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3 – A África no contexto mundial: História e Cultura

Capitulo I: A representação africana: avanços e desafios

I. 3 – A África no contexto mundial: História e Cultura

A África a partir da modernidade estabeleceu no contexto mundial das relações internacionais papéis sociais, culturais e políticos complexos, já que num primeiro momento, foi alvo do interesse do colonizador no intuito de buscar a mão de obra, para as suas colônias na América e Caribe. Em um segundo momento foi ocupada pelo colonizador que pretendia estabelecer sobre o continente a extensão territorial dos seus impérios. E em um terceiro momento se verificaram as lutas pela independência dos países colonizados e com isso a busca pelo estabelecimento dos seus estados nacionais.

Esse processo da história da África44 mais recente pode também ser dividido como história colonial e história pós-colonial. Porém, alguns pesquisadores têm estudado outras maneiras de se entender e interpretar a história da África, entre eles está Ferran Iniesta professor de história da África na Universidade de Barcelona, propondo outras maneiras de realizar a divisão dos momentos históricos.

De acordo com Boahen,

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Sobre a história da África é relevante alertarmos que o nosso trabalho não visa traçar um panorama amplo dessa história, mas sim localizar a África no período colonial da infância e juventude de Amadou Hampaté Bâ e pós-colonial, período em que o autor registra as suas memórias na obra

Amkoullel, o menino fula (2003). Para aprofundar essa temática recomendamos a leitura da obra

completa da História Geral da África (2010), disponível em versão PDF para download. Também é significativa a obra de autores como Elikia M`bokolo com África Negra: História e Civilizações tomo 1

(2009), África Negra: História e civilizações tomo 2 (2011), ambos publicados pela Casa das Áfricas e

Alberto da Costa e Silva com as obras a Enxada e a Lança (2006), A manilha e o libambo (2002), entre outros. Estes textos estão disponíveis em língua portuguesa, o que torna o acesso facilitado principalmente para alunos de graduação, trabalhos de extensão e formação/capacitação de professores para o ensino fundamental e médio.

Na história da África jamais se sucederam tantas e tão rápidas mudanças como durante o período de 1880 e 1935. Na verdade, as mudanças mais importantes, mais espetaculares e também mais trágicas, ocorreram num lapso de tempo bem mais curto, de 1880 a 1910, marcado pela conquista e ocupação de quase todo continente africano pelas potências imperialistas e, depois, pela instauração do sistema colonial. A fase posterior a 1910 caracterizou-se essencialmente pela consolidação e exploração do sistema. (2010, p.1).

Nesse período colonial pelo relato de Hampaté Bâ (2003) estamos imersos em relações ainda mais delicadas entre a África e o colonizador. Os africanos desde a mais tenra idade eram induzidos, e muitas vezes de fato conduzidos a aceitar a cultura europeia como formação, mesmo que uma formação para produção de base. Nesse sentido, o esquecimento de alguns traços da cultura passa a ser fundamental para que se consolide uma possível perda de uma identidade africana como elemento valorativo. Ainda segundo Boahen,

Até 1880, em cerca de 80% do seu território, a África era governada por seus próprios reis, rainhas, chefes de clãs e de linhagens, em impérios, reinos, comunidades, e unidades políticas de porte e natureza variados. No entanto, nos 30 anos seguintes, assiste-se a uma transmutação extraordinária, para não dizer radical, dessa situação. Em 1914, com a única exceção da Etiópia e da Libéria, a África inteira vê-se submetida à dominação de potências europeias e dividida em colônias de dimensões diversas, mas de modo geral, muito mais extensas do que as formações políticas preexistentes e, muitas vezes, com pouca ou nenhuma relação com elas. Nessa época, aliás, a África não é assaltada apenas na sua soberania e na sua independência, mas também em seus valores culturais. (2010, p.3).

A análise histórica de Boahen colabora para a compreensão dos fenômenos descritos por Hampaté Bâ, que revelam uma série de situações em que através da presença europeia no continente era imposto um modo de ser. Essa característica pode ser refletida aqui com o auxílio do conceito de dominação de Weber. Para Weber (1991,p.139) chama-se de “dominação a probabilidade de encontrar obediência para ordens específicas (ou todas) dentro de determinado grupo de pessoas”.

Este autor ainda reflete que existem três tipos de dominação: a de caráter racional, que se baseia na crença legítima das ordens e direito de mando daqueles que são imbuídos para dominar; a de caráter tradicional, que está baseada na crença em valores constituídos ao logo da história da comunidade; e a de caráter carismático que se baseia em algum tipo de veneração. Destes tipos de dominação,

pode-se notar que a relação que a Europa constituiu com a África em seu período colonial baseia-se especialmente no primeiro tipo, a de caráter racional, já que foi planejada e calculada e concentra-se em um tipo de representação que justifica e legitima tais atos. De acordo com Vieira45 (2006, p.47) “a sociologia da dominação de Weber tem como centralidade a preocupação latente pelo entendimento do exercício do poder e do conceito de dominação social”. É exatamente esta questão que se coloca em questão para entendermos os reflexos do colonialismo no continente africano.

A África sob o jugo europeu estava à mercê não de suas necessidades, mas das necessidades que o colonizador lhe impunha. Este fardo sufocava em grande parte a possibilidade de uma identidade africana consolidar-se de modo efetivo. A própria imagem da África para os africanos estava diluída na perspectiva do negativismo, da ausência do espaço político e da desvalorização cultural imposta pelos europeus. De acordo com Hampaté Bâ (2003) era comum que aqueles africanos ainda próximos às suas heranças culturais denominassem os africanos que passavam a seguir os padrões da cultura externa ou de certa forma afastavam- se de suas culturas originais de “negros – brancos“.

Para Hampaté Bâ (2004) essa rejeição da própria cultura tem levado ao poder líderes descompromissados com a realidade africana, que, por não acreditarem na capacidade dos seus próprios países e seus povos superarem crises, acabam por desenvolver governos que atendam interesses pessoais, constituindo verdadeiras fortunas que são soberbamente alimentadas por capitais estrangeiros que procuram estabelecer seus interesses nas economias internas desses países. Aliás, esse quadro tem permitido que os modelos coloniais, agora sob uma nova bandeira neocolonial, continuem mantendo seus monopólios na África. Dessa maneira, possibilitaram o surgimento de governos ditatoriais.

Esses governos podem ser refletidos a partir de outro conceito associado a Weber, o patrimonialismo, que diz respeito à perda da noção do público com o privado, ou seja, a posse de um determinado espaço político de representação pública é vista apenas como extensão de interesses particulares, e em decorrência disso as ações desses governantes passam a se perder do comprometimento com o

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O Prof. Dr. César Romero Amaral Vieira é o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba e tem pesquisas relacionadas a instituições e suas representações sociais.

povo que representam, mas antes passam a seguir uma perspectiva pessoal, de interesses particulares. No entanto, esse conceito estaria mais ligado à perspectiva das relações tradicionais e poderia ser melhor refletido nos governos antigos e medievais, nos quais na realidade essa noção pública e privada nem sempre era definida. Essa noção de distinção está mais presente nos governos atuais. No caso dos governos africanos contemporâneos Bruhns (2012) faz-se perceber que o uso do termo neopatrimonialismo seria mais apropriado para analisar esses governos, já que esse conceito tem condições melhores de observar os diferentes e múltiplos fenômenos sociais que ocorrem em um estado contemporâneo.

E desse modo Hampaté Bâ afirma,

Qualquer ditadura preocupa, seja na África ou em outro lugar, sobretudo quando constatamos que a maioria dessas ditaduras só parece ter como finalidade satisfazer um punhado de homens, ou certa categoria de homens, e nunca o povo em seu conjunto. O povo, aliás, sente-se geralmente estranho ao que acontece na cúpula e as lutas pelo poder. Sejam intelectuais ou militares, para eles são toubaboumoro, “gente dos brancos”, isto é, gente que imita os brancos, pensa e age como os brancos e não segundo a tradição africana. (2004, p.9).

O relato de Hampaté Bâ (2003) coloca-nos diante de um dos desafios a que a África estará submetida desde a sua colonização até os dias de hoje. A construção da representação africana é desafiada pela necessidade da África compreender-se em si mesma, mas em diálogo também com o colonizador. Nesse contexto é necessário pensar que a África sob o jugo europeu e já tendo incorporado os elementos também dessa cultura, começa um processo de autoentendimento, no qual se configura um pensamento já mestiço. A ideia de pensamento mestiço deriva do fato de que por meio desses encontros socioculturais, todos os envolvidos são transformados. De acordo com Gruzinski (2001) “a identidade define-se sempre, pois, a partir de relações e interações múltiplas“. Nessa reflexão, pode-se dizer que somente somos o que somos com e pelo outro, até mesmo aquele que rejeitamos.

E se pensamos este fato também com a análise de Certeau (2004) percebe- se que a modificação do espaço cultural dado a partir da colonização se dá com o instrumental estrategicamente pensado pelo colonizador, mas adaptado e transformado no cotidiano das pessoas na busca pela sua sobrevivência e dignidade. O encontro entre os povos e suas culturas como analisado por Gruzinski, teve no caso africano, ou das culturas africanas um impacto considerável no mundo. Na análise do historiador Ali Mazrui (2010) as antigas aldeias africanas foram

invadidas pelo colonizador, mas estes colonizadores não perceberam que com esta ação, juntamente com o processo de escravização, fizeram por conduzir estas aldeias para o mundo, e este seria transformado de um modo significativo. Esses encontros culturais nunca são inertes. Esta análise tem correspondência com a composição de Gilberto Gil chamada Chuck Berry Fields Forever = Eternos campos

de Chuck Berry46.

Esta composição de Gilberto Gil faz menção com o título da letra dos Beatles, chamada Strawberry Fields Forever ou os Eternos campos de morango. A letra de Gil fala da música africana chegando a Europa e sendo transformada nas Américas e Caribe.

Vejamos a letra desta música,

Trazidos d´África pra Américas de norte e sul Tambor de tinto timbre tanto tonto tom tocou E neve, garça branca valsa do Danúbio Azul. Tonta de tanto embalo, num estalo desmaiou. Vertigem verga, a virgem branca tomba sob o sol. Rachado em mil raios de Xangô E assim gerados, a rumba, o mambo, o samba, o rhythm´n blues Tornaram-se os ancestrais, os pais do Rock and Roll Rock é o nosso tempo, baby Rock and roll é isso Chuck Berry Fields Forever Os quatro cavaleiros do após calypso O após calypso Rock and Roll Capítulo um Versículo vinte Sículo vinte Século vinte e um Versículo vinte Sículo vinte Século vinte e um (RENNÓ, 1996)

É válido também pensar que o retorno para a África dessas culturas transformadas na diáspora foi bastante intenso, e que elas ajudaram a constituir outras formas culturais no continente. Um exemplo bastante interessante dessas possibilidades é o caso dos Agudás47 no Benin, que se constitui como um novo grupo étnico formado a partir de descendentes de africanos que foram escravizados no Brasil e que retornam ao Benin levando costumes brasileiros. Temos nesse caso um fenômeno marcante que influenciou também na organização sociocultural

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O cantor e instrumentista negro estadunidense Charles Edward Anderson Berry (1926- ), conhecido como Chuck Berry, é considerado o pai do rock in roll.

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Ver as obras: Negros, estrangeiros: Os escravos libertos e sua volta à África (2012) de Manuela Carneiro da Cunha e Agudás, os brasileiros do Benin (2000) de Milton Guran.

desses países, já que ao retornarem ao continente africano, essas pessoas não eram mais absorvidas em suas culturas originais, em seus respectivos grupos étnicos, pois ao assumirem uma identidade cultural distinta da original, na qual se inclui o idioma, a religião entre outros, eram vistos como um grupo estranho em seu próprio território de origem, e desse modo, passaram a constituir-se, a organizar-se em torno da própria noção de etnia, fazendo então surgir um novo grupo étnico.

Essas características da organização nativa africana são fundamentais na perspectiva de Hampaté Bâ (2004) para se entender os desafios na constituição dos estados africanos contemporâneos, já que descrevem um modo de ser distinto daqueles baseados no modelo europeu.