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Capítulo II: A questão da memória

II. 3 – Memória e Oralidade

Os historiadores culturais têm procurado, segundo Pesavento (2004), maturar e aprimorar os mecanismos investigativos e metodológicos da história, com o intuito de serem mais coerentes quanto possível com a pesquisa sobre outros povos. A historiografia, ao reconhecer outras experiências civilizatórias, tem contribuído significativamente para a reordenação dos diálogos mundiais entre os diferentes povos. Essa função social demonstra um comprometimento científico também por parte da história com a correção de erros do passado, que somente fizeram alargar as distâncias entre os povos. Infelizmente, de acordo com Ki Zerbo (2010), no caso africano esses erros ocasionaram anos de atraso para as pesquisas. E mesmo o interesse para as temáticas relacionadas ao continente africano ficou em segundo plano, quando se pensava o número de pesquisas em história sobre outros lugares do mundo.

O continente africano continuou a ser descrito imerso na obscuridade, no exotismo e no primitivismo. Portanto, tornar significativo o papel da memória na constituição da tradição oral e, consequentemente, na estruturação da história africana possibilitou a ampliação do olhar sobre o continente, e, nesse caso, exigiu a alteração do modo como se investiga a África, fazendo revelar o quanto esse continente ainda é desconhecido.

De acordo com Hampaté Bâ (2010), o entendimento das tradições africanas é primordial, seja no contexto social, econômico ou cultural, já que a partir dele é que comunidade se organiza. A educação também se baseia nos valores oriundos da tradição, ou seja, da tradição oral. É com o entendimento da tradição que se pode aproximar do continente africano com a atenção necessária para não sufocar as expressões culturais locais e as formas de gerenciamento da sociedade comunitária, perfil este que caracteriza os grupos que preservam a tradição.

A memória cultivada pelos tradicionalistas é, segundo Hampaté Bâ (2003), a narrativa profunda da África, do modo de ser do africano e de uma maneira de se estar no mundo. Essa memória se expressa na oralidade, sendo que a oralidade é tudo, é, na perspectiva dos tradicionalistas africanos, a própria vida, a existência como um todo. Por isso, Chartier (1999, p.20) diz: “propomos que se tome o conceito de representação num sentido mais particular e historicamente determinado”. É dessa maneira que o contato com esse modo de ser define uma

representação que a tradição oral procura revelar e perpetuar através da educação. Esta é a subjetividade que Castiano propõe, sendo, pois, a oralidade, de acordo com Hampaté Bâ, o caminho mais íntimo que revela a África e sua gente.

A partir da oralidade ou tradição oral, temos a configuração social dada, que permite ao pesquisador reconhecer através dos traços dessa cultura tanto os caminhos percorridos, como também perceber os desafios que se apresentam na consolidação de uma representação. Desde o período da colonização a consciência histórica62 de um povo baseada em suas formas de vida era alvo de ataques dos dominadores, pois, de acordo com Munanga (2009), ela estabelece a coesão na comunidade a ser dominada e fortalece a noção de pertencimento. Nessa perspectiva, na África do oeste foi possível verificar o esforço realizado pelo dominador para coibir a educação oriunda da tradição oral, pois ela fortalecia a consciência histórica do grupo.

No continente africano, durante o período colonial, as escolas ocidentais cumpriam um papel auxiliar na tentativa de impor a cultura europeia em detrimento da cultura local.

A maior parte do ensino – como em todas as escolas primárias nativas locais – consistia em nos fazer aprender a ler, escrever e, sobretudo a falar corretamente o francês. O ensino de matemática elementar limitava-se às quatro operações básicas: adição, subtração, multiplicação e divisão. Depois de um ano ou dois, os alunos que haviam conseguido um número de pontos suficiente eram enviados a uma escola regional onde se preparavam para as provas do certificado de estudos primários nativos, necessário para frequentar a escola profissional de Bamako. (HAMPATÉ BÂ, 2003, p.231).

Esse é um exemplo do percurso que a criança e o adolescente africano deveriam percorrer. Nesse período, a criança era sucessivamente afastada de sua cultura. De acordo com Hampaté Bâ, até mesmo o uso das línguas locais era coibido. Munanga (2009, p.35) diz que “é através da educação que a herança social de um povo é legada às gerações futuras e inscrita na história. Privadas da escola tradicional, proibida e combatida para os filhos negros a única possibilidade é o aprendizado do colonizador”. A criança e o jovem nessa condição eram, segundo Munanga e Hampaté Bâ, conduzidas a aceitar uma memória imposta pelo

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Para Munanga, a consciência histórica, refere-se à apreensão por parte das pessoas da história comum, da história do grupo. Dessa maneira, define-se para o indivíduo a condição de pertença ao grupo e o comprometimento em cuidar desta memória comum.

colonizador e que não faz referência a sua própria história e o local que habitam. Eram, desse modo, levadas a aceitar a representação do dominador.

Segundo Munanga, ao analisar essa questão educacional na África e também a comparando ao processo escravista no Brasil, é possível perceber que “... o afastamento e a destruição da consciência histórica eram uma das estratégias utilizadas pela escravidão e pela colonização para destruir a memória coletiva dos escravizados e colonizados.” (2009, p.12).

Para Munanga, essa consciência histórica é mais sólida nas comunidades de tradição oral, pois se preserva em muitas das narrativas dos memorialistas, que, ao transmitirem os mitos fundantes da comunidade, dão continuidade a um processo ancestral, portanto histórico.

A África tem sido despertada para sua história, uma história contada por ela mesma, tendo na tradição oral os principais elementos que caracterizam um modo de ser africano que propicia uma representação mais próxima de sua identidade cultural. É assim que as representações do continente para si mesmo e para o outro têm sido alteradas. O reconhecimento dos valores culturais africanos pelos próprios africanos tornou-se o diferencial para muitos países do continente em seu processo de independência e da sua autonomia pós-colonial. Alguns presidentes dos novos países africanos procuraram impulsionar esses novos estados a partir dessa cultura original do continente. Esse foi o caso, por exemplo, do presidente Sékou Touré da Guiné, que em seu governo fez questão de apresentar a imagem do país, interna e externamente, a partir de suas culturas tradicionais, todas elas amparadas na oralidade.

É sob o comando desse presidente que começaram a eclodir na Guiné os chamados Ballets africanos63, que levavam para os palcos nacionais e internacionais as epopeias históricas narradas nas aldeias de toda a Guiné. É com essa experiência que o mundo começou a ter contato com um universo de informações

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Os ballets africanos, a partir do exemplo da Guiné, passaram ao longo dos anos a ser um canal relevante de visibilidade das culturas dos países africanos no mundo. Através dos ballets a tradição oral, a história, a música, a dança e o canto oriundos da África, e normalmente conhecidos apenas em suas comunidades, puderam ser apreciados e compartilhados. Um exemplo desse fenômeno foi a experiência do percussionista guineano Mamady Keita (1953 - ), que através do ballet da Guiné conheceu a Europa, e hoje mantém uma rede de escolas de percussão tradicional malinke (grupo étnico), espalhada por vários países e continentes. Ver http://www.mamadykeita.info/ e http://www.ttmusa.org/

outrora desconhecido. É assim que histórias como a de Soudjiata Keyta64 líder do Império mandinga em territórios que hoje abrangem o Mali, o Senegal e a Guiné puderam ser conhecidas e popularizadas, sendo transmitidas, ao modo tradicional dos mestres da palavra, com cantos e danças, tornando-se uma comunicação viva, típica da cultura oral.

A representação africana mediada pela tradição oral permitiu que a memória coletiva de africanos e afrodescendentes em todo o mundo pudesse ser reconstituída, ao colaborar de modo significativo com a identificação cultural dessas pessoas em torno de símbolos familiares que possibilitaram uma reconstrução de identidade, na qual os valores culturais do ocidente não seriam apenas sobrepostos ao indivíduo, algo que facilita a constituição de uma autoestima negativa. Houve, de acordo com Munanga (2010), um enfrentamento dessa condição imposta pelo dominador.

Essa resistência tem base fundamental na memória e oralidade, pois foi graças a esse legado que foi possível manter e estabelecer a transmissão de símbolos que identificavam as pessoas em torno de valores comuns. Isso ocorre tanto na África como na diáspora, não sendo diferente no Brasil. Foi a partir dessa identidade reconstruída que se consolida o processo histórico para os africanos na contemporaneidade. De acordo com Vansina (2010), a memória africana, de modo geral, surpreende pelo seu alcance e espanta pelo seu registro detalhista. A tradição oral tem na memória o aliado indispensável para sua continuidade.

Vejamos um exemplo dessa memória através de Hampaté Bâ e de como as pessoas reagiram quando se deparam com o manuscrito do livro Amkoullel, o

menino fula.

Muitos amigos que leram o manuscrito mostraram-se surpresos. Como é que a memória de um homem de mais de oitenta anos é capaz de reconstituir tantas coisas, e principalmente, com tal minúcia de detalhes? É que a memória das pessoas da minha geração, sobretudo a dos povos de tradição oral, que não podiam apoiar-se na escrita, é de uma fidelidade e de uma precisão prodigiosas. Desde a infância, éramos treinados a observar, olhar e escutar com tanta atenção, que todo acontecimento se inscrevia em nossa memória como em cera virgem. Tudo lá estava nos menores detalhes: o cenário, as palavras, os personagens e até suas roupas. (2003, p.13).

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(1190 - 1255) - A história do Rei Leão, como também era conhecido, é um dos grandes marcos das narrativas que contam a saga de algumas etnias e civilizações da costa ocidental africana.

A característica da memória africana descrita por Hampaté Bâ é algo peculiar aos povos do oeste africano, que na sua maioria são considerados povos da palavra. Mesmo que a escrita exista esse recurso não é sobreposto à condição da palavra falada. A palavra escrita para esses povos não dá conta de tudo o que a palavra falada representa para eles.

De acordo com Vansina (2010), o pesquisador que trabalha com os povos de tradição oral precisa compreender a natureza discursiva presente na oralidade, que é diferente de uma civilização de tradição escrita. Essa condição é fundamental para que se consiga apreender os modos e símbolos contidos nessa forma de organização social. Essa é uma preocupação constante em Hampaté Bâ (2003) quando descreve aspectos da tradição oral, que, se não forem devidamente compreendidos inicialmente, torna o desenrolar desse encontro entre a civilização oral e escrita praticamente impossível; é como se fossem mundos completamente distantes.

Segundo Vansina, “uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave, isto é, a tradição oral.” (p.139-140). Pode-se perceber o quanto o valor da ancestralidade é presente e necessário para os povos de tradição oral. Esse é outro aspecto relevante da cultura, a questão da ancestralidade. De acordo com Leite (2008), o ancestre está ligado ao mundo dos que não são mais visíveis fisicamente no plano material, mas que nele exercem sua influência ao serem lembrados, e assim, fazem parte da memória da comunidade.

Desse modo Vansina nos diz,

A tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para outra. Quase em toda parte, a palavra tem um poder misterioso, pois palavras criam coisas. Isso, pelo menos, é o que prevalece na maioria das civilizações africanas. (2010, p.139-140).

Nessa perspectiva, nota-se que existe o desafio do outro de compreendê-lo em suas características, em seus modos, em seu contexto civilizacional. A representação do ocidente, no entanto, fez por impor um modo considerado válido para significar as coisas, algo que a representação africana, principalmente aquela oriunda das tradições orais, aparece como diferente, como um contraponto ao modo de olhar estabelecido. Por isso, enquanto essas diferenças de olhar não forem

compreendidas, torna-se praticamente impossível desenvolver-se a contento uma pesquisa dos povos e culturas africanas em suas especificidades e singularidades. Um dos aspectos que Hampaté Bâ percebe como sendo talvez de maior dificuldade de aceitação e compreensão é a ausência de distinção entre espiritualidade e materialidade presentes na tradição. Para o autor, estas características não são simples de serem explicadas na lógica de pensamento ocidental, tampouco são aceitas com facilidade. Deste modo relata que,

Outra coisa que às vezes incomoda os ocidentais nas histórias africanas é a frequente intervenção de sonhos premonitórios, previsões e outros fenômenos do gênero. Mas a vida africana é entremeada deste tipo de acontecimentos que, para nós, são parte do dia-a-dia e não nos surpreendem de maneira alguma. Antigamente, não era raro ver um homem chegar a pé de uma aldeia distante apenas para trazer a alguém um aviso ou instruções a seu respeito que havia recebido em sonhos. Feito isso, simplesmente retornava, como um carteiro que tivesse vindo entregar uma carta ao destinatário. Não seria honesto de minha parte deixar de mencionar este tipo de fenômeno no decorrer da história, porque faziam e sem dúvida, em certa medida ainda fazem parte de nossa realidade vivida. (2003, p.15).

Nesse sentido, Hampaté Bâ ainda nos diz de distinções no próprio conceito de culturas africanas, distinções estas que especificam particularidades étnicas e civilizacionais no interior do próprio continente. Porém, apresenta os pontos de proximidade entre estas culturas, e aqui se percebe em que momento o autor então pode reconhecer certa unidade africana, e em que aspectos culturais ele a coloca.

Quando se fala da “tradição africana”, nunca se deve generalizar. Não há uma África, não há um homem africano, não há uma tradição africana válida para todas as regiões e etnias. Claro, existem grandes constantes (a presença do sagrado em todas as coisas, a relação entre os mundos visível e invisível e entre os vivos e os mortos, o sentido comunitário, o respeito religioso pela mãe etc.), mas também há numerosas diferenças: deuses, símbolos sagrados, proibições religiosas e costumes sociais delas resultantes variam de uma região a outra, de uma etnia a outra; às vezes, de aldeia para aldeia. (2003, p.14).

Hampaté Bâ é um pesquisador, um conhecedor de muitas tradições do oeste africano; o contato com diferentes culturas dessa região desde a sua mais tenra idade permitiu-lhe tomar contato com modos de vida, idiomas, ritos e símbolos que o ajudaram a fazer uma leitura mais aprimorada dos pontos de semelhança e distinção entre eles. No entanto, Hampaté Bâ faz questão de dimensionar esse conhecimento sobre a África, evitando, desse modo, generalizações ou mesmo tecer considerações sobre culturas que não conheceu no continente africano. Nesse

sentido, procura localizar a sua análise, demonstrando exatamente o seu lugar de pertença e das culturas que ele descreve.

As tradições a que me refiro nesta história são, de maneira geral, as da savana africana que se estende de leste a oeste ao sul do Saara (território que antigamente era chamado Bafur), e particularmente as do Mali, na área dos fula-tucolor e bambara onde vivi. (2003, p.14).

De acordo com Vansina (2010, p.140), “a oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade”. A oralidade determina um modo de ser, de pensar, de agir, ou seja, todo um modo de educar e aprender estão configurados no universo tradicional. Sendo assim, o cuidado com a sua preservação, com as suas características é para Hampaté Bâ (2003) de fundamental necessidade para os africanos no entendimento de si mesmos e no estabelecimento de sua representação, já que dela se origina o sentido de vida. Assim,

A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados. Ao passar do esotérico para o exotérico, a tradição oral consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes de acordo com o entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidões humanas. Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recriação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade primordial. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.169).

De acordo com Hampaté Bâ, a visão de unidade e inteireza que o africano tradicionalista tem da vida e a interação entre os seres é determinante para um modo de ser, no qual a sacralidade da palavra é preservada. A palavra falada é, segundo a concepção da tradição oral, o elemento capaz de aproximar ou afastar os seres no mundo, desse modo, está revestida de respeito e responsabilidade, não podendo ser utilizada em vão. Por isso, os mestres da palavra, os memorialistas ou tradicionalistas são respeitados na África.

Segundo Hampaté Bâ (2010, p.178),

Se o tradicionalista ou conhecedor é tão respeitado na África, é porque ele se respeita a si próprio. Disciplinado interiormente, uma vez que jamais deve mentir, é um homem bem equilibrado, mestre das forças que nele habitam. Ao seu redor as forças se ordenam e as perturbações se aquietam.

A educação que está ligada ao universo da tradição oral busca uma educação para a vida, para a totalidade das relações e interações humanas, assim como para o autocontrole. A fala, ao ser portadora do poder da criação, deve ser observada, medida, pois é a expressão do interior da pessoa. Diz-nos Hampaté Bâ: “falar pouco é sinal de boa educação e de nobreza. Muito cedo, o jovem aprende a dominar a manifestação de suas emoções ou de seu sofrimento, aprende a conter as forças que nele existem...” (2010, p.178).

No entanto, aqui é importante compreender que no universo da cultura africana de tradição oral, especialmente no Mali, existem diferentes funções sociais e pessoas que se utilizam da palavra. Os que seguem um rígido processo de iniciação e que são comprometidos com a verdade são os chamados doma, ou seja, tradicionalistas ou memorialistas. Nestes, a memória é um documento válido e verdadeiro. Já para os dieli ou griot, a disciplina da verdade não existe. De acordo com Hampaté Bâ (2010), a tradição lhes concede o direito de travestir ou embelezar os fatos, mesmo que de modo grosseiro, pois o objetivo é apenas divertir os ouvintes.

No entanto, nos diz Hampaté Bâ,

Ao contrário, nenhum africano de formação tradicionalista sequer sonharia em colocar em dúvida a veracidade da fala de um tradicionalista, doma, especialmente quando se trata da transmissão dos conhecimentos herdados da cadeia dos ancestrais. (2010, p.179-180).

Somente nesta distinção entre doma e dieli, pode-se perceber o quanto o contato com o próprio universo africano a partir dos seus locutores é necessário. Esse tipo de distinção não seria percebido ao olhar externo, pois aparentemente eles não se distinguem, pois tanto o doma quanto o dieli, estão no universo da tradição, e têm na palavra o seu meio de interação social. Ambos ocupam um papel cultural e educativo na sociedade do oeste africano, porém com características próprias. O valor do doma evoca também um saber metafísico, além do saber histórico, o que também já é um desafio ao pesquisador ocidental, que em sua formação racionalista dificilmente colocaria esses conhecimentos no mesmo nível de relevância e significação.

O doma, ao também ser iniciado no universo da espiritualidade e da ancestralidade, traz consigo uma carga de responsabilidades distintas; é sobre ele que repousam os valores mais profundos e longínquos da sua cultura, e é sobre ele

que está a responsabilidade da herança e continuidade do saber, até mesmo sobre a função e o papel do dieli. Portanto, o doma é, ao que nos parece, o guardião por excelência da tradição.

Deste modo, Hampaté Bâ nos diz que,

Antes de falar, o Doma, por deferência, dirige-se às almas dos antepassados para pedir-lhes que venham assisti-lo, a fim de evitar que a língua troque as palavras ou que ocorra um lapso de memória, que o levaria a alguma omissão. (2010, p.180).

Vejamos um exemplo oferecido por Hampaté Bâ (2010) da maneira como um doma inicia uma história ou uma aula. Neste caso, ele está se referindo a Danfo Siné, um grande sábio da etnia bambara, que Hampaté Bâ conheceu na infância.