• Nenhum resultado encontrado

Capitulo I: A representação africana: avanços e desafios

I. 4 – Nação e representação

A luta pela constituição das representações africanas culminou nos processos de independência e no estabelecimento dos respectivos países africanos. De acordo com Ki Zerbo (2009), uma das principais necessidades do continente africano talvez seja o estabelecimento dos Estados-nação, a partir do que fora deixado como divisão territorial da África na colonização. Tal necessidade se dá pelo fato de que essas nações, originadas da campanha expansionista e escravista europeia, forjaram encontros que outrora talvez não existissem, estabelecendo novas fronteiras culturais, políticas e econômicas aos próprios africanos, e consequentemente desestruturando organizações sociais anteriores. Tal empreendimento deixou uma carga de dificuldades aos africanos, o que acarreta inúmeros problemas a serem resolvidos.

Ainda segundo Ki Zerbo a busca pela construção dos diferentes Estados africanos deveria perpassar a perspectiva ética de solidariedade e cidadania, enquanto estados autônomos, os quais habita um conjunto vasto de culturas humanas que devem e precisam confluir. E, a partir das suas próprias culturas, constituírem um estado contemporâneo de direito.

Esses desafios conduzem à ideia de uma identidade africana nos Estados Nação48 que ainda não se consolidou de fato, embora várias medidas tenham sido

48

Sobre esta discussão e o que tem sido feito mais recentemente para promover o avanço dos países africanos é relevante visitar o site da UA – União Africana no seguinte endereço www.au.int

incentivadas, mas que na atualidade sofrem as restrições de avanço e aplicabilidade que talvez não estivessem nítidas inicialmente.

De acordo com Hampaté Bâ, o conceito de nação é um conceito que foi importado de outra realidade histórica. Trata-se de um conceito moderno que não atende a compreensão geográfica forjada pela tradição africana. A esse conceito caracteristicamente geográfico ele contrapõe com o conceito de etnias.

A África conheceu Estados, reinos, impérios, mas não “nações” na perspectiva geográfica e moderna da palavra. Os grandes conjuntos que se reivindicava e aos quais se sentia pertencer eram as etnias. Estas, muitas vezes móveis, podiam cobrir vastos territórios. Um fula de Macina podia viajar para a Costa do Marfim; lá, encontrava outros fulas e se sentia em família. Um senufo da Costa do Marfim que viesse para o Mali encontrava os seus. Cada grande cidade comportava bairros consagrados às diferentes etnias, de maneira que o viajante tinha certeza de sempre encontrar nelas irmãos. (2004, p.11).

Refletindo sobre a condição deixada pelos europeus ao continente africano, Hampaté Bâ nos diz que não houve escolha, o continente recebeu uma herança. No entanto, é importante que se retome esse início para que se possa perceber o que é relevante para a África e o que não é, e assim se possam fazer as distinções entre o parecer e o ser ela mesma.

E ainda,

Mas a dificuldade é que a África não pode viver a sua vida sem levar em consideração as contingências internacionais. Aliás, nenhum país pode mais, no mundo de hoje. Somos todos interdependentes. A revisão do início, bem como a revisão do processo em curso, precisa ser universal, e não reservada apenas à África. É um problema mundial. (2004, p.11-12).

Se pensarmos esta situação em acordo com a reflexão de Hampaté Bâ, perceberemos que a civilização deve pautar-se na noção ética de reciprocidade e compartilhamento; a negação do outro, ou mesmo a sua não oportunidade de pertença decisória no mundo contemporâneo, torna as relações empobrecidas. Essa ideia defendida por Hampaté Bâ (2004), assim como por Ki Zerbo (2009), leva em consideração que a própria instituição dos países africanos deve ser apresentada e organizada levando-se em conta a sua autonomia, o seu modo de organizar a economia e a maneira como devem ser estabelecidas as suas fronteiras geográficas a partir do que lhes foi delimitado. No entanto, a interferência externa sem diálogo, sem o devido respeito às características internas do continente africano, apenas

dificulta o estabelecimento de relações contributivas no âmbito internacional. Esses autores ponderam que a posição da África no mundo deve ser ocupada pelo diálogo, e na concepção de Hampaté Bâ, a condição deste diálogo se dá a partir do momento em que o continente africano possa apresentar-se a partir de suas culturas, dos seus referenciais civilizatórios, entre eles a tradição oral.

Esse diálogo é simultâneo: se por um lado é necessário garanti-lo internamente, é também necessário efetivá-lo externamente, ou seja, da África para o mundo. No entanto, o estabelecimento das identidades nacionais e suas representações internas requer que os líderes africanos tomem contato com as várias representações étnicas nacionais, o que determina, por exemplo, a maneira como o africano estabelece a sua economia doméstica. Em alguns grupos étnicos a pecuária ainda é o grande vetor de sustentação do grupo, independente das mudanças sociais existentes. Este é o caso, por exemplo, dos Massai49 do Quênia. Nesse sentido, qualquer governo africano que não perceba e entenda esses pontos estará fadado ao fracasso. Segundo Ki Zerbo (2009) o estado africano precisa gerir e aperfeiçoar o seu espaço territorial através da estruturação do estado federal, que desse conta do caráter amplo do espaço ocupado pelos diferentes grupos étnicos e das suas características culturais.

O Estado atual, instância média, seria uma federação dos poderes que operam na base e que correspondem às realidades concretas. Assim, não seria preciso destruir as fronteiras atuais, mas superá-las. Como levar em conta, por exemplo, os fatos senufo, haussá e sonrai num reordenamento da África Ocidental? É difícil gerir certas realidades em que há tensões atualmente. Ora, será necessário tornar as fronteiras atuais o mais leves possível, fazendo delas linhas pontilhadas em vez de muros de concreto, e transformá-las, de estruturas belígeras, em fontes de prosperidade e locomotivas de novas configurações. (KI ZERBO, 2009, p.82-83).

Essa situação ocorre em todos os países africanos, com maior ou menor intensidade. De acordo com Ki Zerbo a proposta de uma emancipação política e econômica não acontecerá se não levar em conta a diversidade que se encerra nesses países. E tentar propor políticas públicas comuns terá sempre o desafio de atender algumas especificidades regionais, locais.

Por isso, segundo Hampaté Bâ (2004) e Ki Zerbo (2009), haver a necessidade de entender as políticas organizacionais externas, mas também a necessidade de ter despertada a autonomia para o desenvolvimento de políticas que

49

estejam amparadas na realidade local. Embora este seja um dado facilmente perceptível, contudo não é facilmente aplicado e desenvolvido, e depara sempre no desafio do diálogo intersubjetivo.

Essas condições internas, inerentes ao continente africano hoje, estão muitas vezes longe da percepção externa, que, de acordo com a socióloga malinesa Aminata Traoré (2004), infelizmente ao não compreender tais situações ainda insiste muitas vezes em descrevê-la envolta em determinados estereótipos negativos, entre eles a fome, a miséria e os conflitos interétnicos, também denominados de conflitos tribais - aliás, um conceito ainda bastante marcado pela visão eurocêntrica de civilização, no qual o termo tribo é destinado a povos tidos como inferiores culturalmente, e consequentemente destituídos de uma noção mais elaborada de civilização.

Também é válido notar que esse juízo destinado ao continente africano cabe também a Europa, já que conflitos semelhantes acontecem ou aconteceram dentro dos países europeus, veja-se o exemplo do país Basco na Espanha, os históricos conflitos entre católicos e protestantes na Irlanda ou mesmo a separação belga entre descendentes de franceses e descendentes de holandeses. Enfim, muitos outros exemplos poderiam ser trazidos, todos com significado histórico. Porém, ao analisar o contexto africano, esses exemplos exteriores são intencionalmente esquecidos, e esta característica humana é atribuída apenas aos povos africanos, então como exemplo de atraso, daí o termo tribo. Essa análise é relevante, pois segundo Munanga (2009) ela carrega intenções, motivações que deslocam a reflexão sobre a condição humana como um todo, fazendo uma atribuição específica ao universo africano, principalmente quando o mesmo apresenta-se como um fenômeno alvo de críticas por parte de valores sóciomorais estabelecidos.

Do mesmo modo, pode-se pensar o estabelecimento dos estados federais, tais como propostos por Ki Zerbo (2009) quando propõe uma maior maleabilidade na delimitação de suas fronteiras. Essa proposta pode ser observada no estabelecimento, por exemplo, da União Europeia, que também procura romper com a ideia de fronteiras geográficas fixas na busca pela consolidação de um espaço ampliado de relações econômicas, políticas e culturais que esteja para além das delimitações geográficas dos países membros. Dessa maneira, a ideia de Ki Zerbo não é estranha e baseia-se em aspectos já experimentados e vivenciados nos antigos impérios africanos e compartilhada com as etnias.

A partir da análise que Hampaté Bâ (2010) faz da cultura, pode-se pensar que os valores culturais africanos estão permeando as suas civilizações, em especial as chamadas populações tradicionais. Esses mesmos valores podem e devem, segundo o autor, ser colocados à disposição do homem contemporâneo, pois muitos deles encerram valores universais, cabíveis à constituição do ser humano.

De acordo com o que pudemos apreender com Hampaté Bâ (2003) o ser humano é em sua vida, e esta vida é qualificada pela sua capacidade de elaborar encontros e dar sentido a sua jornada. Essa noção permite que se reconheça que o ser humano não nasce pronto, mas que ele se faz ao longo de sua vida, daí a relevância e a necessidade da educação. Essa perspectiva de análise é válida tanto ao olhar para os sujeitos individuais, quanto para as culturas e civilizações existentes. As experiências civilizatórias e suas respectivas culturas vão sendo maturadas através de processos de interação, de capacidade de reciprocidade e autoavaliação dos seus processos históricos.

No caso da África, não se pode destituí-la dos seus problemas, e consequentemente da responsabilidade que se deve ter sobre eles. De acordo com Appiah (1997) o não reconhecimento e enfrentamento desses problemas pode ocasionar uma limitação no entendimento de algumas discussões já universalizadas, que transcendem aspectos específicos de uma determinada cultura.

Um exemplo desta questão registra-se em alguns grupos étnicos em que a prática da infibulação50 e extirpação do clitóris nas meninas ainda em sua primeira infância é justificada em nome de uma cultura com caráter religioso e social. Esta prática tem levado muitas meninas à morte precoce, até mesmo pela precariedade com que é realizado o ato, na grande maioria das vezes sem nenhum recurso médico ou sanitário mais adequado. Além disso, mesmo as meninas que sobrevivem a tal manipulação, ao crescerem não podem vivenciar o sexo livre de dores, na qual a ausência do prazer é bastante comum. A prática da infibulação ainda se faz presente em algumas culturas também na África ocidental. Embora esse tema não apareça no relato de Hampaté Bâ (2003), neste está contido um cenário a ser investigado sobre a condição da mulher na sociedade do oeste africano tradicional e na contemporaneidade.

50

A infibulação feminina consiste na costura dos lábios vaginais e do clitóris. A extirpação do clitóris é a remoção desse órgão. Ver o caso da modelo somali Waris Dirie (1965- ), descrito na obra

Flor do deserto(2001). E também http://jus.com.br/artigos/21078/flor-do-deserto-mutilacao-genital-

Temos ainda, algumas práticas tradicionais ligadas ao universo mítico-místico que muitas vezes, por não dialogarem com novos conhecimentos oriundos da ciência, têm impedido que métodos mais eficazes de tratamento de saúde sejam desenvolvidos, levando assim muitas pessoas à morte51. Na perspectiva de Appiah (1997) devem-se repensar estes saberes na condição de pertencerem a um universo cultural distinto, mas que na busca pelo diálogo devem estar inseridos em uma ética universal que se firma a partir desses encontros, e que somente será fortalecida no momento em que todas as culturas também mediadas pelas outras, consigam tornar-se autocríticas e consequentemente avaliativas dos seus processos histórico-culturais. Tais análises quando bem conduzidas devem reconduzir aos sentidos dessas práticas e, com isso, recuperar sentidos de fato relevantes, mas que com o passar do tempo tornam-se invisíveis em nome de uma prática milenar que deixou de ser pensada. Com essa noção a própria educação é fortalecida, já que a cultura será refletida de maneira mais incisiva e sua transmissão, mesmo na tradição, será garantida no diálogo e na interação com o todo à sua volta, e neste todo, agora se inclui o outro modelo civilizatório, outrora tão distante, mas agora possível de ser pensado e compreendido através da acessibilidade proporcionada pela melhor condição dos meios de comunicação disponíveis, assim como através da tecnologia por eles utilizada. Esta proposta é compartilhada por Hampaté Bâ (2010) ao falar da tradição como um caminho de diálogo permanente com a contemporaneidade, já que essa cultura é dinâmica e atual, mesmo preservando valores ancestrais.

Ki Zerbo também faz um alerta semelhante ao de Appiah (1997) para o fato de que a África é um conjunto de problemáticas internas que precisam ser mais bem refletidas para que se estabeleçam as condições favoráveis ao diálogo externo. “Os africanos têm interesse em resolver eles próprios os seus problemas.” (KI ZERBO, 2009, p.58).

Deve-se descartar qualquer possibilidade de romantismo e ingenuidade em relação ao continente africano, para que se possa estabelecer uma reflexão coerente, um olhar atento sobre os seus povos e civilizações. Caso contrário, pode- se migrar do eurocentrismo52 para um afrocentrismo53. A África é dessa maneira alvo

51

O Prof. Dr. Acácio Sidinei Almeida Santos da Casa das Áfricas tem desenvolvido estudos nesta área, em especial na Costa do Marfim.

52

de múltiplos interesses, de muitas ideologias que a ela se referem de maneira tão díspar, seja ao negativá-la, ou ao positivá-la. A África é em si mesma um continente de contrastes, tal como qualquer outro: a sua gente é humana como qualquer outra, portanto passível da ambiguidade presente nesta condição. No entanto, o que se coloca na pauta das reflexões é o seu papel na história da civilização humana, as suas experiências, os seus pensamentos, as suas culturas, que podem, segundo Hampaté Bâ (2004), oferecer mais elementos para serem dialogados e com isto ampliar as possibilidades reflexivas do homem sobre si mesmo. E, nesse sentido, as contribuições são difíceis de ser mensuradas. Ki Zerbo afirma,

É por isso que é preciso favorecer as redes de grupos que criem um projeto para “o homem novo“ no séc. XXI. Um homem aberto a alteridade e que, sobre uma base econômica e social mínima esteja aberto às relações, às ligações humanas, a uma ética universal e aos valores. Quando falo de valores, penso nos valores morais, psicológicos, ideológicos e religiosos, mas não só. Proponho, pois, um projeto que seja como um foguete com três estágios: os bens econômicos, as ligações sociais (que compreendem as relações humanas, os serviços e a organização humana) e os valores. Esse projeto humano não visa simplesmente maximizar o consumo material. Será construído com base nos valores da solidariedade, convivência, alteridade, compaixão, autocontrole, piedade e equilíbrio... (2009, p.156-157).

O educador Paulo Freire (2003), quando de sua experiência no continente africano, nos diz sobre o quanto a África e suas culturas têm a nos ensinar, a começar pela maneira respeitosa de olhar para a natureza, em que o homem não se vê acima da natureza, mas com ela, assumindo responsabilidades em cuidar dela. Destaca também a noção integral do ser humano: o homem é um todo que é razão, emoção, corpo, alma, enfim, uma inteireza que se comunica por completo.

É nesse sentido que buscamos nas reflexões de Hampaté Bâ as condições de entender o papel da oralidade na educação, procurando nessa perspectiva local algo que possa ser relevante para refletirmos a educação no Brasil.

Assim, nada de desespero nem catastrofismo. As duas correntes existem: a positiva e a negativa. Em toda parte há homens que lutam para despertar as consciências, e eles encontram quem os ouça. O que é importante é nunca deixar de lutar. Qualquer esforço conta. A aparente pequenez de um esforço não impede que ele possa ter consequências consideráveis. Como dizia meu mestre Tierno Bokar: apesar de sua envergadura gigantesca, o baobá é engendrado por uma semente que não é maior que um grão de café. (Hampaté Bâ, 2004, p.12).

53

Ver FARIAS, P. F. de Moraes. Afrocentrismo: entre uma contranarrativa histórica universalista e o relativismo cultural. Afro-Ásia, 29;30. Salvador, 2003, p. 317-343.

De acordo com Ki Zerbo (2009) e Hampaté Bâ (2004) essas culturas funcionam como um novo fôlego para o estado tênue da civilização humana e do homem enquanto sujeito existencial. Elas não seriam soluções em si mesmas para problemas hoje globais, mas são fundamentais para que a heterogeneidade humana seja manifesta.