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Capítulo III: Saberes e Práticas Culturais

III. 2 – Palavra, Espiritualidade e Cosmovisão

A palavra em sua relação com o sagrado, com o divino, ocupa uma posição especial na cosmovisão e espiritualidade africanas. De modo geral, todos os aspectos da vida tradicional são permeados pela presença do sagrado. Sendo assim, não existe na maioria das vezes uma distinção formalizada em que se estabeleçam os limites do sagrado e do profano. Ao contrário, nota-se que o sagrado permeia o imaginário das pessoas e as ações cotidianas sempre carregam uma perspectiva mística e metafísica.

É nessa perspectiva que adentramos o universo da palavra em sua maior subjetividade, relacionada a toda uma percepção de mundo, a uma maneira de estar no mundo repleto dos elementos mítico-místicos da espiritualidade e simbologia africanas.

A espiritualidade pode ser entendida e pesquisada no contexto da religião formal, porém é válido pensar que a espiritualidade também esteja relacionada com a maneira como o ser humano se relaciona com o mundo, as suas motivações e modos de interação. A espiritualidade africana é um modo de ser que independe da religião formal. O pensamento religioso é considerado natural no universo da cultura. Segundo os historiadores Tshibangu; Ajayie e Sanneh,

A religião, foi-nos dito, impregna toda a trama da vida individual e comunitária da África. O africano é um ser “profunda e incuravelmente crente, religioso”. Para ele, a religião não é simplesmente um conjunto de crenças, mas, um modo de vida, o fundamento da cultura, da identidade e dos valores morais. A religião constitui um elemento essencial da tradição a contribuir na promoção da estabilidade social e da inovação criadora. (2010, p.605).

Essa noção de religiosidade é enfatizada por Hampaté Bâ (2003) em vários momentos de sua narrativa, deixando evidente o quanto a vida social está baseada na vida espiritual. Ao longo das obras de Hampaté Bâ ele explica em algumas delas, de modo ainda mais pormenorizado, o papel que a religião desempenha na cultura africana.

Deve-se ter em mente que, de maneira geral, todas as tradições africanas postulam uma visão religiosa do mundo. O universo visível é concebido e sentido como o sinal, a concretização ou o envoltório de um universo invisível e vivo, constituído de forças em perpétuo movimento. No interior dessa vasta unidade cósmica, tudo se liga, tudo é solidário, e o comportamento do homem em relação a si mesmo e em relação ao mundo

que o cerca (mundo mineral, vegetal, animal e a sociedade humana) será objeto de uma regulamentação ritual muito precisa cuja forma pode variar segundo as etnias ou regiões. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.173).

Essa característica religiosa que permeia o modo de ser dos africanos foi utilizada pela Europa em vários momentos para classificar essas pessoas como inferiores. Na perspectiva da racionalidade e da cientificidade, essa visão de mundo aparece como atrasada, oriunda de um dado mitológico. E isso acaba por ser outro desafio a ser superado no avanço desse diálogo. Pode-se pensar que a perspectiva de religiosidade entre os africanos diz respeito à maneira com a qual o ser humano se conecta, se comunica consigo mesmo e com o mundo a sua volta; a religiosidade se expressa aqui em torno de uma motivação, de um sentido para vida, que necessariamente não esteja ocupando um lugar formal em uma religião institucional.

No ocidente quando se pensa em religião é comum pensarmos em algo bastante formal, com uma doutrina estabelecida e consolidada historicamente. Porém, na África esse elemento formal é recebido subjetivamente e recriado dentro de uma perspectiva endógena de olhar para o mundo. Um olhar de complementação, esse sim, o olhar religioso, pois se refere a religar-se ou manter-se ligado à energia original e a todas as energias dela oriundas, ou seja, todos os seres criados.

A própria ideia da palavra tal como aparece nas tradições relatadas por Hampaté Bâ (2003; 2010) nos faz lembrar a questão da origem divina da palavra na sociedade judaico-cristã ocidental, oriunda da apropriação cultural dos mitos de origem do oriente médio. Na tradição judaico-cristã temos a criação do homem por Deus e este Deus se comunicava diretamente com o homem. De sua vontade e palavra se fez o homem feito da terra. (Gênesis 1. 1-13). Também no Novo Testamento temos a ideia de Jesus como o verbo de Deus. Desse fato provém a crença cristã de que Jesus seja o filho de Deus e na doutrina oficial cristã, seja um dos membros da trindade-una, que seria o próprio Deus em três pessoas distintas, mas plenamente comunicáveis e inseparáveis: o Pai, o Filho e o Espírito Santo84.

Os mitos de origem, relatos que, segundo o especialista norte-americano Joseph John Campbell em sua obra O poder do mito (1990), fazem parte da narrativa de todos os povos, localizam-se na primeira grande questão humana,

quem somos e de onde viemos? Essa marca importante sobre os seres humanos é

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um questionamento que necessitava de uma resposta. A alternativa mítico-mística- teológica é a que possibilita uma primeira resposta a tal questão.

No continente africano, o que se percebe é que o aspecto mítico-místico não é distante do pensamento lógico. O africano transita livremente por esses diferentes tipos de respostas, pois as unifica e integra, já que o ser humano também é percebido nesta inteireza, daí tudo que se relacione com ele, ser visto também dessa forma.

Essa perspectiva do mítico sagrado que ocupa a gênese dos povos é base na percepção concreta real para a tradição africana. Pode-se perceber o quanto há de semelhança entre a narrativa judaico-cristã e a narrativa africana, ao menos aquela descrita por Hampaté Bâ (2003; 2010). No contexto dos mitos de origem a palavra é oriunda do Criador. Do mesmo modo, a palavra no contexto da tradição africana é divina e a sua origem está ligada ao Ser Supremo.

Vejamos o que Hampaté Bâ nos diz ao relatar o mito do povo bambara.

A tradição bambara do Komo ensina que a Palavra, Kuma, é uma força fundamental que emana do próprio Ser Supremo, Maa Ngala, criador de todas as coisas. Ela é o instrumento da criação: “Aquilo que Maa Ngala diz, é!” proclama o chantre do deus Komo. (2010, p.170).

Aqui é válido pensar que para os muçulmanos a expressão é exatamente esta “Aquilo que Allah diz, é”. E do mesmo modo, como encontramos na narrativa judaico-cristão-islâmica, temos a maneira como Deus cria o homem.

O mito da criação do universo e do homem, ensinado pelo mestre iniciador Komo (que é sempre um ferreiro) aos jovens circuncidados, revela-nos que quando Maa Ngala sentiu falta de um interlocutor, criou o Primeiro Homem: Maa. (2010, p.170).

Boa parte desses mitos africanos era comunicável com a religião islâmica que se instalou no continente, o que estabeleceu, de acordo com Hampaté Bâ, um diálogo profícuo para ambas as culturas. O homem é visto em ambos os universos religiosos como um ser especial criado por Deus, dotado de responsabilidades e habilidades que o capacitam a ser o mantenedor, o cuidador das coisas criadas.

De acordo com Hampaté Bâ, o homem é um ser especial, ele é “síntese de tudo o que existe, receptáculo por excelência da Força Suprema e confluência de todas as forças existentes. Maa, o homem, recebeu de herança uma parte do poder criador divino, o dom da mente e da Palavra” (2010, p.171). Maa Ngala, a suprema

divindade, depositou no ser humano Maa três potencialidades: o poder, o querer e o saber. No entanto,

... todas essas forças, das quais é herdeiro, permanecem silenciadas dentro dele. Ficam em estado de repouso até o instante em que a fala venha colocá-las em movimento. Vivificadas pela Palavra divina, essas forças começam a vibrar. Numa primeira fase, tornam-se pensamento; numa segunda, som; e, numa terceira, fala. A fala é, portanto, considerada como a materialização, ou a exteriorização, das vibrações das forças. (2010, p.172).

De acordo com Ribeiro (1999), na cultura do povo ioruba é comum atribuir à palavra falada essa materialização das energias. Ofò é o termo ioruba para palavra e

asè (pronuncia-se axé) é o termo utilizado para expressar força, poder, vida.

Portanto, a palavra de poder está expressa na fala daquele que a articula. Sendo assim, de acordo com Hampaté Bâ (2010), o sentido de falar e escutar na cultura tradicional é muito mais complexo do que normalmente é pensado. De fato, diz-se que “quando Maa Ngala fala, pode-se ver, ouvir, cheirar, saborear e tocar a sua fala. Trata-se de uma percepção total, de um conhecimento no qual o ser se envolve na totalidade”. (p.172). Ainda segundo esta concepção, no universo tudo fala, pois tudo começa com a palavra. Essa ideia parte do fato de que tudo emana da força criadora, a palavra de Deus, da qual todos os seres são criaturas. Outros grupos étnicos do oeste africano partilham vários pontos de semelhança com essa percepção de mundo. Vejamos o que nos diz Hampaté Bâ,

Em fulfulde, a palavra que designa “fala” (haala) deriva da raiz verbal hal, cuja ideia é “dar força” e, por extensão, “materializar”. A tradição peul ensina que Gueno, o Ser Supremo, conferiu força a Kiikala, o primeiro homem, falando com ele. “Foi a conversa com Deus que fez Kiikala forte”, dizem os Silatigui (ou mestres iniciados peul). (2010, p.172).

A fala é mobilizadora de forças, pois dá vida e materialização àquilo que é apenas pensamento, vontade. A fala gera movimento, ritmo. De maneira semelhante à fala do Criador, a fala do homem é geradora da ação, e, portanto, organiza a existência. A fala ritmada contribui para a harmonia das forças do universo, a expressão verbal não somente possibilita a comunicação dos seres humanos, mas também efetiva a reordenação dos seres no mundo.

A fala nesse contexto está associada a uma concepção mágica, embora não a mágica ou magia como algo negativo, fictício ou tolo. Ao contrário, a magia na concepção da tradição africana é a condição básica para que a fala possa exercer a

sua função reguladora das forças que regem o universo. A magia é capaz de estabelecer a harmonia da existência, é conhecimento e saber. Portanto, a chamada boa magia é aquela que provém dos mestres do conhecimento.

Assim como a fala divina de Maa Ngala animou as forças cósmicas que dormiam, estáticas, em Maa, assim também a fala humana anima, coloca em movimento e suscita as forças que estão estáticas nas coisas. Mas para que a fala produza um efeito total, as palavras devem ser entoadas ritmicamente, porque o movimento precisa de ritmo, estando ele próprio fundamentado no segredo dos números. A fala deve reproduzir o vaivém que é a essência do ritmo. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.173-174).

Deste modo, segundo Hampaté Bâ,

Nas canções rituais e nas fórmulas encantatórias, a fala é, portanto, a materialização da cadência. E se é considerada como tendo o poder de agir sobre os espíritos, é porque sua harmonia cria movimentos, movimentos que geram forças, forças que agem sobre os espíritos que são, por sua vez, as potências da ação. (2010, p.174).

Então, “na tradição africana, a fala, que tira do sagrado o seu poder criador e operativo, encontra-se em relação direta com a conservação ou com a ruptura da harmonia no homem e no mundo que o cerca.” (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.174). A palavra no universo da tradição está imbuída de acompanhar a vida em todas as suas nuances, além de ser o elo entre os vivos, o é também com o universo dos ancestrais.

O aspecto religioso da fala africana tem uma correspondência significativa com a palavra da tradição islâmica, pois se para o cristianismo o verbo divino se fez carne na pessoa do Cristo, na tradição islâmica a palavra divina se fez livro, o Alcorão. De acordo com Hampaté Bâ (2010) e Mazrui (2010), o islã chegou a essa região da África, bem antes do séc. X, fazendo surgirem desde essa época importantes centros de formação.

Grandes escolas islâmicas puramente orais ensinavam a religião nas línguas vernáculas (exceto o Corão e os textos que fazem parte da oração canônica). Podemos mencionar, entre muitas outras, a escola oral de Djelgodji (chamada Kabe), a escola de Barani, a de Amadou Fodia em Farimaké (distrito de Niafounké, no Mali), a de Mohammad Abdoulaye Souadou em Dilli (distrito de Nara, no Mali) e a do xeque Usman dan Fodio na Nigéria e no Níger, onde todo o ensino era ministrado em fulfulde. Mais próximas de nós estavam a Zauia de Tierno Bokar Salif, em Bandiagara, e a escola do xeque Salah, o grande marabu dogon, ainda vivo. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.204-205).

As tradições africanas tiveram um encontro relevante com o universo islâmico, e em muitos casos o processo de interação foi tão intenso que se torna praticamente impossível separar uma cultura da outra. Vejamos a reflexão de Hampaté Bâ sobre essa questão,

As peculiaridades da memória africana e as modalidades de sua transmissão oral não foram afetadas pela islamização, que atingiu grande parte dos países da savana os do antigo Bafur. De fato, por onde se espalhou, o Islã não adaptou a tradição africana a seu modo de pensar, mas, pelo contrário, adaptou-se à tradição africana quando – como normalmente ocorria – esta não violava seus princípios fundamentais. A simbiose assim originada foi tão grande, que por vezes torna-se difícil distinguir o que pertence a uma ou a outra tradição. (2010, p.204).

Para termos uma ideia de como essas culturas se entrelaçaram, vamos ver neste trecho da obra Amkoullel, o menino fula como Amadou Hampaté Bâ faz referência a sua mãe Kadidja, quando esta relata um sonho que teve com o profeta do Islã Muhammad Ibn Abdullah:

Mais ou menos nessa época, a pequena Kadidja teve um sonho que a marcou profundamente por causa das previsões a que deu lugar e que de fato ocorreram, uma após outra, ao longo de sua vida. No sonho, via o santo Profeta entrar no pátio da casa da família. Ele a mandava chamar os irmãos e irmãs para partilharem com ele um grande prato preparado por sua mãe. Sentaram-se todos ao redor do prato e comeram até não sobrar nada. O Profeta, mantendo a seu lado os irmãos e irmãs de Kadidja, olhou para ela e a mandou sair. Assim que acordou na manhã seguinte, a menina sentiu-se invadida por profundo desgosto e caiu num humor pesado e taciturno. O pai não deu importância ao fato, mas a mãe inquietou-se: “O que você tem, minha pequena Kadidja. (2003, p.52).

No sonho a mãe de Hampaté Bâ, a então jovem Kadidja, sente-se punida pelo Profeta, por não estar ao seu lado, assim como os seus irmãos estavam. Percebe-se nessa narrativa o quanto a cultura islâmica se fazia e se faz presente na cultura africana dessa região. Dessa maneira, o ser africano do oeste, ao menos a maioria dos grupos retratados por Hampaté Bâ (2003; 2010), não podem ser entendidos em seu imaginário e representação destituídos dessa parcela relevante de sua formação. Nessa citação percebemos o quanto o Islã estará imerso nas tradições locais, compondo então uma cultura própria.

Outro aspecto de relevância retratado por Hampaté Bâ está na maneira como as escolas islâmicas instaladas no continente africano souberam respeitar e valorizar os princípios da tradição africana, algo que foi bastante diferente da relação que a escola europeia estabelecia com as culturas africanas.

Em todas as escolas os princípios básicos da tradição africana não eram repudiados, mas ao contrário, utilizados e explicados à luz da revelação corânica. Tierno Bokar, tradicionalista em assuntos africanos e islâmicos, tornou-se famoso pela intensa aplicação deste método educacional. Independentes de uma visão sagrada comum do universo e de uma mesma concepção do homem e da família encontraram nas duas tradições, a mesma preocupação em citar as fontes (isnad, em árabe) e nunca modificar as palavras do mestre, o mesmo respeito pela cadeia de transmissão iniciatória (silsila, ou cadeia em árabe) e o mesmo sistema de caminhos iniciatórios (no Islã, as grandes congregações Sufi ou Tariga, plural turuq, cuja cadeia remonta ao próprio Profeta), que tornam possível aprofundar, através da experiência, aquilo que se conhece pela fé. (2010, p.205).

Deste modo, houve um encontro cultural, uma troca de saberes que ampliou possibilidades de entendimento entre os grupos.

Às categorias de “Conhecedores” tradicionais já existentes vieram juntar-se as dos marabus (letrados em árabe ou em jurisprudência islâmica) e dos grandes xeques Sufi, embora as estruturas da sociedade (castas e ofícios tradicionais) fossem preservadas, inclusive nos meios mais islamizados, e continuassem a veicular suas iniciações particulares. O conhecimento de assuntos islâmicos constituía uma nova fonte de enobrecimento. Assim, Alfa Ali, falecido em 1958, gaolo (etnia-grifo nosso) de nascimento, foi a maior autoridade em assuntos islâmicos no distrito de Bandiagara, assim como seus antepassados e seu filho. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.205).

Vejamos outro exemplo que Hampaté Bâ nos traz sobre o seu avô materno Pâté Poullo e a sua decisão em abandonar tudo para seguir a vida religiosa na companhia de El Hadj Omar, um mestre da confraria sufi Tidjania. Aqui Hampaté Bâ nos dá o exemplo da narrativa memorialista ao contar o episódio vivido por seu avô, lembrando cada palavra emitida por Pâté Poullo ao encontrar-se com El Hadj Omar.

Não vim a ti para as coisas deste mundo. Peço-te que me recebas no Islã e te seguirei aonde fores, mas com uma condição: no dia em que Deus fizer triunfar tua causa e dispuseres de poder e grandes riquezas, peço-te que nunca me nomeies para qualquer posto de comando- chefe de exército, chefe de província, chefe de aldeia, nem mesmo chefe de bairro. Porque a um fula que tenha abandonado seu rebanho não se pode oferecer nada que seja mais valioso. Se te sigo, é unicamente para que me guies na direção do Deus Único. (2003, p.28).

Quando analisamos a natureza desses encontros pela perspectiva de Gruzinski podemos perceber que as categorias anteriores de análise que mencionam os dados da inculturação ou da aculturação já não são suficientes para revelar a dimensão dessas dinâmicas e encontros culturais. Estamos diante de trocas e dinâmicas culturais intensas que se refazem a todo instante e, com isso,

propiciam sentidos e significados novos aos seus participantes, que, ao perceberem identificações comuns, recriam a imagem e representação de si mesmos.

No entanto, nem sempre as relações com o mundo cristão ou muçulmano foram tão tranquilas. As religiões nativas da África não são expansionistas, já as religiões como o cristianismo e islamismo são e sempre estão na busca de mais adeptos.

De acordo com Tshibangu; Ajayi e Sanneh

A religião tradicional africana não fazia proselitismo e era aberta. Ela tolerava a inovação religiosa como manifestação de um novo saber, sempre esperando interpretar e interiorizar estes conhecimentos no âmbito da cosmologia tradicional. (2010, p.606)

Esse traço de abertura na espiritualidade africana é marca na cosmogonia. A palavra sagrada da tradição oral encontra-se em eco comum com a palavra sagrada do Islã, e por isso é possível serem ouvidas nesses países, nos horários prescritos, as cinco orações tradicionais do Islã, convivendo em harmonia com os toques dos tambores e cânticos tradicionais africanos. Segundo essa concepção, tudo fala, e tudo é emanação do mesmo Deus, agora chamado em árabe de Allah.

A importância da religião tradicional africana vai muito além do que se poderia crer, mediante a leitura das estatísticas, as quais avaliam os seus fiéis em cerca de 20% da população africana total. Para grande número de cristãos e muçulmanos, os valores morais continuam a emanar, com maior ênfase, da antiga cosmologia, muito mais que das suas novas crenças: manifesta-se sempre respeito pelos ancestrais, especialmente através de libações, crê-se ainda que eles intervenham na vida dos seus sucessores, que existam forças do bem e do mal, passíveis de manipulação pela acessão direta às divindades, por meio das orações e do sacrifício, que os talismãs e os amuletos sejam eficazes para afastar o mal e assim sucessivamente. (TSHIBANGU; AJAYI; SANNEH, 2010, p.608-610).

No caso da África do oeste, mais especificamente na região descrita por Hampaté Bâ (2003), o que temos é uma integração bastante remota que possibilitou uma construção cultural própria, em que os valores da religião tradicional não se perderam, ao mesmo tempo em que se integraram à religião islâmica, constituindo- se assim uma cultura original, capaz de preservar os saberes e práticas tanto do mundo tradicional africano quanto do mundo islâmico.