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Capítulo III: Saberes e Práticas Culturais

III. 1 – Palavra e Tradição

A palavra para Hampaté Bâ (2010) tem sua expressão maior no universo da tradição. Essa palavra é mantida como o grande vetor da existência, da vida. Tudo é pela palavra, sem ela nada existiria. Essa relação com a palavra também determina e enfatiza aquilo que para o ser humano é fundamental, a comunicação. É por ela que se efetivam as ligações humanas, é por ela que se estabelece a comunidade.

A palavra na tradição é o elo das gerações, possibilitando que uma corrente de saberes e práticas seja preservada, ao unir crianças, jovens, adultos e velhos em uma perspectiva comum. Essa ligação na tradição é o que lhe confere a condição de ser um saber tradicional, normalmente descrito como a transmissão geracional de saberes, tendo como vetor principal a palavra falada. Neste aspecto é válido enfatizar que a tradição não pode ser confundida com o tradicionalismo, pois este seria o engessamento de um saber em uma perspectiva fixada em um tempo já passado. A tradição, segundo Hampaté Bâ (2003; 2010), é antes de tudo algo dinâmico, que se atualiza e é recriada em tempo presente; ela é viva. E quanto mais ela consegue dialogar com o mundo a sua volta, mais ela é fortalecida. Daí Hampaté Bâ (2003) preocupar-se com os puristas conservadores, que, na sua concepção, são os principais vetores do fim das tradições, do mesmo modo que aqueles que a não compreendem e dela se afastam.

Essas características são utilizadas por Hampaté Bâ (2003) para analisar o comportamento político-social de alguns líderes africanos, que muitas vezes deixam de observar o mundo pelo olhar da própria África, antes, porém, assumem um comportamento distanciado. E distanciar-se da África é primeiro separar-se de suas tradições. Essas tradições, segundo Hampaté Bâ, devem ser dialogadas com o mundo ocidental, compartilhadas, revistas, mas nunca esquecidas.

A formação do ser humano africano depende da tradição, pois ela instrui em várias situações e em todos os momentos da vida. A base da educação do africano, de acordo com a concepção de Hampaté Bâ (2003), deveria estar pautada na

tradição. É por isso que um líder político do continente que não conheça e não respeite essa base de sua formação não reúne as condições necessárias para compreender e representar o seu povo.

Essa reflexão coincide com a que o sociólogo brasileiro de origem baiana Guerreiro Ramos81 também realizava ao analisar o comportamento de lideranças brasileiras nos mais variados setores, que desconheciam, intencionalmente ou não, algumas das principais realidades sociais e culturais do Brasil.

Uma liderança que, ao contrário, conhece e respeita essas tradições será menos atingida pelo desejo de poder e o acúmulo desnecessário de bens, pois considerará essa conduta social como sendo desequilibradora. De acordo com Hampaté Bâ (2004), a civilização africana deve constituir-se com base em valores humanos e éticos, presentes em sua cultura, aspectos estes que contribuem também para uma sociedade mais fraterna. São esses aspectos que devem ser compartilhados com outros povos e culturas.

De acordo com Hampaté Bâ, a palavra oriunda da tradição, articulada em um tempo comum, de presença e atualidade, continua sendo geradora da vida, e é a isso que a tradição se propõe, é isso que a tradição procura alcançar, para que continue oferecendo saberes a sua própria civilização e ao mundo por consequência. Ao oferecer e receber estabelece trocas e partilhas que são capazes de gerar outros conhecimentos. O filósofo francês Maurice Merlou Ponty nos traz a seguinte reflexão sobre a linguagem, que coincide em boa parte com a reflexão de Hampaté Bâ (2010).

A linguagem tem um interior, mas esse interior não é um pensamento fechado sobre si e consciente de si. O que então exprime a linguagem, se ela não exprime pensamentos? Ela apresenta, ou antes, ela é tomada de posição do sujeito no mundo de suas significações. O termo “mundo” não é aqui uma maneira de falar, ele significa que a vida “mental” ou cultural toma de empréstimo à vida natural as suas estruturas, e que o sujeito pensante deve ser fundado no sujeito encarnado. (1999, p.262).

A reflexão de Ponty nos dá entender o quanto o sujeito encarnado, como ele diz, se dá e se manifesta a partir de sua existência concreta; é daí que surgem as ideias, as práticas a serem maturadas e desenvolvidas, que se estabelecem na ligação com o outro, e não como algo fechado sobre si. Ao percebermos essa

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(1915 – 1982) Sociólogo negro de origem simples e que se dedicou a refletir também a questão do negro no país. A partir de 1949 engajou-se ao TEN (Teatro Experimental do Negro), ao lado de Abdias do Nascimento, outro importante intelectual brasileiro.

análise de Ponty percebemos o valor que a tradição africana procura dar a esses encontros, a essas trocas de experiência.

Vejamos um exemplo interessante da tradição, que diz respeito à convivialidade das diferenças étnicas, o aprendizado sobre elas e o diálogo possível entre os povos e culturas distintas.

A partir do momento em que fui morar na casa de Amadou Kisso, minha vida tornou-se um mar de rosas. Eu comia a seu lado, assistia toda noite às conversas e reuniões em seu pátio, às vezes até durante o dia, quando não tinha aula. Era como se tivesse saído do pátio de meu pai Tidjani para entrar no dele. Ali também se sucediam contadores de histórias e tradicionalistas, evocando, ao som da música, a história da região, a criação da cidade de Djenné, suas antigas tradições, suas divertidas crônicas, sua conquista pelo exército francês... Aprendi também muitas coisas sobre os bozos, os songais, os bambaras da região de Saro (principado que sempre resistiu ao rei bambara de Segu) e sobre os próprios fulas. Isto me permitiu completar e aprofundar o que já sabia. (HAMPATÉ BÂ, 2003, p.246).

E ainda Hampaté Bâ nos traz o quanto a organização social, política e econômica de um lugar pode ser efetivada a partir do acordo e respeito entre os grupos distintos.

Doze etnias viviam em harmonia em Djenné naquela época, espalhadas em doze bairros da cidade: as etnias bozo, bobo, nono, songai, fula, dîmadjo (casta de cativos fula), bambara, mandê, moura, árabe, mianka e samo – estas duas últimas raças eram as mais raras. A cidade era administrada por um triunvirato bozo-songai-fula, secundado por dois colégios; um de anciãos e um de marabus. O policiamento ficava a cargo da classe dos cativos – a de artesãos encarregava-se mais da vigilância moral. As profissões artesanais tradicionais (ferreiros, tecelões, sapateiros, etc.) se organizavam em corporações chamadas tende (ateliês), dirigidas por um comitê presidido por um ancião. (2003, p.246).

Essa perspectiva dialógica e universalizada da tradição traz em si um dado relevante para os desafios que a própria África tem enfrentado em suas tentativas de organização política e social, sendo que algumas dessas dificuldades são oriundas exatamente da diversidade étnica existente. Assim como revelam ao mundo globalizado a possibilidade do entendimento entre os povos, algo que mesmo a ONU (Organização das Nações Unidas) encontra dificuldades em contribuir na solução diplomática de muitos conflitos que surgem em diferentes partes do mundo.

Também esse caráter ético e dialógico da tradição desconstrói qualquer ideia de isolamento, de afastamento. Para Hampaté Bâ (1972), o que se percebe é que em alguns momentos a comunidade produtora desses saberes precisa olhar para si mesma. Necessita rever a sua trajetória e as suas práticas de modo subjetivo; em

outras palavras, precisa confiar e reconhecer a sua própria história. Nesse contexto é válido dizer que na contemporaneidade alguns modelos socioeconômicos, mediados pela globalização, têm conduzido esses grupos tradicionais a uma perda do sentido de suas práticas, ao mesmo tempo em que as mesmas são cooptadas parcialmente, apenas em características externas e passam a fazer parte de um mercado cultural exógeno. Um exemplo disso são algumas práticas culturais em sua dimensão artística que têm sido exploradas e divulgadas, mas sem o devido cuidado com os aspectos essenciais que a constituem, todo o universo simbólico e ritual que lhe asseguram um sentido.

O desafio de interpretar essas práticas e adequá-las à atualidade está em ter discernimento do possível, do válido e daquilo que poderia ser uma inovação alienada dos interesses e sentidos daquela prática em sua origem. Essa ação interpretativa em outros contextos sociais e históricos requer um cuidado, ensinado na própria tradição africana, mas que, com o passar do tempo, tem sido esquecido. Quando Hampaté Bâ (2003; 2010) fala sobre essa questão, ele lamenta, pois os jovens africanos estão ficando distantes da sua principal base de formação, aquela que lhes permite a constituição de uma identificação com a África, naquilo que Mazrui (2010) denomina de África pelos próprios africanos.

Essa busca pela essencialidade, pela subjetividade que seria o fundamento no qual se assenta a tradição, é que precisaria, segundo Hampaté Bâ, ser apropriada pelas gerações mais novas para que em posse destes fundamentos consigam estabelecer com coerência as condições comunicacionais em um tempo presente. O conhecimento dessas bases é que possibilita que as tradições não se percam em formalismos desnecessários e que impedem a sua compreensão e sentido no mundo atual.

A apropriação apenas dos elementos exteriores da cultura tradicional forma uma espécie de maquiagem da realidade dessas culturas; é aqui que Hampaté Bâ reflete com muita atenção o modo como outras culturas têm se apropriado de elementos exteriores da cultura africana, sem o devido entendimento dos seus fundamentos, e principalmente sem o devido reconhecimento e respeito dos seus legítimos criadores e mantenedores.

Esse modo de proceder também ocorreu com muitas das culturas negras espalhadas pelo mundo a partir da diáspora. Essas culturas são alvo de apropriações e transformações externas, que retiram delas o sentido primordial, ou

seja, aquilo que de fato a definiria. Esse fenômeno está, segundo Munanga (2009), pautado ainda nas práticas discriminatórias das quais a população africana e seus descendentes ainda são alvo. Ao pensarmos esta relação com outras práticas culturais oriundas de outros povos como, por exemplo, os japoneses, a situação é completamente diferente. Vejamos o judô (arte marcial japonesa), que tem em Jigoro Kano o seu fundador. Em qualquer lugar do mundo onde seja praticado o judô, ao adentrar-se o dojô (local de treino), é feita uma reverência ao mestre fundador seguindo os elementos ritualísticos próprios da cultura japonesa.

No caso do Brasil, podemos pensar essa diferença de respeito em relação à capoeira82. Houve um momento da história do Brasil em que a nacionalização tentou promover a capoeira, contudo desconsiderando essa presença africana em sua estruturação. Com isso, segundo a antropóloga brasileira Letícia Vidor de Souza Reis em sua obra O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil (2000), retirava-se ou tentava-se minimizar a presença do negro na cultura do país, até mesmo nas práticas legitimamente de origem afro-brasileira como a capoeira. Porém, graças ao esforço e empenho de muitos capoeiristas ligados tanto à tradição angola como à regional83, temos assistido a um fenômeno interessante da preservação dos seus valores rituais e simbólicos. Atualmente capoeiristas em diversos países do mundo têm atuado como “embaixadores” dessa cultura, garantindo em boa parte a sua prática dentro de uma coerência que respeite os valores originais que ela carrega.

No entanto, essas práticas afro-brasileiras, assim como as africanas, têm na própria tradição oral o seu principal mecanismo de preservação, e isso se dá no seu processo de transmissão.

Em relação à corrente geracional tão relevante para a cultura tradicional, vale destacar o papel dos velhos. O historiador Ki Zerbo (2009) diz que os velhos são difíceis de lidar, podem ser sistemáticos, mas na cultura africana são valorizados

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Arte marcial com vários traços culturais de origem africana, mas criada no Brasil pelos escravizados.

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A capoeira angola é denominada de capoeira mãe, a forma mais antiga desta expressão cultural desenvolvida no Brasil, a partir da herança dos escravizados oriundos em boa parte de Angola e outros países ao sul do Saara. Hoje está divulgada em vários países do mundo. A capoeira regional foi criada na Bahia pelo Mestre Bimba na década de 1930, tendo por base os elementos da própria capoeira angola, assim como de outras lutas que ocorriam no universo negro, tais como o batuque e a bassula (luta de agarre). Também discute-se a presença de outras lutas estrangeiras na sua formação. O primeiro nome dado a essa nova luta era de Luta Regional baiana; somente depois passou a ser conhecida como capoeira regional.

pelo que representam no conjunto dos saberes constituído ao longo da civilização, assim como pela sua capacidade na transmissão das práticas e interpretação dos saberes nelas contidos. É pelos velhos que se pode estabelecer uma prática coerente de aplicação do que é ensinado e aprendido.

O que se nota no relato de Hampaté Bâ (2003) é que existe uma consciência crítica na sociedade tradicional, e não uma relação superficial entre a criança, o jovem e o velho. A pessoa idosa precisa ser cuidada, amparada e ouvida. No entanto, tais condições não eliminam aspectos próprios de sua idade mais avançada, que gradativamente a conduzem a distanciar-se das coisas, tornar-se mais meticulosa, capaz de antecipar situações, simplesmente pela sua maturidade, o que algumas vezes torna essas pessoas arredias, desconfiadas e críticas.

Essas características tornam os relacionamentos às vezes difíceis, delicados, tensos, e uma sociedade que pensa e convive com essas realidades diretamente aprende ao longo do tempo a conviver de modo equilibrado essas relações. Essa comunicação passa a ser salutar, pois não está pautada na valorização desmedida de um grupo em relação ao outro. Por isso, a tradição se atualiza, pois ela nota com coerência o que ainda permanece válido em determinadas práticas, e o que a torna incomunicável em um tempo presente, devido a algumas práticas não alinhadas ao próprio grupo e a um sentido atualizado de sua proposta. Sobre isso Hampaté Bâ (2003) nos dá um exemplo da condição dos fulas, que em sua origem eram nômades e depois por uma questão de necessidade e pela própria fundação do estado islâmico por Cheikou Amadou, vieram a se tornar um povo sedentário.

Pensar sobre a tradição é deparar-se com um processo dinâmico, inusitado, que pouco ou nada se assemelha a algo inerte, restrito a um tempo passado, pronta para ser congelada ou colocada como objeto de observação. A tradição é corrente em todos os lugares, envolvendo vários aspectos da sociedade. Os seus ambientes de formação são variados, e nesse aspecto, a família e a comunidade ocupam um lugar de destaque como locais dessa formação.

Muitas vezes eu ficava na casa de meu pai Tidjani após o jantar para assistir aos serões. Para as crianças, estes serões eram verdadeiras escolas vivas, porque um mestre contador de histórias africano não se limitava a narrá-las, mas podia também ensinar sobre numerosos outros assuntos, em especial quando se tratava de tradicionalistas consagrados como Koullel, seu mestre Modibo Koumba ou Danfo Siné de Buguni. Tais homens eram capazes de abordar quase todos os campos do conhecimento da época, porque um “conhecedor” nunca era um especialista no sentido moderno da palavra mas, mais precisamente, uma espécie de generalista. O conhecimento não

era compartimentado. O mesmo ancião (no sentido africano da palavra, isto é, aquele que conhece, mesmo se nem todos os seus cabelos são brancos) podia ter conhecimentos profundos sobre religião ou história, como também ciências naturais ou humanas de todo tipo. Era um conhecimento mais ou menos global segundo a competência de cada um, uma espécie de “ciência da vida”; vida, considerada aqui como uma unidade em que tudo é interligado, interdependente e interativo; em que o material e o espiritual nunca são dissociados. E o ensinamento nunca era sistemático, mas deixado ao sabor das circunstâncias, segundo os momentos favoráveis ou a atenção do auditório. (HAMPATÉ BÂ, 2003, p.174-175).

Essa ideia de conectividade entre todas as coisas e a necessidade humana em preservar e cuidar dessas relações colocam em reflexão o papel do homem no mundo, no qual as responsabilidades perante a vida, não somente dele e de outros seres humanos, mas de todos os seres, são bastante ampliadas. Na concepção africana, o homem tem o dever de cuidar de tudo. Essa tarefa pertence ao homem e de modo intransferível. É possível percebermos uma semelhança com essa noção de responsabilidade e comprometimento do homem com o meio e o espaço que habita no universo africano na obra A posição do homem no cosmos (2003) do filósofo Max Scheler. A mesma ideia de responsabilidade pode ser encontrada tanto na descrição que Hampaté Bâ (2003) nos traz da tradição, quanto na que Scheler (2003) nos traz através da antropologia filosófica.

Os saberes oriundos da tradição e os seus métodos de transmissão formativa às vezes podem parecer confusos ou controversos, mesmo aqueles ligados a uma ética universal de preservação e cuidado com o meio ambiente. No entanto, são em aspectos do dia-a-dia que se preservam saberes que guardam valores éticos de relevância que se assentam na formação da pessoa. Vejamos o que Hampaté Bâ nos diz sobre as regras referentes à alimentação.

Durante a refeição, as crianças estavam sujeitas a uma disciplina rigorosa. Quem a quebrava era punido, de acordo com a gravidade da falta, por um olhar severo, uma batida de ventarola na cabeça, um tapa, ou mesmo a ordem de retirar-se pura e simplesmente e ficar sem comer até a refeição seguinte. Devíamos observar sete regras categóricas: não falar; manter os olhos baixos durante toda a refeição; comer no espaço diante de si (não mexer a torto e a direito no grande prato comum); não pegar um novo punhado de comida antes de haver terminado o anterior; segurar a borda do prato com a mão esquerda; evitar toda precipitação ao pegar a comida com a mão direita; não se servir dos pedaços de carne colocados no centro do grande prato. As crianças deviam se contentar em pegar punhados de cereais (milhete, arroz ou outro) bem regados com molho; só no final da refeição é que recebiam uma boa porção de carne considerada como um presente ou recompensa. (2003, p.172).

Toda essa disciplina não visava torturar inutilmente a criança, mas ensinar-lhe a arte de viver. Manter os olhos baixos em presença de um adulto, sobretudo dos pais – isto é, dos tios e amigos dos pais – era aprender a se dominar e a resistir à curiosidade. Comer diante de si era aprendera contentar-se com o que se tem. Não falar servia para aprender a controlar a língua e praticar o silêncio: é preciso saber onde e quando falar. Não pegar um novo punhado de comida antes de haver terminado o anterior ensinava a dar prova de moderação. Segurar a borda do prato com a mão esquerda era um gesto de educação que ensinava a humildade. Evitar se precipitar sobre a comida era aprender a paciência. Enfim, esperar receber a carne ao final da refeição e não se servir sozinho conduzia ao controle do apetite e da gula. (HAMPATÉ BÂ, 2003, p.172).

Nessa descrição nota-se o quanto uma prática pode guardar em termos de conhecimento, e também o quanto ela pareceria inapropriada em um primeiro momento ao olhar externo, permeado por outra cultura que não compreendesse os meandros e significados dos valores tradicionais.

Esse olhar externo seria apanhado no estranhamento do outro, da cultura do outro, e fatalmente incorreria na tendência classificatória daquilo que se vê, procurando enquadrar o fenômeno visto em alguma categoria pertinente somente a sua própria cultura. Esse olhar baseado em valores próprios sempre continuará existindo, porém o que se percebe na reflexão de Hampaté Bâ (2003) no decorrer de sua obra é que a abertura para ouvir o outro é fundamental para que se processe um encontro de seres humanos, culturalmente diferentes, mas essencialmente iguais na condição humana.

Na tradição, todos os ambientes e situações são possibilidades para o aprendizado, e nesse caso, o ambiente da casa, da família é privilegiado, pois, do mesmo modo que há os momentos de maior severidade, existem os de total descontração e brincadeira. Vejamos o que Hampaté Bâ nos diz:

Neste aparente caos aprendíamos e retínhamos muitas coisas, sem dificuldade e com grande prazer, porque tudo era muito vivo e divertido. “Instruir brincando” sempre foi um grande princípio dos antigos mestres