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Capítulo II: A questão da memória

II. 1 – A memória coletiva

A memória coletiva exposta por Halbwachs, embora, segundo Ricouer, seja herdeira da perspectiva de consciência coletiva de Émile Durkheim, não nega

campos de decisão individual, não sobrepondo apenas valores externos ao indivíduo como seus determinantes, já que, para Halbwachs, a mudança social é também motivada pelos indivíduos, que com essa perspectiva também alteram os quadros sociais existentes, estabelecendo com isso outros determinantes, o que significa dizer que, se somos alterados pelo meio, sobre ele também promovemos mudanças, a partir dos diferentes contatos que estabelecemos com um mesmo dado trazido pela memória. O sujeito não está inerte diante da sua existência. Se assim entendermos essa perspectiva, a proposta de memória coletiva estabelecida por Halbwachs nos permite dialogar com a ideia de memória no oeste africano.

Para Halbwachs (2006, p.30), “as nossas lembranças são sempre coletivas, pois jamais estamos sós”. De acordo com este autor, estamos sempre acompanhados, independentemente da presença física do outro. O outro sempre é presente pelas impressões que encontram semelhança em nossas lembranças, ou mesmo em nossas significações. Essa análise encontra correspondência na cultura africana, segundo Hampaté Bâ (2010), embora em uma perspectiva mais voltada a um modo de percepção ontológica, que destaca o papel da ancestralidade no conjunto das lembranças do sujeito. Percebemos então uma relação não somente física com os dados da memória, mas também espiritual, expressa no conjunto simbólico e ritual dessas culturas, no qual os antepassados se fazem presentes no contexto da sociedade através da lembrança dos seus feitos.

Até o momento, ao tratar da memória estamos destacando um dos seus aspectos que têm a ver com a lembrança ou rememoração. Na realidade é a memória voltada a ela mesma, aquilo que nela esteja impresso, guardado. Para Halbwachs, a memória não está somente no indivíduo, mas nas coisas, nos objetos, e ao observá-los ou termos contato com eles nos lembramos, recordamos.

É preciso pensar que existe outro aspecto da memória que é o registro intencional de algo, aspecto este refletido por Ricouer. É válido salientar uma distinção entre memorização e rememoração. Para esse autor, a rememoração é o retorno à consciência desperta de um acontecimento que se reconhece ter acontecido antes do momento que esta declara tê-lo percebido, sentido. Desse modo, diz: “a marca temporal do antes constitui, assim, o traço distintivo da recordação, sob a dupla forma da evocação simples e do reconhecimento que conclui o processo de recordação” (2007, p.73).

...em contrapartida, consiste em maneiras de aprender que encerram saberes, habilidades, poder-fazer, de tal modo que estes sejam fixados, que permaneçam disponíveis para uma efetuação, marcada do ponto de vista fenomenológico por um sentimento de facilidade, de desembaraço, de espontaneidade. (p.73).

Nesse contexto refletido por Ricouer, a perspectiva de memória de Halbwachs está vinculada à ideia de rememoração. O que vemos hoje em um lugar, ou uma coisa, baseia-se na realidade não somente nas impressões daquele momento, mas em muitas impressões já vivenciadas e sentidas por outro sobre aquele mesmo local ou coisa. “É como se estivéssemos diante de muitas testemunhas” (HALBWACHS, 2006, p.29).

Para Halbwachs, é como se no momento da lembrança existissem dois seres no eu: um é o ser sensível, uma espécie de testemunha que observa, e o eu, que realmente não viu, mas que talvez tenha visto outrora e que pode ter uma opinião baseada no testemunho dos outros. De acordo com o autor, é necessário evocar em nós mesmos lembranças, e assim juntá-las às lembranças exteriores para que se torne uma consistente massa de lembranças. Esse aspecto é relevante, pois o parece conferir legitimidade maior aos dados da memória. É nesse contexto que se pode então estabelecer a credibilidade dos fatos rememorados.

Essas análises de Halbwachs coincidem em grande parte ao que é proposto pela cultura tradicional africana. De acordo com Hampaté Bâ (2003; 2010), a cultura do grupo é mantida na memória de seus membros, que ao interagirem e proporem ritos comuns, renovam laços de parentesco, de proximidade e legitimam a memória comum, constituindo assim a história.

Esse aspecto está relacionado à ideia ampla de comunidade ou coletividade. Esse princípio de alteridade é condição fundamental para o estabelecimento da memória e o seu reconhecimento como dado relevante na cultura africana. Se Halbwachs, assim como Hampaté Bâ (2003), observa na coletividade o ponto de apoio do pesquisador ao trabalhar com a memória, este então pode ser um elemento de validade e relevância, assegurando, desse modo, a necessidade de reconhecer no aspecto coletivo um aliado para a credibilidade da memória. Para os dois autores o homem sempre está inserido em um grupo, ele nunca está sozinho, mesmo que aparentemente esteja só.

Para Halbwachs, existe a necessidade social, a sociedade, para afirmar a lembrança. Daí, não nos lembrarmos de nossa primeira infância na qual não se estabelece uma consciência social. A partir dessa perspectiva, nota-se o quanto a cultura tradicional do oeste africano preserva o convívio social, a comunidade. O fato de estar em comunidade não retira o papel da subjetividade do indivíduo.

Diferentes impactos são vividos por membros de um mesmo grupo, baseados nas posições que estes ocupam em um mesmo momento, assim como a sua condição psíquica diante dos mesmos. O fato de participarem de um grupo não os torna iguais em suas percepções, elas continuam particulares e individuais, mesmo que o seu processamento não seja isolado e esteja o tempo todo mediado pelos outros. De acordo com Halbwachs, a memória coletiva deve encontrar-se com a memória individual. Nesse aspecto é como se a memória individual estivesse sob a lógica da memória coletiva.

No processo de desenvolvimento da pessoa humana nota-se a sua gradativa inserção no convívio social, o que a aprimora ao longo da vida, habilitando-a para o exercício de suas funções junto à comunidade a que pertence. As crianças, à medida que vão crescendo, são inseridas por esse processo gradativo na vida social dos adultos, estabelecendo antes, entre si, pequenas estruturas sociais, de acordos e negociações, que as preparam para a vida. Para isso, as crianças vivem situações que as conduzem paulatinamente às decisões e compreensão do seu próprio processo de desenvolvimento para as próximas etapas da vida. No dizer de Halbwachs, “a sequência de pequenas provas que são como uma preparação para vida do adulto” (2006, p.47).

Esse aspecto também é percebido na sociedade africana, vejamos um exemplo na cultura do Mali quando Hampaté Bâ (2003) se refere às associações de crianças e adolescentes estimuladas pelos pais, nas quais se aprendem as regras do convívio social, assim como a diplomacia, o exercício da liderança, o cumprimento das responsabilidades e a atenção ao grupo. Vejamos na narrativa de Hampaté Bâ o relato de sua experiência sobre esse processo de formação.

Foi então que minha mãe mandou construir uma casa bem grande para mim e meus companheiros. Ali podíamos nos reunir, fazer as refeições e até dormir. Nós a chamávamos de walamarou, “o dormitório da associação”. Foi a partir deste momento que comecei mesmo a formar um círculo de pessoas a meu redor e a desempenhar meu papel de chefe da waaldé. (2003, p.174).

As waaldés58 são como centros, escolas de formação nas quais as crianças e jovens são exercitadas na prática a desenvolverem a responsabilidade e o comprometimento com o outro, com a comunidade. Desse modo, aquilo que a tradição lhes proporciona é um encontro da teoria com a prática, do material com o espiritual. Na waaldé os valores oriundos da herança dos antepassados são reorganizados em um tempo presente, no qual as diferenças dos tempos, no que concerne à atualidade e emergência de outras situações, proporcionam o cenário no qual os velhos saberes podem ser reinventados. Essas situações proporcionam um aprendizado que pode ser aprimorado e testado, conduzindo ao crescimento humano e melhorando a vida em comunidade.

O desenvolvimento da pessoa vem acompanhado do ritmo dos grandes períodos de crescimento corporal, e que corresponde a um nível de iniciação. A iniciação promove a pessoa psíquica uma condição moral e mental que permite a realização perfeita e total do indivíduo. (HAMPATÉ BÂ, 1972, p.12)59 ( tradução nossa ).

Os ritos de passagem que ocorrem na sociedade tradicional africana são caminhos que preparam a pessoa nas diferentes fases de sua vida para o convívio social, e as waaldés colaboram nesse processo.

A tradição considera que a vida de um homem normal comporta duas grandes fases: Uma ascendente até os sessenta e três anos. E, outra descendente até os 126 anos. Cada uma destas fases comporta três grandes sessões de vinte e um anos, composta de três períodos de sete anos. Cada sessão de vinte e um anos marca um degrau da iniciação, e cada período de sete anos marca uma etapa da evolução da pessoa humana. (HAMPATÉ BÂ, 1972, p.12-13).60 ( tradução nossa ).

Outro desses ritos é o da circuncisão dos meninos61, que, de acordo com Hampaté Bâ (2003), é um ritual que educa para a vida e define a passagem da vida

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Associações de crianças e adolescentes

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Le développement de la persone va s´accomplir au rythme des grandes périodes de la croissance du corps, dont chacune correspond à un degré d´initiation. L´initiation a pour but donner á la personne psychique une puissance morale et mentale qui conditionne et aide la réalisation parfaite et totale de l´individu. (HAMPATÉ BÂ,1972,p.12).

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La tradition considere que l avie d´um homme normal comporte deux grandes phases: l ´une ascendant, jusqu´à soixante trois ans, l´autre descendante, jusqu´à cent vingt six ans. Chacune des ces phases comporte trois grandes sections de vingt et um ans, composée de trois périodes se sept ans. Chaque sectin de vingt et um ans marque um degré dans l´initiation, et chaque période de sept ans marque um seuil dans l´évolution de la personne humaine.( HAMPATÉ BÂ,1972,p.12-13).

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A circuncisão masculina na África do Oeste é oriunda tanto de práticas religiosas locais, advindas das chamadas religiões nativas, como das tradições judaicas, como no caso da etnia ibô da Nigéria, ou de influências do Islã, algo bastante presente na cultura de Amadou Hampaté Bâ. Na obra

de criança para a vida adulta. Esses rituais normalmente são coletivos e marcam de maneira especial o grupo que deles participa com experiências individuais, entre as quais o medo, o espanto, a curiosidade, a coragem, a resistência à dor, enfim, uma série de sensações vividas individualmente, mas que são celebradas em conjunto, fazendo parte da vida daquelas pessoas, como uma memória comum, coletiva, na qual todos os componentes são relevantes, as cores, os cheiros, os sabores, tudo é componente a ser lembrado. Esse rito coletivo gera para o grupo que dele participa um elo de proximidade e respeito que será levado pelo resto da vida. Este rito vivido coletivamente será sempre lembrado e os elos entre essas pessoas ficarão fortalecidos. “Uma quinzena de meninos do bairro deviam ser circuncidados ao mesmo tempo. Como de costume, a cerimônia seria precedida por uma grande festa que duraria a noite inteira, do pôr-do-sol ao amanhecer” (HAMPATÉ BÂ, 2003, p.192).

A memória, nesse contexto, é quase uma fotografia para cada um dos indivíduos que coletivamente viveram uma mesma experiência. Amadou Hampaté Bâ dirá que “quando se lembra, não são apenas palavras que são recordadas, mas cenas inteiras são visualizadas. Pode-se ver cenas passadas como em uma tela de cinema. Para descrever uma cena só preciso revivê-la” (2003,p.13).

Tudo é motivo para que a lembrança aconteça, e esse tudo significa pensar todos os envolvidos, todas as partes e os espaços em que os fatos ocorreram e a maneira como são alçados a memória. Essa experiência possibilita que contextos inteiros sejam retomados. A memória ligada ao espaço também é alvo do interesse e reflexão de Halbwachs. O espaço conserva em si muitas lembranças, que se registram em cada objeto em particular, e até mesmo “as pedras falam”.

Essa mesma memória contida no espaço é o que Hampaté Bâ (2003) chama a atenção, pois todas as experiências vividas pelo grupo, os locais em que elas aconteceram, são passíveis da rememoração, tão logo os espaços ainda existam, mesmo que modificados, e as pessoas também existam. Essa é uma característica também relevante no estudo da memória coletiva de Halbwachs. Por isso, o cuidado pela preservação, no universo da cultura tradicional, dos espaços, das pessoas.

segundo a crença islâmica a circuncisão não é obrigatória para os homens, e muito menos para as mulheres. No entanto, essa prática tornou-se comum em alguns povos islamizados, talvez por uma herança do judaísmo. Já a circuncisão feminina é uma prática de algumas culturas, africanas ou não, e que muitas vezes é atribuída erroneamente ao Islã. Na realidade esses povos adotaram o Islã enquanto religião, mas não abandonaram algumas de suas práticas originais.

Essas memórias surgidas desses encontros com os lugares e com as pessoas nunca são solitárias: como nos diz Halbwachs, elas sempre estarão permeadas pelos outros e pelo impacto que os outros deixaram no lugar e também entre as próprias pessoas.

Uma experiência sobre a importância do espaço encontramos com as comunidades remanescentes de quilombo no Brasil. O espaço territorial oriundo dos antigos povoadores é uma condição fundamental para o grupo e afirma uma identidade comum, a partir de uma memória coletiva.

O legado dos líderes quilombolas e da comunidade de quilombos é a politização, expressa na coletividade, compreendendo crianças, jovens e idosos, e que se manifesta no enfrentamento e na efetiva participação política no sentido de legitimar e garantir o direito constitucional da titulação da terra de quilombos, cuja posse é, desde a origem, símbolo de resistência. (AMÉRICO, 2013, p.24).

No continente africano, não sendo diferente no oeste da África, essa ligação com o espaço territorial é marcante na constituição dos grupos étnicos, já que o espaço territorial delimitado pelas ex-colônias africanas na maioria das vezes não corresponde ao espaço anteriormente ocupado pelos grupos étnicos, que mantêm em suas memórias a lembrança do espaço visto ou contado pelos seus ancestrais, espaços esses que possuíam configurações territoriais bastante distintas das encontradas hoje em dia. Essa percepção é relatada por Hampaté Bâ (2003) ao demonstrar o esforço que o seu próprio grupo étnico realizava para manter as relações afetivas entre seus membros a partir do espaço territorial que ocupavam.

As pessoas em sua individualidade tinham a partir do espaço comum o alçar das memórias, que, apesar de ditas individuais, são alçadas por um dado coletivo que envolve a todos, embora de modos diferentes, e é esse conjunto de lembranças que auxilia na constituição da memória.

Desse modo, para Halbwachs (2006, p.69), “a memória individual é um ponto de vista da memória coletiva”, mas o que se define de fato é a memória coletiva, capaz de agregar todas as lembranças e tornar-se de fato uma memória.

No entanto, para refletirmos melhor esses aspectos e entender a relação entre memória e sociedade devemos recorrer também à história. E nesse contexto é fundamental que saibamos perceber a relação da memória com a história na perspectiva africana. Sem o entendimento dessa questão torna-se quase impossível estabelecer-se um diálogo com a África. Ao buscar-se compreender a África do

oeste, em qualquer dos seus aspectos, torna-se necessário dedicar-se ao entendimento de sua tradição. A história da África segundo Ki Zerbo (2010) somente poderá ser escrita quando a tradição for aceita, e nesse conjunto o diálogo entre a memória e a história é essencial.