bandiagara; Aspects de la civilisation africaine; Jesus vu par un mulsuman; Kaidara; L´Empire peul du Macina, entre outras. Estas obras estão

publicadas em outros idiomas e mesmo na língua francesa estão disponíveis em diversas edições. Porém, no Brasil apenas Amkoullel, o menino fula está disponível.

Hampaté Bâ era mestre tradicionalista, professor, historiador e filósofo nascido em Bandiagara, no Mali, oeste da África, reconhecido no meio intelectual dos pesquisadores sobre a África como uma das maiores referências sobre a chamada cultura tradicional3. Concordando com Blaise (2012), podemos dizer que o vasto conhecimento de Hampaté Bâ em várias áreas chega ser desconcertante. A sua formação reunia o universo tradicional africano, o conhecimento islâmico e a formação acadêmica europeia, tendo na Universidade Sorbonne, na França, a sua base, o que lhe permitiu desenvolver e aprimorar uma reflexão relevante, capaz de indicar possíveis caminhos para o diálogo entre as culturas tradicionais africanas, o mundo islâmico e o mundo europeu, e assim, contribuir para a reconstrução de uma imagem da África que saiba articular a perspectiva do olhar externo e interno.

3

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A natureza desse encontro ou reencontro entre a África e o mundo ocidental pode estar pautada na busca pelo ser humano, por aquilo que lhe seja mais caro, talvez a ideia de felicidade, de beleza, que para Hampaté Bâ (2010) está configurada na maneira com que o homem se coloca no mundo e no sentido que dá a sua existência, que não é única, tampouco isolada. O homem é com o outro, é com o mundo. Essa visão apresentada por Hampaté Bâ se coloca na contramão daquela que Latouche chama atenção, que tem como característica o modo de consumo estabelecido pelo ocidente, e o desconstrói “à potência mágica dos brancos, ao status ligado a esse modo de vida” (1989, p.27). Um modo de vida que privilegia o acúmulo de bens materiais.

A relevância de Amadou Hampaté Bâ para os estudos sobre a África já era conhecida por seus contemporâneos, entre eles Joseph Ki Zerbo4, que reconhecia a importância cultural e intelectual de Hampaté Bâ para que os dirigentes africanos e os pensadores do continente pudessem refletir a África embasados em um universo próprio de saberes, que já começava a se tornar desconhecido para as gerações africanas mais jovens. Desse modo, nos diz que, “de tempos em tempos, tivemos algumas luzes individuais que brilharam na noite, como faróis ou estrelas dos pastores, como o historiador Amadou Hampaté Bâ, por exemplo.” (2009, p.137).

É nesta perspectiva de reconhecimento da obra desse autor que procuraremos conduzir os estudos sobre a África do oeste sob a ótica da educação, de modo a compreender o valor da educação tradicional africana no próprio continente, assim como na formação da cultura brasileira, já que elementos dessas culturas foram trazidos para o Brasil, através do processo escravista, e desse modo foram sendo incorporados através das culturas negras aqui existentes ao universo da cultura nacional. Conceição (2006) nos diz que o escravismo trouxe para o Brasil cerca de 40% da população africana, o que deixa nítida a necessidade de compreenderem-se os aspectos gerais dessa presença em território nacional com os seus respectivos desdobramentos culturais, políticos, econômicos, sociais e educacionais.

A cultura tradicional africana pauta-se essencialmente na transmissão oral dos seus saberes. Aliás, segundo Ki Zerbo (2010), esse é um dos aspectos que mais a tornam de difícil aceitação na lógica cartesiana ocidental, que entende a

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tradição escrita como uma primazia e até mesmo uma condição superior de civilização em relação aos povos de perspectiva oral. De acordo com Prins (1992, p.163), “os historiadores das sociedades modernas, industriais e maciçamente alfabetizadas – ou seja, a maior parte dos historiadores profissionais – em geral são bastante céticos quanto ao valor das fontes orais na reconstrução do passado”. Devido a esse olhar, a história da África ficou submersa, pois se suspeitava da possibilidade de uma construção histórica sem bases escritas.

Desde o início da história (isto é, da história escrita segundo o método Ranke), a África tem sido vista como o continente a-histórico par-excellence. Esta opinião foi consistentemente sustentada, desde a sentença de Hegel em 1831, de que “ela não é parte histórica do mundo”, até a famosa observação de Hugh Trevor-Roper em 1965, que ofendeu por uma geração os clãs africanistas anticoloniais que rapidamente se proliferavam na época, declarando que a África não possuía história, apenas evoluções sem sentido e tribos bárbaras. (PRINS, 1992, p.164).

Hampaté Bâ (2013) relata que, quando foi falar aos europeus pela primeira vez sobre as tradições orais do oeste africano, conseguiu apenas arrancar risos e alguns chegavam a perguntar, em tom irônico, qual a utilidade dessas tradições para a Europa. Naquele primeiro momento, e ainda sob o impacto dessa rejeição, ele respondeu que seria a de devolver a alegria que a Europa havia perdido. Alguns anos mais tarde, refletindo sobre essa resposta, também acrescentaria que uma certa dimensão humana, pois a civilização tecnológica estaria fazendo desaparecer o ser humano em sua totalidade. Essa visão demonstra o aspecto de centralidade que esses intelectuais europeus atribuem a Europa: é como se o que for estabelecido a partir dessa perspectiva é válido e o que for construído fora dela não.

Essa situação a que Hampaté Bâ foi submetido não é diferente em muitas instâncias do conhecimento, entre elas a filosofia e a história. Na filosofia podemos verificar as análises de Martin Bernal (1987) em sua obra Black Athena em que discute a pretensa origem grega do pensamento reflexivo. E na própria história oral ainda existem desafios a serem superados para revelar e legitimar a oralidade no campo da historiografia. Segundo Thompson (1992, p.45), “na verdade a história oral é tão antiga quanto a própria história. Ela foi a primeira espécie de história. E apenas muito recentemente é que a habilidade em usar a evidência oral deixou de ser uma das marcas do grande historiador”. Nesse contexto, de acordo com Martin Bernal, é interessante pensar que a base da civilização ocidental a partir de uma

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tradição escrita revela fragilidade histórica em si mesma, já que a população grega, assim como a população medieval eram iletradas em sua quase totalidade, o que revela também uma base oral de sua cultura.

A história cultural enquanto escola historiográfica tem sido uma das vertentes que não somente reconhece como também valoriza a investigação através da história oral, sendo ela também uma das bases conceituais na formação de boa parcela de historiadores africanos contemporâneos. Segundo François (2006, p.12), “...a história oral tem uma função propriamente política de purgação da memória...”.

Este trabalho se insere no contexto investigativo da história cultural, tendo nessa linha de pesquisa os elementos metodológicos que possibilitam avançar no encontro com a obra de Hampaté Bâ.

A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objetivo identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler. Uma tarefa deste tipo supõe vários caminhos. O primeiro diz respeito a classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real. (CHARTIER, 1999, p.16-17).

A história cultural tem influenciado muitos pesquisadores africanos contemporâneos, não sendo diferente com Joseph Ki Zerbo. Dessa forma, tem sido possível estabelecer um diálogo dessa corrente historiográfica nascida na Europa com o modo de ser da África. Muitos pesquisadores africanos tem encontrado na história cultural, e mesmo na história oral, os subsídios apropriados para realizar a descrição da representação africana. Vejamos,

Os melhores historiadores reconhecem também que ser historiador é escolher o seu tema, os seus centros de documentação, as suas fontes, os seus argumentos, a sua apresentação, o seu estilo e o seu público. Todos estes fatores de eleição, sem contar com a força violenta e obscura do subconsciente e com o peso sútil do ambiente social e dos preconceitos, mostram bem a parte de subjetividade do trabalho histórico. A partir do momento em que escolhe a todos estes escalões, o historiador procura não somente a verdade, mas também a “sua” verdade. Foi por essa razão que os maiores historiadores sempre tomaram partido nos seus livros, como na sua vida. O grande prof. Marc Bloch, fuzilado pelos nazis, é um exemplo entre muitos outros. (KI ZERBO, 1999, p. 34).

De acordo com Pesavento (2004), a história cultural foi ao encontro do outro, conferindo-lhe autenticidade e valorização histórica. Assumiu os desafios de lidar com o diferente. Nesse contexto, os povos de tradição oral, a partir de suas

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representações, colocam-se na história e fazem história. Ir ao encontro desses povos é tomar posse dos instrumentos necessários para procurar compreendê-los, e nesse aspecto os métodos da história oral têm muito a oferecer.

A diversidade existe, os homens, étnica e culturalmente, apresentam distinções e, nas relações sociais, de poder e econômicas, vivem e reproduzem assimetrias. Mas, em termos da História Cultural, importa resgatar como a diferença é percebida e representada pelos homens, o que implica uma outra abordagem. (PESAVENTO, 2004, p.60).

Pode-se pensar que a história oral “é antes um espaço de contato e influência interdisciplinares; sociais, em escalas e níveis locais e regionais; com ênfase nos fenômenos e eventos que permitam, através da oralidade, oferecer interpretações qualitativas de processos histórico-sociais” (LOZANO, 2006, p.16).

Joseph Ki Zerbo apresenta uma metodologia para se investigar a história da África, em que aborda três aspectos de relevância: a arqueologia, a escrita e a tradição oral5, tendo a tradição oral a grande marca de ser portadora de um saber ancestral, imaginado como sendo talvez o que há de mais próprio da África, refletindo uma possível essência do modo de ser africano. Daí a necessidade de darmos a devida atenção a esse aspecto da história da África. A educação, assim como a história do continente, não pode ser compreendida sem levar em consideração a oralidade nesse universo cultural.

Ao elegermos a obra de Hampaté Bâ (2003), que transita em toda sua narrativa pela tradição oral, como campo investigativo, pensamos estar nos aproximando dessa África profunda, talvez ainda envolta em mistérios, escondida sob véus para a cultura ocidental. O pesquisador Blaise (2010) também denomina essa África da oralidade e da tradição de África profunda. Nesta busca procuraremos esse desvelamento para que ela se diga em suas características.

Retomando a proposta de subjetivação e intersubjetivação6, indicada por Castiano (2010), na qual está estabelecida a necessidade praticamente fenomenológica de deixar a África expressar-se, é que buscamos na obra de Hampaté Bâ uma maneira de nos aproximarmos do continente africano, para responder a nossa questão: Qual o papel que a oralidade desempenha na educação do oeste africano? Esta questão se apresenta como sendo basilar, pois dela parte a

5

Essa metodologia é descrita no primeiro volume da obra História Geral da África (2010).

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Por intersubjetivação Castiano (2010) refere-se à necessidade do diálogo entre os próprios africanos.

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possibilidade de compreendermos não somente o papel da oralidade no continente africano, mas também de nos referenciarmos de modo mais apropriado para compreendermos a oralidade no contexto da cultura negra brasileira e sua utilização nas práticas educativas no país.

É necessário repensar as práticas, os modos como a oralidade se dá no cotidiano dos saberes culturais afro-brasileiros. Com isso pode-se pensar a sua didatização e incorporação efetiva nas práticas pedagógicas. De acordo com Blaise (2010, p.17), “todos os contingentes de escravos aos quais o Brasil deve a sua vertente africana foram, sem exceção, filhos dessa tradição”. Ainda, segundo Blaise essa constatação concorda com a análise do antropólogo Darcy Ribeiro que diz que os negros do Brasil são oriundos em grande parte do oeste do continente africano. Desse modo, a compreensão da oralidade no universo tradicional africano passa a ter uma ligação direta com a cultura negra desenvolvida no Brasil, e consequentemente precisa estar presente na escola não apenas como elemento figurativo, mas como forma efetiva de uma representação dada a partir dos seus membros. A oralidade é elemento formador da identidade e modo de ser da pessoa.

É neste ponto que percebemos também a relevância desta investigação. Embora não seja nosso objetivo responder a questões de como essa implementação da oralidade deverá ser feita na escola, esta pesquisa procura chamar a atenção também para esse aspecto, pois o mesmo é necessário, mediante os desafios da inserção das temáticas africanas e afro-brasileiras nas escolas do país. O estranhamento ou a não compreensão dos aspectos da oralidade no continente africano, em especial no oeste africano, tornam o entendimento das práticas culturais recriadas no Brasil pelos escravizados ainda limitada em sua utilização nos ambientes escolares. Dentre essas práticas pode-se pensar no samba, no maracatu, no jongo, no batuque de umbigada, na congada, na capoeira e no maculelê, por exemplo. Todas essas práticas trazem em seu conjunto algo muito mais profundo do que os aspectos estéticos percebidos em um primeiro olhar.

Para a educação temos a oralidade como forma privilegiada na formação da criança ou do adulto, já que, independente da alfabetização, ela garante não somente a troca de informações - e com isso a transmissão de conhecimentos - como também, segundo Ong (1998), efetiva de modo privilegiado o exercício da memória e da reflexão sobre algo apreendido. Nesse sentido, é interessante pensarmos sobre o trabalho educativo desenvolvido em comunidades quilombolas

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no Brasil, entre elas as do Quilombo Ivaporonduva, localizado no vale do Ribeira no estado de São Paulo, em que, de acordo com Luiz (2013), temos a preservação de um saber ancestral conservado em grande parte devido à transmissão oral, que mantém viva a memória da comunidade. Essas experiências educativas que acontecem em comunidades tradicionais afro-brasileiras, tais como as comunidades quilombolas, são heranças africanas recriadas no Brasil e que de algum modo precisam ser reconhecidas nos conteúdos formais da escola. Observa-se que a presença da oralidade na sala de aula pode ampliar as possibilidades do conhecimento e da participação dos alunos nos processos de aprendizagem.

De acordo com Ferreira (2004, p.151),

Uma reflexão equilibrada sobre o oral não pode mais perpetuar a crença de que, por ser mais natural, mais comum no cotidiano, frequentemente mais espontâneo, é mais fácil do que o escrito e pode prescindir de aperfeiçoamento para a aprendizagem. O oral é a condição essencial para a existência de um idioma e esse atributo merece respeito: é vital no processo interacional humano e merece atenção pedagógica.

.

Essa atenção pedagógica se faz necessária, pois reflete a atenção histórica que se procura dar às comunidades, aos povos de tradição oral.

Na década de 2000 nos deparamos com uma série de conquistas do movimento negro brasileiro, entre elas, a aprovação da Lei Federal 10.639 de 09 de janeiro de 2003, que torna obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas do país. Essa lei foi uma alteração na Lei Federal nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, que vai ao encontro de uma pendência histórica do Brasil em relação a um dos grupos que constituem a sua formação, o negro. A existência dessa lei impõe a necessidade de formação de quadros de educadores para que seja atendida essa demanda, com isto esta pesquisa pode contribuir também com o processo de formação do educador que trabalha com a temática africana, através de um tema central para se entender o fenômeno educacional no contexto da tradição africana. Pode-se, deste modo, potencializar a eficácia da LDB, já que estando amparada pela reflexão atenta aos aspectos étnicos propicia de modo mais efetivo a oportunidade da pesquisa e o reconhecimento de práticas socioeducativas oriundas das experiências das culturas de origem africana.

Ainda tivemos a Resolução nº1, de 17 de junho de 2004, do Conselho Nacional de Educação, fundamentada no Parecer do mesmo Conselho, de 10 de março de 2004, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação

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das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana7.

Nos cursos de formação de professores e de outros profissionais da educação (...) de práticas pedagógicas, de materiais e de textos didáticos, na perspectiva da reeducação das relações étnico-raciais e do ensino e aprendizagem da história e cultura dos afro-brasileiros e dos africanos. (...) Estudo da filosofia tradicional africana e de contribuições de filósofos africanos e afrodescendentes da atualidade. (BRASIL, 2004, p.22).

De acordo com Kabengele Munanga8, quando se pensa a formação do docente e do discente, ainda é necessário que se verifique qual África ensinar e como ensinar, já que os estereótipos sobre a mesma ainda são vários, e a carga de negatividades enorme, sendo muitos os preconceitos a serem vencidos.

A Lei 10.639/03 coloca aos educadores brasileiros uma questão prática ainda não totalmente equacionada. Trata-se de saber que África e que Brasil negro transmitir aos alunos dos Ensinos Básico e Médio. A África é tão complexa e diversa que fica difícil definir por onde começar, sobretudo quando se trata de uma disciplina de iniciação do jovem num terreno repleto de preconceitos acumulados durante o período escravista e colonial que pavimentou a historiografia oficial e persiste até hoje no imaginário. (MUNANGA, 2009, p.9).

É pensando também nessa questão bastante atual que a escolha pela obra de Hampaté Bâ e pelo entendimento da tradição oral e sua ligação com a educação no oeste africano nos parece ser uma porta de entrada válida, principalmente para pensarmos uma história da África na perspectiva da educação brasileira.

No Brasil, sentiu-se durante muito tempo a carência de acesso a materiais históricos e didáticos sobre o continente africano. Tal carência é minimizada na década de 2000 quando leis, projetos e iniciativas públicas e privadas contribuíram para o acesso a uma quantidade maior de material de pesquisa. Um exemplo desse fato é a publicação na íntegra da coleção História Geral da África (2010), cujo original era dos anos 80, mas que, no Brasil apenas eram encontrados em língua portuguesa os três primeiros volumes. No entanto, em 2010, em uma iniciativa do Ministério da Educação, UNESCO e UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) foram disponibilizados em formato impresso e PDF os oito volumes da coleção, que desde a sua proposta original tem sido um marco fundamental para os estudos

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CNE/CP Resolução 1/2004. Diário Oficial da União. Brasília, 22 de junho de 2004, seção 2,p.11.

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(1942-), nascido no Congo e professor da USP do departamento de ciências sociais / antropologia. Também é do Centro de Estudos Africanos da USP.

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sobre a África, já que se constitui em uma perspectiva subjetiva, em que os pesquisadores africanos em sua grande maioria descreviam as principais características do continente, proporcionando então um contato mais próximo com a África. O próprio Amadou Hampaté Bâ é convidado para compor esse grupo de pesquisadores, e no primeiro volume da coleção apresenta um texto emblemático, que tem servido de base desde a sua publicação para compreendermos inicialmente o universo tradicional africano. O texto chama-se Tradição Viva (2010); aliás, é nesse contexto que Amadou Hampaté Bâ será reconhecido internacionalmente como um legítimo membro das culturas tradicionais africanas e um sábio da velha escola ancestral.

Vejamos o que nos dizem os senhores Vincent Defourny, representante da UNESCO no Brasil e Fernando Haddad, então Ministro de Estado da Educação no Brasil, em seu texto de apresentação da Coleção História Geral da África (2010).

A representação da UNESCO no Brasil e o Ministério da Educação têm a satisfação de disponibilizar em português a Coleção da História Geral da África. Em seus oito volumes, que cobrem desde a pré-história do continente africano até sua história recente, a coleção apresenta um amplo panorama das civilizações africanas. Com sua publicação em língua portuguesa, cumpre-se o objetivo inicial da obra de colaborar para uma nova leitura e melhor compreensão das sociedades e culturas africanas, e demonstrar a importância das contribuições da África para a história do mundo. Cumpre-se, também o intuito de contribuir para uma disseminação, de forma ampla, e para uma visão equilibrada e objetiva do importante e valioso papel da África para a humanidade, assim como para o estreitamento dos laços históricos existentes entre o Brasil e a África. (2010, p. 7).

Mesmo no campo literário, a dificuldade de encontrarem-se obras de autores africanos no Brasil era elevada. Algumas iniciativas ainda dos anos 60 e 70 não alcançaram os objetivos almejados, tornando-se pequenas experiências carregadas de forte idealismo, mas sem apoio econômico e logístico adequado para o sucesso das mesmas. Sendo assim, o acesso aos materiais, aos textos e autores consagrados era restrito, tornando a temática algo muito distante da realidade da maioria das pessoas e mesmo dos pesquisadores.

Porém, é necessário destacar o trabalho de intelectuais brasileiros e de africanos radicados no Brasil, que sempre procuraram apresentar no meio acadêmico e mesmo político a relevância da pesquisa sobre a África. É válido ressaltar os pesquisadores Júlio Mourão, Kabengele Munanga, Fábio Leite, Alberto da Costa e Silva, entre outros que há muitos anos cumprem a tarefa de manter viva

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a pesquisa sobre a África no Brasil. Também a criação de vários centros de pesquisa ligados a instituições acadêmicas fez com que estes pioneiros conseguissem agregar discípulos oriundos dos mais variados cursos para compor um quadro de pesquisadores de qualidade.

Ainda mais recentemente, em uma iniciativa também de pesquisadores acadêmicos, vimos o nascimento da Casa das Áfricas, uma organização que tem promovido em parceria com várias instituições nacionais e internacionais ações de relevância no campo da pesquisa sobre a África, já trabalhando uma África diversa e complexa em sua variedade cultural. É da Casa das Áfricas9, em parceria com as editoras Palas Atena e UFBA (Universidade Federal da Bahia), que recebemos as traduções da obra Amkoullel, o menino fula de Amadou Hampaté Bâ e África Negra:

Histórias e Civilizações Tomo I e Tomo II de Elikia M´Bokolo. Essas duas obras,

entre outras que estão sendo disponibilizadas em forma de textos online, estavam disponíveis há muitos anos em idiomas como o inglês e o francês, mas não despertavam o interesse de editoras brasileiras em sua tradução e publicação. É necessário dizer que muitos textos foram traduzidos de forma voluntária pelos iniciadores da Casa das Áfricas, entre eles o Prof. Dr. Acácio Sidinei Almeida Santos e a Profª. Drª. Daniela Moreau.

Sendo assim, desde o texto de Raymundo Nina Rodrigues, Os africanos no

Brasil de 1933, ainda repleto de uma visão europeizada, até agora tivemos um

aumento substancial na quantidade e na qualidade das obras publicadas, o que nos permite uma segurança maior na realização de uma investigação cada vez mais consistente a partir do modo de ser e pensar africano.

Hoje ao ter acesso a esses materiais e a boas traduções, a pesquisa pode ser ampliada, e no nosso caso, esperamos colaborar com esta nova fase investigativa sobre a África, já atendendo as nossas necessidades locais, contribuindo através da educação nas relações África-Brasil.

A partir desse contexto, e procurando analisar melhor o aparecimento desse tema enquanto pesquisa na área da história da educação, buscamos nos anais dos congressos bienais da Sociedade Brasileira de História da Educação10 nos anos de 2002, 2004, 2006, 2008 e 2011 verificar a incidência da temática sobre a África nas pesquisas. 9 Ver www.casadasafricas.org.br 10 Ver www.sbhe.org.br

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A pesquisa revelou o fato de que a temática africana não aparece em nenhum trabalho. Apenas no ano de 2002 temos um trabalho que transita com uma pequena proximidade com a questão, ao investigar alguns grupos africanos no Brasil e seus descendentes, sem contudo fazer uma menção direta ao continente africano ou mesmo a algum autor africano que realize uma análise educativa sobre a África.

As pesquisas encontradas reúnem discussões acerca da condição do negro no Brasil, sendo a maioria voltada à perspectiva de entendimento das relações étnico-raciais na educação, práticas de discriminação e ações voltadas à formação de professores para atuação nessa área. Os trabalhos envolvem pesquisas de campo, análise de documentos e bibliografia.

Entendemos que o maior conhecimento sobre o continente africano, principalmente já especificando alguns tópicos de interesse, poderá não somente fomentar a implementação da lei no Brasil, assim como apontar de algum modo, como já dissemos, outros caminhos para a prática pedagógica no país, ao reconhecer os pontos de correspondência das culturas negras no Brasil e sua proximidade com as culturas tradicionais africanas.

Na atualidade quando se fala em África não se pode mais cometer o equívoco da generalização; a África deve ser compreendida em suas múltiplas nuances, oriundas da sua diversidade geográfica, humana e cultural. Sabe-se o quanto tais dimensões foram minimizadas e estereotipadas em nome de uma homogeneidade. Um olhar que não realizava distinções entre grupos humanos com experiências civilizatórias trilhadas por caminhos próprios. Ao destituir essas diferenciações da categoria de relevância para se estudar o continente, acaba-se por generalizá-lo de tal modo que o melhor que se consegue é então apresentar uma caricatura de sua gente e de suas expressões culturais. Para pesquisadores como Valentin Yves Mudimbe esta é uma das características de uma África inventada.

Dessa maneira, e procurando ser mais coerente com a pesquisa, o presente trabalho será então dividido em três capítulos. No primeiro capítulo procuraremos reapresentar a África de modo subjetivo, através principalmente dos conceitos de imaginário e representação11. A partir desses conceitos, outros surgem como

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Conceitos importantes da história cultural que trabalharemos no primeiro capítulo com o suporte teórico de Sandra Jatahí Pesavento e Roger Chartier.

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suporte de análise, tais como: o unanismo e afropessimismo12, dois conceitos bastante utilizados por pesquisadores do continente e que tem sido alvo de extensas discussões entre os estudiosos.

Analisaremos o continente procurando conduzir a pesquisa sem cairmos em outro campo perigoso, a da idealização fantasiosa, algo que já passa a ser discutido como um afrocentrismo13, uma posição dialética, porém ingênua e equivocada em relação ao eurocentrismo14. Dessa maneira, verificaremos como então têm sido as relações da África com o mundo.

E na obra de Amadou Hampaté Bâ localizaremos o processo histórico colonial e sua implicação para a cultura africana, verificando os impactos socioculturais que colaboraram na formação da identidade africana. Teremos na análise de Ali Mazrui,15 Elikia M´Bokolo16, Kabengele Munanga e de Kwame Anthony Appiah17 e dos historiadores Serge Gruzinski18, Roger Chartier19 e Michel de Certeau20, entre outros, os auxiliares nesta caminhada.

No segundo capítulo adentraremos a questão da memória, e para isto procuraremos entender o papel e a relevância da memória para a cultura tradicional. Verificaremos através das pesquisas de Paul Ricouer21, Maurice Halbwachs22 e Amadou Hampaté Bâ contribuições para se compreenderem as características da memória para a tradição africana, entendendo o conceito de memória coletiva, relacionando memória e história e memória e oralidade.

No terceiro capítulo procuraremos através das práticas e saberes culturais do oeste africano, identificar a questão da palavra na tradição, entendendo a sua ligação com o universo amplo da tradição oral, com a cosmovisão e a espiritualidade, dando ênfase à presença do islamismo nessa região da África e na própria vida de Amadou Hampaté Bâ, que terá nesse universo de formação fortes

12

Estes conceitos também serão tratados no primeiro capítulo.

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Termo conceitual que se refere à tendência de ter a África como centro. Este conceito também será melhor compreendido no primeiro capítulo.

14

O modo como a Europa se coloca como centro do mundo. O local de onde parte os pensamentos e os processos civilizatórios. Um modelo dado e estabelecido.

15

Historiador queniano nascido em 1933.

16

Historiador congolês nascido em 1944. Atualmente é professor na Sorbonne.

17

Filósofo inglês, filho de mãe inglesa e pai ganense nascido em 1954. Atualmente é professor de filosofia na Universidade de Princeton nos USA.

18

Historiador francês nascido em 1949.

19

Nascido em 1943. É também um dos nomes mais conhecidos da história cultural francesa.

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Historiador de origem jesuíta (1925-1986).

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Filósofo francês da corrente fenomenológica (1913 -2002).

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elementos impressos no seu modo de ser e na maneira de conceber a sua identidade. Com isto, esperamos responder a nossa questão em relação à oralidade e à educação no oeste africano.

O desafio para esta jornada não é fácil, tampouco tranquilo. E nesta perspectiva lembramos Ki Zerbo quando fala da função do historiador da África.

O historiador da África, sem ser um mercador de ódio, deve dar à opressão do tráfico de escravos e à exploração imperialista o lugar que elas realmente ocuparam na evolução do continente e que tantas vezes e tão habilmente é minimizado por certos historiadores europeus, com resultados terríveis para a mentalidade dos jovens africanos que nos bancos das escolas se alimentaram destes manjares envenenados. (1999, p.35).

O presente trabalho não é um trabalho de história da África, é antes de tudo uma investigação histórico-filosófica que pretende apresentar a África através de outras possibilidades oriundas da cultura, buscando com isso alcançar as propostas: de reapresentação da África por meio dos seus autores; compreender a oralidade na educação do oeste africano; compreender o valor da educação tradicional africana; auxiliar na formação de quadros de educadores para o trabalho com a temática africana nas escolas; perceber a história da África na perspectiva da educação brasileira e revelar a diversidade africana escapando das generalizações a ela atribuídas.

Este é o desafio de trazer à tona aspectos desta história, já que ao estar ainda muito presente na realidade das pessoas, quer seja na África ou no Brasil, e, portanto, capaz de despertar sentimentos dos mais variados tipos, precisa manter-se aberta ao diálogo, não fomentando a diferença como barreira, tampouco o preconceito como caminho. Aliás, algo que, apesar das dificuldades sociais ainda existentes, a própria cultura africana em sua dimensão artística tem sabido realizar. Sendo assim, o campo da pesquisa investigativa e das relações sociais como um todo pode promover o reconhecimento desses legados históricos como forma de ampliação do olhar contemporâneo sobre a condição humana, e com isso possibilitar novas contextualizações que sejam significativas para a humanidade, colaborando para a proposta de novos caminhos para a educação.

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Capítulo I

A representação africana: avanços e desafios

Olhei para frente. A proa da embarcação fendia as águas sedosas e límpidas do velho rio cuja corrente nos levava, como que para me arrastar mais depressa em direção ao mundo desconhecido que me esperava, à grande aventura de minha vida de homem.

(Amadou Hampaté Bâ)

Um dos desafios impostos ao continente africano através da Europa tem sido o de romper com estereótipos que carregam em si as marcas do colonialismo, o que determina a elaboração de pensamentos e ações que visam à opressão e controle da vida social do colonizado. A imagem e a representação que o colonizador tem de si tende a ser sobreposta à imagem e representação do colonizado.

Segundo Pesavento, “entende-se por imaginário um sistema de ideias e imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo“ (2004, p.43).

E ainda,

A ideia de imaginário como sistema remete à compreensão de que ele constitui um conjunto dotado de relativa coesão e articulação. A referência de que se trata de um sistema de representações coletivas tanto dá a ideia de que se trata da construção de um mundo paralelo de sinais que se constrói sobre a realidade, como aponta para o fato de que essa construção é social e histórica. (PESAVENTO, 2004, p.43).

Segundo o filósofo e historiador polonês Bronislaw Baczko, em seu texto

Imaginação Social (1985), durante muito tempo a palavra imaginação esteve ligada

a algo ilusório ou quimérico e agora passa a ocupar o lugar das coisas reais, mensuráveis e perceptíveis na história do homem. É nesse contexto que tomamos contato com a ideia de imaginário23, e consequentemente com a ideia de representação, ou seja, como representamos estas imagens.

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Ainda sobre o imaginário podemos pensar:

“O imaginário social é, deste modo, uma das forças reguladoras da vida coletiva. As referências simbólicas não se limitam a indicar os indivíduos que pertencem à mesma sociedade, mas definem também de forma mais ou menos precisa os meios inteligíveis das suas relações com ela, com as divisões internas e as instituições sociais, etc. [...] O imaginário social é, pois, uma peça efetiva e eficaz do dispositivo de controle da vida coletiva e, em especial, do exercício da autoridade e do poder. Ao mesmo tempo, ele torna-se o lugar e o objeto dos conflitos sociais.” (BACZKO, 1985. p.310).

“O imaginário é, pois, representação, evocação, simulação, sentido e significado, jogo de espelhos onde o ‘verdadeiro’ e o aparente se mesclam, estranha composição onde a metade visível

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A representação assim formulada é algo fixado sobre si mesmo, mas que está permeando as relações com o outro. Desse modo, a representação da Europa sobre si mesma tende a se sobrepor aos valores de representação da África, ou interfere no modo como estas representações se efetivam. Assim, os africanos tendem a representar-se influenciados através do retrato de um contexto social construído pelo mundo ocidental, ora agregando valores positivos, quando se refere às riquezas naturais do continente, ora negativos, quando se refere às pessoas e culturas africanas. Essa representação assim dada estabelece o surgimento de outras características que tendem a reforçar estereótipos, entre eles a própria desvalorização cultural e simbólica. É neste sentido que de forma violenta e perigosa percebe-se a modificação temporal de velhos (pré) conceitos, que vão adaptando-se às características contemporâneas.

As representações do mundo sociais assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses do grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. (CHARTIER, 2002, p.17).

Através da análise de Chartier pode-se então notar o quanto a constituição da representação europeia exerceu influência e domínio na constituição da representação africana.

De acordo com Pesavento (2004, p.41),

As representações são também portadoras do simbólico, ou seja, dizem mais do que aquilo que mostram ou enunciam, carregam sentidos ocultos, que construídos social e historicamente, se internalizam no inconsciente coletivo, e se apresentam como naturais, dispensando reflexão.

Face a essa condição a descrição que se constrói sobre a África, ainda continua ligada a uma perspectiva oriunda do olhar construído na Europa. Mudimbe

evoca qualquer coisa de ausente e difícil de perceber. Persegui-lo como objeto de estudo é desvendar um segredo, é buscar um significado oculto, encontrar a chave para desfazer a representação do ser e parecer. Não será este o verdadeiro caminho da História? Desvendar um enredo, desmontar uma intriga, revelar o oculto, buscar a intenção?” (PESAVENTO, 1995, p. 24).

“[...] uma realidade tão presente quanto aquilo a que poderíamos chamar de vida concreta, uma dimensão tão significativa das sociedades humanas como aquilo que corriqueiramente é encarado como realidade efetiva [...] sistema ou universo complexo e interativo que abrange a produção e circulação de imagens visuais, mentais, verbais, incorporando sistemas simbólicos diversificados e atuando na construção de representações diversas.” (BARROS, 2004, p. 92-94).

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(1988) dedicou boa parte de suas pesquisas para entender este fenômeno e o quanto ele ainda afeta a vida africana.

Nesta relação dialética na qual os valores da cultura europeia são intencionalmente sobrepostos aos traços culturais dos povos africanos, existe pouco espaço para transformação do modo como se observam os fatos. Esta situação era imposta tanto no período colonial quanto no pós-colonial. Portanto, estava presente no universo vivido por Amadou Hampaté Bâ.

Um empreendimento de colonização nunca é filantrópico, a não ser em palavras. Um dos objetivos de toda colonização, sob qualquer céu e em qualquer época, sempre foi começar por decifrar o território conquistado, porque não se semeia a contento nem em terreno já plantado, nem em alqueive. É preciso primeiro arrancar do espírito, como se fossem ervas daninhas, valores, costumes e culturas locais, para poder semear em seu lugar os valores, costumes e cultura do colonizador considerados superiores e os únicos válidos. E que melhor maneira de alcançar este propósito do que a escola? (HAMPATÉ BÂ, 2003, p.326-327).

Percebe-se nesta reflexão o quanto a representação europeia, forjada ao longo de séculos, fez com que uma série de crenças e valores próprios fossem justificados como válidos, não somente para si mesmo, mas também para o outro. Por isso, a necessidade de darmos atenção a esta relação que se efetiva na prática colonial, pois a partir do colonialismo é que a Europa procura influenciar o modo de ser do africano, e faz isto tendo como aliada também a escola implantada em acordo com o modelo europeu.

Esta reflexão demonstra o quanto a educação é responsável pela reprodução de discursos, e neste caso a substituição de um modelo africano por um modelo europeu de educação carregada de valores culturais próprios se torna auxiliar na constituição de uma representação africana exógena a sua cultura.

As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por ela menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e dominação. As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são seus e o seu domínio. (CHARTIER, 2002, p.17).

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Esses conceitos são fundamentais para o nosso olhar para o continente, e principalmente como Hampaté Bâ (2003) irá procurar dar ênfase à busca pelos elementos culturais africanos para retomar uma educação própria, caso contrário, a representação africana sempre estaria desfocada de si mesma, e assim acabaria por ser projetada à revelia dos símbolos e valores do continente.

Sendo assim, qual a imagem que normalmente se tem da África? Como ela ainda é vista, percebida pelo ocidente? Estas questões nos colocam diante da condição africana, no sentido de buscarmos percebê-la não mais a partir das categorias a ela atribuídas, mas a partir da maneira como ela própria procura apresentar-se (representar-se), a partir dos seus próprios atores, dos seus próprios sujeitos, de suas próprias referências e pertencimento.

Essa noção de pertencimento se dá na perspectiva da relação com o outro, seja ele pertencente ao continente africano ou não. É necessário refletir que tal perspectiva interna, própria do continente africano, não é homogênea, e, portanto, apresenta o que está sendo discutido pelos africanos em relação a sua identidade, local de pertença e consequentemente na maneira como procuram representar-se.

De acordo com Castiano (2010), esta subjetivação e intersubjetivação africana é uma necessidade para rearticulação de sua própria imagem e representação. A subjetivação, que tem por base principal a ideia de que os africanos devem procurar em sua história e experiência civilizatória os elementos que os constituem, se relaciona com a ideia de representação de Chartier (1999), pois exige a análise criteriosa do seu lugar de pertencimento, do lugar que a África se atribui na sua relação consigo mesma, daí também a necessidade da intersubjetivação, ou do diálogo com os seus próprios atores, mas também com o mundo a sua volta. A representação africana requer a apropriação eficiente e consciente de si mesma, e para tanto não pode estar refém apenas do olhar que o ocidente lhe atribui e com o qual a categoriza.

No caso da África, nota-se a necessidade de ouvi-la, para que se possa então estabelecer mecanismos mais eficazes para se pensar a sua inserção no mundo, assim como as suas condições de desenvolvimento, tendo a educação como vetor principal para o desencadeamento desse processo. E, como nos diz Kabengele Munanga, “é através da educação que a herança social de um povo é legada às gerações futuras e inscrita na história” (2010, p.35). Nesse contexto, Hampaté Bâ (2003) nos diz que a retomada do modelo de educação da África tradicional é um

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dos caminhos possíveis e necessários para que essa construção da representação africana a partir de si mesma possa ser feita a contento. A escola ou núcleo de formação tradicional é uma possibilidade concreta de recondução do africano para o continente africano. De acordo com a análise de Hampaté Bâ, pode-se dizer que o processo colonialista na África teve além da exploração material do ambiente a intenção de modificar o olhar do africano para si mesmo, para a sua cultura, estabelecendo então condições de estranhamento e descontentamento de sua própria cultura, em favor da cultura europeia.

Ainda sob essa perspectiva da educação é válido ressaltar que os povos e culturas que passaram ou passam pela opressão acabam por estabelecer mecanismos de resposta à condição a que são submetidos, a princípio como táticas individuais, mas depois existe a organização dessas respostas e a constituição de um espaço de confronto, de onde permite a sua articulação, agora como uma estratégia, mesmo diante do quadro da negação ou subordinação impostos a esses grupos pela cultura dominante. Nesse sentido, de acordo com Michel de Certeau (2004), temos estabelecida uma lógica de invenção, na qual o sujeito explorado redesenha o seu destino com criatividade, estabelecendo então um sentido de vida em que se utiliza e aproveita daquilo que outrora seria um mero mecanismo de poder e exploração. Essas culturas assim adaptadas, e permanentemente sendo modificadas em acordo com a dinâmica existencial, possibilitam uma ruptura nas ordenações do poder e na maneira como este tenta estabelecer um controle sobre a sociedade.

Os conceitos de tática e de estratégia são categorias desenvolvidas por Certeau para analisar as relações sociais estabelecidas e o modo como as pessoas em condição de subjugação social e cultural conseguem transformar o seu cotidiano, reinventando modos de fazer e operar com as coisas dadas em acordo com as condições disponíveis. A isto Certeau denominou tática. Já o conceito de estratégia é atribuído a quem está no poder, aquele que desfruta de um local do qual projeta o seu olhar para o outro e com isso articula e procura formular os mecanismos de controle social e cultural. No entanto, quando os grupos dominados se organizam e se articulam, eles também passam a elaborar estratégias de resposta ao dominador, e aí sim estabelecem uma condição de confronto que visa a modificações nos quadros dados. No caso da educação como apresentada por Hampaté Bâ (2003) é uma condição essencial da organização africana em torno de sua cultura, a

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reapropriação da condição necessária de garantir a educação dos africanos voltados para África, e assim prepará-los para dialogar com o outro, com o mundo.

É também com essa perspectiva de reinvenção do seu cotidiano que a África e os seus filhos na diáspora fizeram por elaborar uma nova estrutura de participação e discussão de sua condição no mundo. Essa representação do continente passa então a ser da maior valia nas relações a serem estabelecidas com o mundo ocidental, já que nesse contexto a compreensão do africano sobre si mesmo passa não mais a ser permeada por valores apenas constituídos na Europa, normalmente valores que os destituem de uma condição civilizatória. O que se tem a partir dessa apresentação de Hampaté Bâ (2003) é a oportunidade e o direito de o africano reconhecer-se e apropriar-se de sua história e dos seus traços civilizatórios a partir do reconhecimento de elementos próprios oriundos de sua cultura.

A partir dessa percepção vários processos de resistência à opressão infligida ao continente tiveram como vetor principal a ideia de recuperação e preservação de traços culturais comuns que garantiam a dignidade da condição humana, mesmo em um contexto de colonização. Nesse momento, a intensidade na busca por essa nova representação africana se fez cada vez mais frequente. Amadou Hampaté Bâ tem sua contribuição efetiva nesse contexto, principalmente ao afirmar o valor da tradição africana e a sua forma de transmissão, o seu modo de promover a educação, cuja chave é a oralidade.

Porém, antes de avançar sobre esta questão é pertinente ainda compreender um pouco mais o que ocorreu historicamente no continente africano, e mesmo dos negros na diáspora, na busca pela constituição da sua representação, os caminhos pelos quais ela foi forjada, os seus desafios e principalmente por que a perspectiva de Hampaté Bâ em favor dessa representação é válida, seja na África ou aos negros na diáspora.

Através da narrativa de Amadou Hampaté Bâ no conjunto de suas obras, aquelas com as quais nos deparamos e investigamos, em especial Amkoullel, o

menino fula (2003), assim como através de outros autores que nos auxiliam neste

percurso, procuramos então propor um trajeto que consideramos válido e relevante em termos históricos no sentido de compreender por que determinadas palavras e ações foram ditas e realizadas na busca por essa representação, a isto nos referimos a própria organização dos movimentos negros e africanistas. O impacto desses movimentos, seja no continente africano ou na diáspora é significativo,

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marcando o início dos processos de independência desses países. Assim como ajudam a organizar em torno de um símbolo comum a condição racial, as mesmas angústias e traumas oriundos do processo escravista e colonial. Nesse aspecto, verificaremos ainda como hoje tem sido discutida pelos intelectuais africanos ou africanistas a proposta de uma unidade africana baseada no conceito racial e como ela é apropriada pelos negros na diáspora.

A história da África, assim como a história dos negros, passa a ser reescrita por eles mesmos a partir daquilo que lhes era mais próximo em suas culturas, com os valores e símbolos que revelam uma identificação comum e a possibilidade de uma identidade africana.

Esse cenário assim constituído nos dá uma dimensão mais pormenorizada do pensamento de Hampaté Bâ, já que ele não somente viveu a sua infância e juventude no período colonial africano, como viveu a experiência da educação tradicional na África e a educação europeia, assim como o ápice de criação e manifestação dos movimentos de identidade negra. Desta maneira, esteve convivendo com essas discussões, sendo bastante ativo nesse universo por ser um dos poucos representantes da cultura tradicional africana aptos a dizer o que ela é e o que significa. Hampaté Bâ assistiu aos processos de independência dos países africanos e às dificuldades na consolidação dos novos estados-nação. Portanto, esse trajeto se faz pertinente para nos aproximarmos do continente africano e mais ainda da África do oeste.

É necessário ter uma maior proximidade com o lugar de pertença de Hampaté Bâ, o que nos prepara para investigar a oralidade na educação, a partir então de algo factível, acessível a nossa condição, por não estarmos pisando no solo africano, de não estarmos em campo no sentido prático do termo. Para entendermos melhor o desafio dessa distância cultural e geográfica é válido entender o que afirma Appiah,

A maioria das pessoas de hoje sabe como é difícil avaliar a vida e as pretensões de outras culturas e tradições sem cair presa dos preconceitos decorrentes das perspectivas das nossas. Quando deixamos de avaliar os outros com imparcialidade, torna-se muito improvável receber deles tratamento imparcial. Esse tipo de etnocentrismo24, por mais que nos aflija, já não tem como nos surpreender. (1997, p.22).

24

De acordo com Paula Carvalho (1994) o etnocentrismo consiste em dar privilégio a um universo de representações, propondo que o mesmo seja um modelo a ser seguido. Com isto, reduzem-se à insignificância os outros universos e culturas.

Referências

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