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Capítulo II: A questão da memória

II. 2 – Memória e História

Ao longo da história da historiografia a memória sempre apareceu como um ponto delicado, já que sempre foi colocada com certa cautela, principalmente quanto à legitimidade e à segurança das suas bases. Os estudos sobre a história oral, que têm na memória uma fonte necessária, já que fatos são rememorados por sujeitos que os relatam, fizeram com que a temática da memória fosse destacada. No contexto dos estudos sobre a África, em especial no que se refere a sua história, torna-se essencial o reconhecimento da memória como fonte.

Na história oral, o objeto de estudo do historiador é recuperado e recriado por intermédio da memória dos informantes; a instância da memória passa, necessariamente, a nortear as reflexões históricas, acarretando desdobramentos teóricos e metodológicos importantes... (AMADO; FERREIRA, 2006, p.15).

A história oral tem tido uma projeção cada vez mais acentuada nas últimas décadas, isso se dá principalmente pelo encontro com grupos humanos, portadores de outros valores civilizatórios, entre eles a maneira de se comunicar e registrar os fatos acontecidos. A história oral tem como desafio elaborar uma metodologia de apreensão desses diferentes falares, sem categorizá-los pelos próprios valores da cultura letrada. Nesse sentido, cabe ao historiador procurar entender as diferentes culturas que irá investigar. É assim que o diálogo com outras áreas do conhecimento desenvolvidas no ocidente tem auxiliado no aperfeiçoamento metodológico para o cumprimento mais apropriado das pesquisas.

Atualmente, tem-se em boa medida o consenso de que a história de determinados grupos não pode ser construída esquecendo-se ou evitando este traço importante do ser humano. Outrora, tal característica civilizatória era tida como marca de inferioridade, de menor capacidade intelectual, o que serviu para legitimar ações contra esses povos. No entanto, ao aproximar-se a história enquanto ciência

dessas diferentes realidades culturais tornam-se cada vez mais alargadas as possibilidades da historiografia universal. Ao se estar mais disponível para o outro, abre-se a possibilidade do diálogo, e com isso, o entendimento e o reconhecimento mútuos.

A memória é cultivada na África tanto no contexto da rememoração como da memorização. A rememoração como nos diz Ricouer está de, acordo com Bâ (2003), no universo contido na tradição e a memorização está também associada a esse universo, mas, de modo especial, encontra-se associada ao mundo religioso, em grande parte ligada ao islã. Na religião islâmica é comum que os jovens logo cedo sejam iniciados na memorização do Alcorão.

Um aspecto relevante da questão da memória na tradição do oeste africano é a não separação da memória com a história. Antes, porém, tal como Ki Zerbo (2010) nos diz, a tradição oral, da qual a memória é componente importante, é uma das bases da história africana, juntamente com a arqueologia e a escrita, que contam ainda com o apoio da linguística e da antropologia como ciências investigativas.

Vejamos,

Uma das peculiaridades da memória africana é reconstituir o acontecimento ou a narrativa registrada em sua totalidade, tal como um filme que se desenrola do princípio ao fim, e fazê-lo no presente. Não se trata de recordar, mas de trazer ao presente um evento passado do qual todos participam, o narrador e a sua audiência. Aí reside toda a arte do contador de histórias. Ninguém é contador de histórias a menos que possa relatar um fato tal como aconteceu realmente, de modo que seus ouvintes, assim como ele próprio, tornem-se testemunhas vivas e ativas desse fato. Ora, todo africano é, até certo ponto, um contador de histórias. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.208).

Neste sentido, a memória então é parte constitutiva da história, ou seja, a memória também é história. No entanto, aqui há uma distinção da percepção de Halbwachs em relação à memória, já que para esse autor, a história somente começa quando acaba a memória, pois esta trata de aspectos vividos, no qual alguns membros ainda vivos podem relembrar um passado e relatá-lo de acordo coma sua experiência diante desses acontecimentos. A história, por sua vez, apenas inicia-se quando não existe mais como acionar essas lembranças, cabendo a ela então recolher as fontes possíveis para fazer uma descrição do passado, elaborando uma escrita do passado.

Essa representação escrita do passado nunca será de fato o passado: este já ocorreu, e o que temos é uma representação possível desse passado. Mas, de acordo com Certeau (1982), essa representação criada nunca está totalmente isenta de uma intenção determinada pela condição de um determinado momento. Aqui nos deparamos com o mesmo problema que havíamos discutido em relação à memória e sua validade para a história. Portanto, nota-se que o trabalho do historiador sempre será o de permitir que as fontes sejam reveladas e interpretá-las dentro de suas possibilidades.

Para Certeau (1982), o trabalho do historiador é construir, a partir das fontes já passadas, dos documentos possíveis, uma descrição do passado. Contudo, essa descrição nunca será o passado reconstituído, pois será uma possibilidade, vista de uma perspectiva, que é limitada pelas próprias condições do pesquisador e das fontes.

Esse é o percurso historiográfico, a escrita da história, a qual Certeau, denomina trabalho sobre o morto. Pois o que existe por parte do historiador é uma pesquisa sobre um fato já acontecido, impossível de ser reconstituído. Portanto, esse sempre será um dado aproximado. No entanto, podemos pensar isso quando se localizam as fontes, os documentos, as fotografias. Mas será que no caso africano, esse percurso se dá da mesma forma? Essa é uma questão delicada, pois mesmo as pessoas que se lembram, a principal fonte da memória, têm suas lembranças dadas em um presente, pois temporalmente elas não estão no passado, além do mais, existe o fato normalmente aceito de que a memória seja seletiva.

No caso africano, essa relação com a memória, além do aspecto coletivo, insere-se no que se chama, segundo Hampaté Bâ (2010), uma tradição viva, pois ao estabelecer-se a transmissão da lembrança ao longo das gerações, acredita-se - e, aliás, toda a sociedade tradicional se baseia neste fato - que os dados, as fontes não podem ser modificadas, já que existe uma ligação ética e metafísica com a palavra, e o seu mecanismo da transmissão. Desse modo, tem-se na memória um registro confiável, que no caso do oeste africano é muito mais confiável do que qualquer documento escrito.

Tudo que uma sociedade considera importante para o perfeito funcionamento de suas instituições, para uma correta compreensão dos vários status sociais e seus respectivos papéis, para os direitos e obrigações de cada um, tudo é cuidadosamente transmitido. Numa sociedade oral isso é feito pela tradição, enquanto numa sociedade que

adota a escrita, somente as memórias menos importantes são deixadas a tradição. É esse fato que levou durante muito tempo os historiadores, que vinham de sociedades letradas, a acreditar erroneamente que as tradições eram um tipo de conto de fadas, canção de ninar ou brincadeira de criança. (VANSINA, 2010, p.146).

A memória, na perspectiva de Amadou Hampaté Bâ, é a própria história, por isso na tradição africana relatada por Hampaté Bâ (2003; 2010) esses termos chegam a confundir-se. Nessa perspectiva, não existe uma ruptura ou linha que de fato afirme o que é história ou o que é memória. Essa noção é relevante para que se compreenda o universo de práticas e saberes da África tradicional.

É importante retomar a reflexão de Joseph Ki Zerbo (2010) que, ao ajudar a estabelecer um método de estudos para a história da África, indica a tradição oral como uma das referências, e nesta a memória. Em nosso caso, uma vez que a pesquisa se dá a partir da análise de obras de Amadou Hampaté Bâ (2003; 2010) e não como uma pesquisa de campo, in loco - o que talvez possibilitasse uma compreensão empírica da cultura que estamos tratando -, parece-nos ser mais coerente nos estabelecermos no método de Joseph Ki Zerbo, já que o mesmo não fere tampouco desconstrói o modelo próprio da tradição oral, mas ao mesmo tempo subsidia o investigador com outras técnicas e métodos teóricos que o auxiliem na interpretação dos dados.

O método investigativo sobre a África vai se consolidando e assim concebe um caminho para a escrita da história da África, uma historiografia que dê conta de interpretar do modo mais coerente possível o registro cultural que se encontra no continente africano. A oralidade irá compor de modo especial este método investigativo e a palavra falada será então estudada com atenção, e isso dentro do seu universo.

Na concepção africana, segundo Hampaté Bâ (2010), não se pode mentir, os vínculos estabelecidos com a comunidade abrangem não somente a relação com os viventes, mas também com aqueles que já se foram. Assim nos diz: “Para eles, a mentira não é simplesmente um defeito moral, mas uma interdição ritual” (p.176).

Dessa maneira, um elo é estabelecido, e a vida dos falecidos é manifestada, pela fidelidade as suas lembranças, a sua palavra. Desse modo, no contexto cultural africano, a palavra cria ou mata, caso seja proferida de maneira falsa.