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Discurso judicial e criminalização da homotransfobia no Brasil: ponderações desde uma teoria e criminologia queer

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA FACULDADE DE DIREITO “PROF. JACY DE ASSIS”

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO EM DIREITO

DANLER GARCIA SILVA

DISCURSO JUDICIAL E CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOTRANSFOBIA NO BRASIL:

PONDERAÇÕES DESDE UMA TEORIA E CRIMINOLOGIA QUEER

UBERLÂNDIA 2020

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DANLER GARCIA SILVA

DISCURSO JUDICIAL E CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOTRANSFOBIA NO BRASIL:

PONDERAÇÕES DESDE UMA TEORIA E CRIMINOLOGIA QUEER

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade Federal de Uberlândia para a obtenção do título de Mestre em Direito.

Área de concentração: Direitos e Garantias Fundamentais

Linha de pesquisa: Tutela Jurídica e Políticas Públicas

Orientadora: Profa. Dra. Debora Regina Pastana

UBERLÂNDIA 2020

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Silva, Danler Garcia, 1996-S586

2020 Discurso judicial e criminalização da homotransfobia no Brasil [recurso eletrônico] : ponderações desde uma teoria e criminologia queer / Danler Garcia Silva. - 2020.

Orientadora: Debora Regina Pastana.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Uberlândia, Pós-graduação em Direito.

Modo de acesso: Internet.

CDU: 340 1. Direito. I. Pastana, Debora Regina,1974-, (Orient.). II.

Universidade Federal de Uberlândia. Pós-graduação em Direito. III. Título.

Disponível em: http://doi.org/10.14393/ufu.di.2020.400 Inclui bibliografia.

Bibliotecários responsáveis pela estrutura de acordo com o AACR2: Gizele Cristine Nunes do Couto - CRB6/2091

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DANLER GARCIA SILVA

DISCURSO JUDICIAL E CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOTRANSFOBIA NO BRASIL:

PONDERAÇÕES DESDE UMA TEORIA E CRIMINOLOGIA QUEER

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade Federal de Uberlândia para a obtenção do título de Mestre em Direito.

Área de concentração: Direitos e Garantias Fundamentais

Linha de pesquisa: Tutela Jurídica e Políticas Públicas

Uberlândia, 31 de março de 2020.

__________________________________________________ Profa. Dra. Debora Regina Pastana (UFU)

__________________________________________________ Profa. Dra. Flavia do Bonsucesso Teixeira (UFU)

__________________________________________________ Profa. Dra. Ana Gabriela Mendes Braga (UNESP)

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https://www.sei.ufu.br/sei/controlador.php?acao=documento_imprimir_web&acao_origem=arvore_visualizar&id_documento=2236398&infra_siste… 2/2 Superior, em 31/03/2020, às 17:27, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.

Documento assinado eletronicamente por Flávia do Bonsucesso Teixeira, Professor(a) do Magistério Superior, em 31/03/2020, às 19:37, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.

Documento assinado eletronicamente por Ana Gabriela Mendes Braga, Usuário Externo, em 01/04/2020, às 06:46, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do

Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.

A auten cidade deste documento pode ser conferida no site

h ps://www.sei.ufu.br/sei/controlador_externo.php?

acao=documento_conferir&id_orgao_acesso_externo=0, informando o código verificador 1974860 e o código CRC 3F511F9A.

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Para a minha avó/mãe, Darismar Garcia. Para os seres abjetos.

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RESUMO

O intento desta dissertação de mestrado é compreender como o poder judiciário brasileiro, corporificado pelo Supremo Tribunal Federal, contemplou e materializou a violência homotransfóbica no Brasil por intermédio do julgamento das ações judiciais acerca da criminalização da homotransfobia, assim como se a criminalização dessa violência é um artifício legítimo e apto a enfrentar essa violência no Brasil. Por intermédio dos métodos de pesquisa bibliográfico e documental, esta pesquisa se alicerça em estudos críticos da criminologia, da sociologia, da antropologia e do direito, quer em estudos nacionais, quer em estudos estrangeiros, o que é contemplado por livros, artigos científicos, bem como por investigações e estudos acadêmicos de pós-graduação stricto sensu. Concernente à pesquisa documental, esta dissertação examina um documento e relatório acerca dos índices da violência homotransfóbica no Brasil mediante os dados oficiais empreendidos pelo poder público, assim como examina o julgamento do Supremo Tribunal Federal acerca da criminalização da homotransfobia no país, o que ocorreu por intermédio da investigação dos votos dos ministros concernentes ao MI 4.733 e ADO 26. À vista disso, alicerça-se no instrumental da análise crítica do discurso para perquirir os discursos instrumentalizados pelos ministros em seus votos que versam acerca da violência homotransfóbica, sexo, gênero e sexualidade, vulnerabilidade, precariedade e tutela, assim como demais marcadores sociais da diferença, como raça, por exemplo. Por conseguinte, mediante a teoria queer e a criminologia queer, referenciais teóricos para esta pesquisa, o discurso judicial do Supremo Tribunal Federal que materializou a violência homotransfóbica, criminalizando-a sob o alicerce da extensão e prolongamento das categorias de raça e racismo à orientação sexual e identidade de gênero, de maneira que homotransfobia se tornou racismo, é sobremaneira descabido. Outrossim, a criminalização da homotransfobia é um artifício simbólico e irrisório para o enfrentamento dessa violência, uma vez que essa política criminal compreende a violência homotransfóbica como uma violência interpessoal tão somente, desatentando-se do fato de que essa violência é estrutural, institucional e está imiscuída em variados campos da vida brasileira. Assim, uma vez que essa violência no país é real, não somente compreendê-la, mas compreender como tem sido contemplada pelo direito e pelo poder judiciário brasileiro torna-se objeto crucial, presente e meritório de pormenorizações.

Palavras-chave: Violência homotransfóbica. Discurso judicial. Criminalização da homotransfobia. Teoria queer. Criminologia queer.

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ABSTRACT

The intent of this master's thesis is to understand how the Brazilian judiciary, embodied by the Federal Supreme Court, contemplated and materialized homotransphobic violence in Brazil through the judgment of lawsuits concerning the criminalization of homotransphobia, as well as whether the criminalization of this violence is a legitimate and capable artifice to face this violence in Brazil. Through bibliographic and documentary research methods, this research is based on critical studies of criminology, sociology, anthropology and law, both in national and foreign studies, which is contemplated by books, scientific articles, as well as stricto sensu academic research and studies. Concerning documentary research, this dissertation examines a document and report on the rates of homotransphobic violence in Brazil through official data undertaken by the government, as well as examining the judgment of the Supreme Federal Court on the criminalization of homotransphobia in the country, which occurred by through the investigation of the ministers' votes concerning MI 4.733 and ADO 26. In view of this, it is based on the instrumental of critical discourse analysis to investigate the speeches instrumentalized by the ministers in their votes that deal with homotransphobic violence, sex, gender and sexuality, vulnerability, precariousness and guardianship, as well as other social markers of difference, like race, for example. Therefore, through queer theory and queer criminology, theoretical references for this research, the judicial discourse of the Supreme Federal Court that materialized homotransphobic violence, criminalizing it under the foundation of the extension and prolongation of the categories of race and racism to sexual orientation and gender identity, in a way that homotransphobia has become racism, is largely unreasonable. Furthermore, the criminalization of homotransphobia is a symbolic and derisory artifice for facing this violence, since this criminal policy understands homotransphobic violence as interpersonal violence only, ignoring the fact that this violence is structural, institutional and is immiscible in various fields of Brazilian life. Thus, since this violence in the country is real, not only understanding it, but understanding how it has been contemplated by the law and the Brazilian judiciary has become a crucial, present and meritorious object of detailing.

Key-words: Homotransphobic violence. Judicial speech. Criminalization of homotransphobia. Queer theory. Queer criminology.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...7

2 UNIVERSO QUEER...12

2.1 Teoria queer...12

2.2 Criminologia queer...24

2.3 Queer no Brasil: entre pós-colonialismos e interseccionalidades/articulações...30

3 VIOLÊNCIA HOMOTRANSFÓBICA NO BRASIL...36

3.1 Violência homotransfóbica no Brasil: índices...36

3.2 Violência homotransfóbica no Brasil: entre a violência interseccional/articulatória e a violência institucional...44

3.3 Violência homotransfóbica: para além da fobia, abjeção e ódio...53

4 VIOLÊNCIA HOMOTRANSFÓBICA, DIREITO, DISCURSO JUDICIAL E CRIMINALIZAÇÃO...57

4.1 Heteronormatividade no direito e na justiça brasileira...57

4.2 Itinerários da criminalização da homotransfobia no Brasil...65

4.3 Inspirações e ponderações teórico-metodológicas...71

4.4 Discurso judicial, criminalização e a materialização da violência homotransfóbica pelo poder judiciário brasileiro...74

4.5 Críticas acerca da criminalização da homotransfobia no Brasil pelo poder judiciário...95

4.6 Criminalização da homotransfobia desde um prisma queer...99

5 CONCLUSÃO...107

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1 INTRODUÇÃO

No país em que a letalidade, a hostilização, a marginalização e a humilhação contrárias a gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais aparentam ser triviais, a violência homotransfóbica no Brasil torna-se notória não somente por sua habitualidade, mas, outrossim, por sua austeridade. Uma violência que é materializada e corporificada, dentre outras maneiras, por mortes e hostilizações físicas atrozes, a homotransfobia reputa-se como problemática e temática brasileira dotada de magnitude político-jurídica e sociocultural.

Para além de ser uma violência interpessoal, vale dizer, para além de ser uma fobia psíquica, patológica e individual, a violência homotransfóbica traceja-se como uma violência estrutural, como o racismo, o sexismo e a misoginia, por exemplo. Assim, por ser oriunda de uma ordem sexual hegemônica e heteronormativa, isto é, uma estrutura normativa que assevera que todos os sujeitos devem integrar-se à orientação sexual e identidade de gênero hegemônicas – heterossexualidade e cisgeneridade –, a violência homotransfóbica está imiscuída em instituições várias, quer nas instituições políticas, econômicas, midiáticas, familiares, escolares, religiosas, médicas, nas instituições públicas e privadas, quer, outrossim, nas instituições jurídicas e nas instituições do sistema de justiça criminal1.

Ao enfrentarem e desmantelarem a heteronormatividade e as subsequentes orientações sexuais e identidades de gênero hegemônicas, gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais são reputados como seres abjetos, “não humanos” detentores de vidas precárias, vulnerabilidade e precariedade, cujas vidas precárias não são contempladas como vidas.

Por conseguinte, como corolário da violência homotransfóbica empírica no Brasil, a sua criminalização tornou-se uma demanda categórica do movimento LGBT brasileiro. Pleiteada para se tornar crime, como a violência racial, a violência doméstica e familiar contra a mulher e o feminicídio, por exemplo, o movimento LGBT não tem logrado êxito mediante sua articulação política e reivindicação por intermédio do poder legislativo. À vista disso, é por intermédio do poder judiciário, mormente pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que o movimento LGBT brasileiro tem logrado triunfo no deslinde de suas reivindicações acerca da criminalização da homotransfobia.

1 Por “instituições do sistema de justiça criminal” compreende-se não só o poder judiciário, mas, para além dos

integrantes da magistratura, os integrantes do ministério público, os integrantes da defensoria pública, os integrantes da polícia civil e da polícia militar, vale dizer, os delegados e os policiais civis e militares, os advogados públicos e privados, os funcionários da justiça criminal, assim como toda a execução penal, isto é, as prisões e os seus funcionários (CASTILHO; CAMPOS, 2018; SADEK, 2010).

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Assim, foi por intermédio do Mandado de Injunção (MI) 4.733 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 que a violência homotransfóbica foi contemplada crime no Brasil pelo Supremo Tribunal Federal no ano de 2019. A Corte asseverou que até que o Congresso Nacional edite lei distintiva que criminalize a homotransfobia, essa violência enquadrar-se-á como crime pela Lei 7.716/1989 – “Lei do Racismo”.

Por conseguinte, uma vez que o direito é uma estrutura normativa que arquiteta saberes-poderes normatizadores, os onze ministros do Supremo Tribunal Federal, como sujeitos detentores de evidente capital simbólico e de discursos com categóricos vínculos de saber-poder normatizador, materializaram em seus votos categorias analíticas como sexo, gênero, sexualidade, violência homotransfóbica e criminalização. Sob esse prisma, como a violência homotransfóbica foi compreendida pelo poder judiciário brasileiro, mormente pelo Supremo Tribunal Federal enquanto instância máxima do poder judiciário no país? Quais enquadramentos discursivos materializaram sexo, gênero, sexualidade e violência homotransfóbica? Quais enquadramentos discursivos materializaram vulnerabilidade, precariedade e tutela? Tais enquadramentos discursivos potencializaram a vulnerabilidade e a precariedade de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais? Como a disposição da abjeção e da tutela foram empreendidas pelos enquadramentos discursivos? Homotransfobia, orientação sexual e identidade de gênero foram articuladas a outras violências e marcadores sociais da diferença? Outrossim, seria a instrumentalização do direito penal e a subsequente criminalização da violência homotransfóbica o artifício mais apropriado para versar acerca dessa problemática no país?

Por intermédio dos votos e dos discursos dos ministros do Supremo Tribunal Federal concernentes ao julgamento das ações judiciais acerca da criminalização da homotransfobia no Brasil – MI 4.733 e ADO 26 –, a violência homotransfóbica igualou-se ao “racismo social”. Como asseverado nas seções subsequentes deste trabalho, por intermédio de uma abordagem interseccional/articulatória em que múltiplos marcadores sociais da diferença – classe, raça, etnia, gênero, sexualidade, nacionalidade, religião etc. – articulam-se mútua e sincronicamente, a homotransfobia por certo se articula a outras violências, como o racismo, por exemplo. Todavia, isso é discrepante do que asseverar que homotransfobia é racismo. Assim, o discurso judicial do Supremo Tribunal Federal que materializou a violência homotransfóbica, criminalizando-a sob o alicerce da extensão e prolongamento das categorias de raça e racismo à orientação sexual e identidade de gênero, de maneira que homotransfobia se tornou racismo, é sobremaneira descabido.

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Ademais, este estudo compreende que a criminalização da homotransfobia, da maneira como foi instrumentalizada, é um artifício simbólico e irrisório para o enfrentamento dessa violência, uma vez que o entendimento imperante na decisão judicial da Corte compreendeu a violência homotransfóbica como uma violência interpessoal tão somente, desatentando-se do fato de que essa violência é estrutural, institucional e está imiscuída em variados campos da vida brasileira. Ademais, tal criminalização da homotransfobia ignorou a interseccionalidade/articulação de violências que gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais padecem e, outrossim, ignorou o fato de que essa violência é empreendida, retroalimentada e perpetuada pelas próprias instituições do sistema de justiça criminal, vale dizer, pelo Estado. Ora, como se socorrer daquele que é o próprio legitimador da violência?

Por seu turno, como objetivo geral, este trabalho aspira compreender como o poder judiciário brasileiro, corporificado pelo Supremo Tribunal Federal, contemplou e materializou a violência homotransfóbica no Brasil por intermédio do julgamento das ações judiciais acerca da criminalização da homotransfobia – MI 4.733 e ADO 26. Outrossim, aspira-se compreender, por intermédio do instrumental da análise crítica do discurso, quais enquadramentos discursivos, fundamentos e assertivas foram instrumentalizados pelos ministros do Supremo Tribunal Federal para materializar violência homotransfóbica, sexo, gênero, sexualidade, vulnerabilidade, precariedade, tutela, assim como demais marcadores sociais da diferença, como raça, por exemplo.

Como objetivos específicos, este trabalho aspira compreender a teoria queer e a criminologia queer, referenciais teóricos para esta pesquisa, articuladas aos estudos do pós-colonialismo e da interseccionalidade/articulação, para que se compreenda a problemática da violência homotransfóbica no Brasil. Outrossim, intenta-se compreender a violência homotransfóbica, suas singularidades, como é materializada no país, assim como o vínculo subsistente entre o direito, sexo, gênero, sexualidade e violência homotransfóbica. Enfim, possui-se como intento compreender se a criminalização da violência homotransfóbica é um artifício legítimo e apto a defrontar e enfrentar essa violência no Brasil.

Os referenciais teóricos desta pesquisa são a teoria queer e a criminologia queer. A teoria queer, como corpus teórico não ortodoxo e não homogêneo, alicerça-se na crítica à heteronormatividade, às identidades fixas, aos binarismos sexuais (heterossexual versus homossexual) e de gênero (masculino versus feminino), às normas e saberes que naturalizam e normatizam sexo, gênero e sexualidade, assim como à condenação, criminalização e patologização das orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas. Por conseguinte, a teoria queer evidencia as relações de poder, os discursos normatizadores, os

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artifícios simbólicos e os arranjos políticos que arquitetam não somente sexo, gênero e sexualidade, mas a própria vida humana. Assim, é por intermédio das ponderações de Judith Butler, Berenice Bento e Richard Miskolci que este trabalho recorre aos estudos queer para investigar não somente a violência homotransfóbica no Brasil, mas os discursos judiciais imiscuídos nos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

Por seu turno, a criminologia queer alicerça-se nas críticas arquitetadas pela teoria queer para, por conseguinte, evidenciar as vivências e experiências que gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais possuem concernente à violência latu sensu e os seus vínculos com as instituições do sistema de justiça criminal. Por conseguinte, a criminologia queer investiga as instituições do sistema de justiça criminal por intermédio de um prisma crítico, verificando como essas instituições retroalimentam as violências que alvejam a vida daqueles que possuem orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas. Assim, é por intermédio das reflexões de Matthew Ball e Salo de Carvalho que este trabalho recorre à criminologia queer para investigar a criminalização da violência homotransfóbica no Brasil.

Concernente à metodologia, esta pesquisa, de cariz exploratório, alicerça-se em pesquisa bibliográfica e em pesquisa documental. No que concerne à pesquisa bibliográfica, esta dissertação se alicerça em estudos críticos da criminologia, da sociologia, da antropologia e do direito acerca da problemática aqui contemplada, quer em estudos nacionais, quer em estudos estrangeiros. Assim, a bibliografia é contemplada por livros, artigos científicos, assim como por investigações e estudos acadêmicos de pós-graduação stricto sensu.

No que concerne à pesquisa documental, esta dissertação examina um documento e relatório acerca dos índices da violência homotransfóbica no Brasil mediante os dados oficiais empreendidos pelo poder público. Ademais, examina-se o julgamento do Supremo Tribunal Federal acerca da criminalização da homotransfobia no país, o que ocorreu por intermédio da investigação dos votos dos ministros concernentes ao MI 4.733 e ADO 26. À vista disso, alicerça-se no instrumental da análise crítica do discurso para perquirir os discursos instrumentalizados pelos ministros em seus votos. Assim, todo o rito da pesquisa documental está apropriadamente explicitado na seção 4.3 deste trabalho – “Inspirações e ponderações teórico-metodológicas”.

Concernente à estrutura, este trabalho se fragmenta em três seções de desenvolvimento para além da introdução e conclusão. A segunda seção versa acerca dos referenciais teóricos da pesquisa, investigando os alicerces teóricos da teoria queer, da criminologia queer, assim como do pós-colonialismo e da interseccionalidade/articulação, para que se compreenda a problemática da violência homotransfóbica no Brasil. A terceira seção versa acerca da violência

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homotransfóbica, investigando como essa violência é materializada e corporificada no país por intermédio de documento e relatório oficial, assim como é contemplada por estudos e pesquisas teórico-empíricas. Enfim, a quarta seção versa acerca do vínculo entre direito e violência homotransfóbica, investigando o liame subsistente entre o campo jurídico, sexo, gênero, sexualidade e violência homotransfóbica, como essa violência foi contemplada e materializada pelos enquadramentos discursivos operacionalizados pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, assim como se a instrumentalização do direito penal e a subsequente criminalização da homotransfobia é um artifício legítimo e apto a defrontar e enfrentar essa violência no país.

À vista disso, por “violência homotransfóbica”, ou “homotransfobia”, compreende-se a violência contrária a gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, vale dizer, a violência contrária às orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas – orientações sexuais não heterossexuais e identidades de gênero não cisgêneros. Possui-se a consciência de que nomenclaturas e categorias “guarda-chuva”, como “homotransfobia”, possuem a aptidão, para além de colonizar as diferenças, empreender silenciamentos e displicências no que concerne às singularidades de sujeitos que integram identidades coletivas, como a “população LGBT”. Assim, ainda que se compreendam as singularidades da violência homofóbica, lesbofóbica, bifóbica e transfóbica, instrumentaliza-se “violência homotransfóbica” ou “homotransfobia”.

Outrossim, este trabalho não instrumentaliza a nomenclatura “LGBTfobia”, uma vez que o referencial teórico desta pesquisa é a teoria queer e, como é abordado nas seções subsequentes deste trabalho, queer está em contrariedade às políticas identitárias que são arquitetadas pelo movimento LGBT. Visto que não há nada mais identitário do que o acrônimo “LGBT”, este trabalho opta pela nomenclatura “homotransfobia” para versar acerca da violência contrária aos sujeitos detentores de orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas. Ademais, critica-se o acrônimo “LGBTI” e a nomenclatura “LGBTIfobia” que aspiram imiscuir os intersexuais à violência contrária às orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas. Ora, os sujeitos intersexuais, para além de não aspirarem se integrar à “população LGBT”, possuem suas singularidades em decorrência não de orientação sexual e identidade de gênero, mas da diferença corporal, como também é abordado em seções subsequentes deste trabalho.

Assim, uma vez que a violência homotransfóbica no Brasil é real, e visto que não é uma temática expressiva e robusta no universo da pesquisa jurídica, não somente compreendê-la, mas compreender como tem sido contemplada pelo direito e pelo poder judiciário brasileiro torna-se objeto crucial, presente e meritório de pormenorizações.

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2 UNIVERSO QUEER

Nesta seção do trabalho investigam-se os referenciais teóricos que conferem os alicerces para compreender a conjuntura em que gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais vivenciam e experienciam a violência homotransfóbica no Brasil. Por intermédio da teoria queer, contempla-se a heteronormatividade, as identidades fixas, os binarismos sexuais e de gênero, os discursos de saber e poder que naturalizam e normatizam sexo, gênero e sexualidade, assim como a ordem sexual hegemônica que prognostica a lógica normativa sexo-gênero-sexualidade, em que há a normatização de uma orientação sexual heterossexual e de uma identidade de gênero cisgênero. Por intermédio da criminologia queer, contemplam-se as vivências e experiências que gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais possuem concernente à violência latu sensu e os seus vínculos com as instituições do sistema de justiça criminal. Todavia, em contrariedade a uma transportação acrítica e simplista de teorias, a articulação crítica de abordagens teóricas para se investigar os pormenores da violência homotransfóbica no Brasil é substancial. Assim, articula-se, ainda que de maneira introdutória, os estudos queer aos estudos do pós-colonialismo e da interseccionalidade/articulação.

2.1 TEORIA QUEER

O que se compreende por “queer” emergiu como crítica à ordem sexual hegemônica e como corolário dos movimentos sociais norte-americanos da década de 1960, tais como o movimento negro, o movimento feminista de segunda onda e o movimento gay. Esses movimentos sociais são significativos por emergirem posteriormente ao movimento operário, assim como por se imiscuírem em temáticas e problemáticas para além da desigualdade material e redistribuição econômica (MISKOLCI, 2017).

Ante a conjuntura norte-americana, na década de 1960 o vocábulo “gay” tornou-se uma predileção ao vocábulo “homossexual”, uma vez que gays e lésbicas evidenciavam um locus de orgulho acerca de suas orientações sexuais. Na década de 1970 a política de gays e lésbicas perfilhou uma política identitária, vale dizer, gays e lésbicas singularizavam-se como uma coletividade minoritária, mas que aspirava lograr igualdade de direitos. A asserção dessa identidade pleiteava a delimitação de fronteiras sexuais, isto é, a asserção de uma identidade gay e lésbica era substancial para a coletividade, o que reverberou na imprescindibilidade desses sujeitos “saírem do armário” (LOURO, 2018; SPARGO, 2017).

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Todavia, a datar da década de 1980 a coletividade de gays e lésbicas tornou-se depreciada por privilegiar e representar os valores da classe média branca. Por conseguinte, as travestis, as/os transexuais, os gays efeminados, as lésbicas masculinizadas, os sadomasoquistas, assim como todos os que não se portavam de maneira conservadoramente civilizada, estorvavam o cariz assimilacionista da política identitária. Se gays e lésbicas almejassem viver em igualdade em uma ordem social heteronormativa, esses mesmos sujeitos deveriam tornar-se iguais aos “normais”, uma vez que seria supérfluo ostentar desejos e idiossincrasias transgressoras ante o status quo. Assim, à proporção que a política gay e lésbica lograva para si, vagarosamente, notoriedade e respeitabilidade, o ideal da identidade coletiva desmantelava-se mediante as disparidades intrínsecas da coletividade (SPARGO, 2017).

Com a emergência da Aids na década de 1980 empreendeu-se um robustecimento da homofobia. À conjuntura norte-americana, houve uma renegação estatal em reconhecer a emergência do fenômeno como temática de saúde pública. Por seu turno, a coletividade de gays e lésbicas, já fragilizada e fragmentada, estava ante uma nova problemática, uma vez que os discursos que deturpavam a Aids, evidenciando-a como “câncer gay”, reverberavam em uma expansão da homofobia, o que tornou imprescindível reexaminar a política identitária. Assim, engendraram-se novas coalizões entre gays e lésbicas, não mais alicerçadas na identidade, mas na transgressão, subversão e resistência às representações hostis que custavam a vida dos que possuíam Aids (SPARGO, 2017).

A política identitária de gays e lésbicas, alicerçada na normatização e igualação aos valores heterossexuais, reverberava em um disciplinamento dos que não possuíam sexualidades hegemônicas. Uma vez que o intento dessa política era a extensão de direitos de igualdade e reconhecimento aos homossexuais, essa mesma política relegava a crítica às instituições, normas e leis perpetuadoras da homofobia. A política identitária retroalimentava as desigualdades que gays e lésbicas padeciam. Por conseguinte, esse paradigma político, para além de não complexificar a heterossexualidade, conferia a ela um locus cômodo e conveniente em que era a genuína e fidedigna sexualidade assente pela natureza e por Deus.

À vista disso novas críticas emergiam. Se na década de 1970 “sair do armário” era imprescindível para a coletividade de gays e lésbicas, a datar da década de 1990 tal política desnudou seus equívocos. “Sair do armário” evidenciou-se não uma proclamação individual, mas um privilégio daqueles que possuíam capital material e simbólico para tanto, diferentemente dos que viviam em conjunturas mais austeras e violentas (MISKOLCI, 2011).

Em concordância com a teórica queer Eve Kosofsky Sedgwick (2007), o “armário”, por ser onipresente, onisciente e onipotente na vida de gays e lésbicas, é um dispositivo

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heteronormativo de regulamentação e controle da vida desses sujeitos, uma vez que orquestra, normativamente e violentamente, as fronteiras da sexualidade. É no ínterim do armário que há o robustecimento da heteronormatividade, visto que gays e lésbicas normatizados tornam a corporificar e performatizar o arquétipo heterossexual, o que reverbera na hostilização de travestis, transexuais, gays efeminados e lésbicas masculinizadas até mesmo pelos próprios homossexuais. Outrossim, a retórica de “sair do armário” possui armadilhas no que concerne às aspirações libertárias das políticas identitárias, uma vez que asseverar-se fora do armário pode ser libertador, mas demanda o reconhecimento da centralidade da heterossexualidade como orientação sexual legítima. À vista disso, perpetua-se a marginalidade dos que ainda estão no armário, a violência contrária aos sujeitos não normatizados, assim como a hegemonia da heteronormatividade (JUNQUEIRA, 2012; MISKOLCI; PELÚCIO, 2012; SPARGO, 2017).

Para além desses empecilhos, a política identitária desnudou-se um instrumento de ascensão de novos artifícios de controle social, quer pelo Estado, quer pelo mercado. Assim, como corolário das representações socioculturais ideais de gays e lésbicas, empreendeu-se uma distintiva segmentação mercadológica em que “ser gay é consumir” (MISKOLCI, 2011).

Por conseguinte, valeria a pena tornar-se partícipe e imiscuir-se aos campos e artifícios empreendedores e legitimadores de hostilização e violência? É sob esse prisma que o queer floresce em toda a sua robustez.

Queer, para o vernáculo inglês, é um xingamento, um insulto, como excêntrico e bizarro. A expressão foi apoderada e instrumentalizada pelo movimento queer norte-americano enquanto resistência à “abjeção”. Assim, movimento queer não é sinônimo de movimento homossexual, uma vez que ser queer é ser contrário à normatização, até mesmo à normatização empreendida pelo movimento gay e lésbico. Queer é a diferença que não almeja ser assimilada, visto que é transgressora (LOURO, 2018).

Por seu turno, “abjeto” é o não humano, o não sujeito que estorva a identidade homogênea e a suposta estabilidade da ordem social, o que reverbera em sua ojeriza, marginalidade e hostilização político-jurídica e sociocultural. Uma vez que são ininteligíveis e detentores de vidas precárias, os abjetos são seres hostilizados da ordem social, mas cuja hostilidade é imprescindível para que o domínio do sujeito legítimo seja delineado.

Esta matriz excludente pela qual os sujeitos são formados exige, pois, a produção simultânea de um domínio de seres abjetos, aqueles que ainda não são “sujeitos”, mas que formam o exterior constitutivo relativamente ao domínio do sujeito. O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas “inóspitas” e “inabitáveis” da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o

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signo do “inabitável” é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito. (BUTLER, 2018, p. 197).

Enquanto política, o queer é contrário às reivindicações identitárias e assimilacionistas de gays e lésbicas, uma vez que essas políticas, ao litigarem por uma identidade homossexual, reverberam em normatizações e essencialismos. Visto que para o queer nenhuma identidade é fixa, a política queer repreende os estratagemas dos movimentos identitários que corroboram com as relações de poder empreendedoras de regulamentação e controle social. A política queer aspira desmantelar as identidades fixas de gays e lésbicas, uma vez que é uma política pós-identitária que almeja lograr liberdade e reconhecimento sem assimilação. Assim, como corolário de sua potencialidade crítica e radical, a política queer interpela e renuncia todos os discursos normativos e identitários que conferem arquétipos ideais de se viver.

Um dos pilares deste campo de estudos/ativismo é a desnaturalização das identidades sexual e de gênero e tem como pressuposto para entender os arranjos identitários a noção de diferença. Os movimentos sociais (mulheres, gays, lésbicas e, podemos incluir, os negros) hegemonicamente alimentam a máquina do biopoder do Estado ao demandar políticas específicas para corpos específicos, retroalimentando a noção de identidades essenciais. E a legitimidade da demanda só existe se são corpos essencializados que a proferem. [...] Contraditoriamente, os movimentos sociais que demandam mais políticas públicas referendadas nas supostas diferenças naturais estão reforçando o poder do Estado no controle e seleção das vidas. (BENTO, 2016a, p. 24).

À proporção que o movimento homossexual aspira imiscuir gays e lésbicas aos valores hegemônicos da ordem social, o movimento queer aspira defrontar e desmantelar esses mesmos valores. À medida que o movimento homossexual se alicerça na diversidade, compreendendo as relações de poder de maneira horizontal e esquivando-se do conflito, o movimento queer alicerça-se na diferença e aspira enfrentar essas mesmas relações de poder, compreendendo que o conflito é substancial em uma democracia. O movimento homossexual reivindica a diversidade e a tolerância; todavia, tolerar é díspar de reconhecer e respeitar o outro em sua totalidade, valorizando-o em sua singularidade. À vista disso, o movimento queer é contrário à retórica da diversidade, da tolerância e do multiculturalismo, uma vez que instrumentaliza a retórica da diferença para transmutar a ordem sexual hegemônica (MISKOLCI, 2017).

Remédios afirmativos para a homofobia e o heterossexismo são presentemente associados com a política de identidade gay, que visa a revalorizar a identidade gay e lésbica. Remédios transformativos, em contraste, são associados à política queer, que se propõe a desconstruir a dicotomia homo-hétero. A política de identidade gay trata a homossexualidade como uma positividade cultural, com seu próprio conteúdo substantivo, muito semelhante à etnicidade (ou à visão de senso comum desta). [...] A política queer, em contraste, trata a homossexualidade como um

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correlato construído e desvalorizado da heterossexualidade; ambas são reificações da ambigüidade sexual e são co-definidas somente uma em relação à outra. O objetivo transformativo não é consolidar uma identidade gay, mas desconstruir a dicotomia homo-hétero de modo a desestabilizar todas as identidades sexuais fixas. A questão não é dissolver toda a diferença sexual numa identidade humana única e universal; mas sim manter um campo sexual de diferenças múltiplas, não-binárias, fluidas, sempre em movimento. [...] Enquanto a política de identidade gay tende a realçar a diferenciação de grupo sexual existente, a política queer tende a desestabilizá-la – no mínimo, ostensivamente e no longo prazo. (FRASER, 2006, p. 237).

Enquanto teoria, o queer alicerça-se nos estudos críticos norte-americanos da década de 1990 que estão em contrariedade aos estudos de gênero e sexualidade que asseveram a homossexualidade como uma minoria sexual. Assim, teóricos queer interpelam o dogma de que a maioria dos sujeitos são heterossexuais, uma vez que, para a teoria queer, tanto a heterossexualidade quanto a homossexualidade são empreendimentos arquitetados por intermédio de relações de poder (MISKOLCI, 2017).

Os estudos chancelados sob a rubrica do queer, ainda que não corporifiquem ortodoxamente uma teoria uma vez que não possuem um corpus sistematizado de investigação, alicerçam-se em alguns juízos, tais como: 1) crítica à heteronormatividade; 2) crítica às identidades fixas; 3) crítica aos binarismos sexuais (heterossexual versus homossexual) e de gênero (masculino versus feminino); 4) crítica às normas e saberes que naturalizam e normatizam sexo, gênero e sexualidade; 5) crítica à condenação, criminalização e patologização das orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas; 6) notoriedade às múltiplas orientações sexuais e identidades de gênero; 7) notoriedade aos discursos de saber e poder; 8) notoriedade à diferença enquanto princípio estruturante das subjetividades e vínculos sociais.

Concernente à heteronormatividade, Miskolci (2017) assevera a elementaridade de três categorias, vale dizer, “heterossexismo”, “heterossexualidade compulsória” e “heteronormatividade”.

Heterossexismo é a pressuposição de que todos são, ou deveriam ser, heterossexuais. [...] A heterossexualidade compulsória é a imposição como modelo dessas relações amorosas ou sexuais entre pessoas do sexo oposto. [...] A heteronormatividade é a ordem sexual do presente, fundada no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo. Ela se impõe por meio de violências simbólicas e físicas dirigidas principalmente a quem rompe normas de gênero. Em outras palavras, heterossexismo, heterossexualidade compulsória e heteronormatividade são três coisas diferentes, conceitos importantes que nos auxiliam a compreender a hegemonia cultural hétero em diferentes dimensões. (MISKOLCI, 2017, p. 47-48).

A heteronormatividade é a estrutura empreendedora e perpetuadora da ordem sexual hegemônica onde todos os sujeitos são arquitetados para serem heterossexuais, ou, ainda que

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sejam gays ou lésbicas, possuam o arquétipo da heterossexualidade em suas vidas. Os dispositivos heteronormativos – discursos, saberes e poderes –, para além de estruturarem as instituições, estruturam as subjetividades e os vínculos sociais. Assim, gays e lésbicas normatizados também podem retroalimentar a heteronormatividade e a subsequente homotransfobia. Ora, a violência homotransfóbica – que é dissertada em seções distintivas neste trabalho – não alveja igualmente todos os gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, uma vez que essa violência possui singularidades e hierarquias, hostilizando de maneira mais profícua aqueles que não se imiscuem ao ideal heteronormativo.

É sob esse prisma que a heteronormatividade empreende violências várias, tais como a violência interpessoal, a violência institucional e a violência simbólica. A violência interpessoal é arquitetada por intermédio de uma homotransfobia individual em que se aspira aniquilar a diferença de orientação sexual e identidade de gênero mediante atos de violência. A violência institucional é arquitetada por intermédio de uma homotransfobia de Estado em que se aspira criminalizar a diferença, quer mediante a elaboração, interpretação e justaposição de normativas e legislações, quer mediante práxis violentas das instituições do sistema de justiça criminal. A violência simbólica é arquitetada por intermédio de uma homotransfobia cultural em que se aspira corporificar discursos hostilizadores da diferença mediante uma gramática heteronormativa (CARVALHO, 2017b).

Outrossim, a teoria queer interpela os binarismos sexuais – heterossexual versus homossexual – e de gênero – masculino versus feminino – como estruturas estanques e reducionistas das orientações sexuais e identidades de gênero. A teoria queer compreende que os sujeitos estão para além dos binarismos “hétero-homo” ou “homem-mulher”, uma vez que a subjetividade humana não é fixa e coerente, mas multiforme e enigmática, podendo transitar entre tais binarismos e para além dos mesmos. Visto que o queer aspira contemplar viabilidades múltiplas de vivências e experiências no que concerne às orientações sexuais e identidades de gênero, desmantelam-se todas as identidades, binarismos e hierarquias empreendedoras de normatização e violência. Em contrariedade à fixidez, a fluidez torna-se uma idiossincrasia fulcral para o queer. Assim, “reconhecer o caráter incerto e mutável das identidades significa minar o sistema normativo binário baseado no dimorfismo sexual.” (TEIXEIRA, 2012, p. 507). Por seu turno, os estudos queer floresceram no Brasil a datar do final da década de 1990 e 2000. Diferentemente do que ocorreu ante a conjuntura norte-americana, onde o queer emergiu por intermédio do ativismo para posteriormente imiscuir-se à academia, no Brasil o queer emergiu por intermédio das universidades. Aqui o queer é antes um discurso acadêmico do que político. À vista disso, uma vez que os estudos queer foram transportados ao Brasil no

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exato período do robustecimento das políticas identitárias do movimento LGBT brasileiro, empreendeu-se um aparente antagonismo entre ativistas identitários e acadêmicos pós-identitários (COLLING, 2018; PELÚCIO, 2016).

Por conseguinte, a teoria queer instrumentaliza as teorias e as abordagens pós-estruturalistas, dentre elas a teoria do discurso, saber e poder de Michel Foucault. O “pós-estruturalismo” é uma abordagem teórico-filosófica profusa, devendo ser compreendido por intermédio do denominador comum da sua pluralidade de autores. Florescendo mediante a filosofia francesa de Michel Foucault, Jacques Derrida, Jacques Lacan, dentre outros, o pós-estruturalismo é contrário ao pós-estruturalismo de Claude Lévi-Strauss que aspirava, ao evidenciar a estrutura subjacente à realidade social, lograr uma cientificidade estrita e um conhecimento formal e universal mediante a refutação do historicismo e do subjetivismo. Por conseguinte, o pós-estruturalismo torna a ressurgir o historicismo e, precipuamente, a notoriedade conferida ao sujeito. Ao alicerçar-se no perspectivismo de Nietzsche – que assevera que não há fatos em si, mas compreensões predecessoras conferidas aos fatos para que esses possam subsistir –, o pós-estruturalismo evidencia a hermenêutica e a conjuntura do sujeito interpretador, o que reverbera na assertiva de que o conhecimento é historicamente contingencial e contrário ao cariz realista do estruturalismo. Para o pós-estruturalismo e seu antirrealismo, o real não é real por natureza e por imediato, mas o real é vário e plural e, nunca, universal. Isso posto, o pós-estruturalismo confere notoriedade às elementares simbólico-discursivas para além das elementares materiais, assim como compreende que o saber não pode estar desatrelado das redes de poder que arquitetam o mundo (PAULA JÚNIOR, 2017; SELL, 2017).

Por seu turno, a tese de Foucault (2017) está alicerçada na asserção de que o sexo e a sexualidade são dimensões arquitetadas por intermédio de discursos. Para o autor, a datar do século XIX não houve uma proibição de discursar acerca do sexo e da sexualidade, mas uma notória multiplicidade de discursos que exortaram o empreendimento de um saber acerca dos mesmos. Precipuamente a religião, o direito e a psiquiatria expandiram, reciprocamente, a condenação, a criminalização e a patologização das sexualidades não hegemônicas. Assim, por intermédio desses discursos que empreenderam saberes e, por conseguinte, poderes, aspirou-se compreender, identificar, categorizar, hierarquizar, disciplinar e hostilizar os homossexuais. Isso posto, para Foucault, o homossexual e a homossexualidade são invenções do século XIX, ainda que esses sujeitos e essas práxis existam há milênios.

Por essa razão, o sexo e a sexualidade não são os efeitos das proibições repressivas que obstaculizariam o pleno desenvolvimento de nossos desejos mais íntimos, e sim o resultado de um conjunto de tecnologias produtivas (e

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não simplesmente repressivas). A forma mais potente de controle da sexualidade não é, logo, a proibição de determinadas práticas, mas a produção de diferentes desejos e prazeres que parecem derivar de predisposições naturais (homem/mulher, heterossexual/homossexual etc.), e que serão finalmente reificadas e objetivadas como “identidades sexuais”. As técnicas disciplinadoras da sexualidade não são um mecanismo repressivo, e sim estruturas reprodutoras, assim como técnicas de desejo e de saber que geram as diferentes posições de sujeito de saber-prazer. (PRECIADO, 2017, p. 156). Foucault (2017) assevera que os discursos acerca do sexo e da sexualidade se imiscuem aos corpos, reverberando na tese elementar da teoria queer de que o sexo e a sexualidade não são dimensões naturais ou biológicas da vida humana, mas dimensões que são arquitetadas por intermédio de relações de poder e que possuem gêneses históricas. Assim, não se aspira negar a materialidade ou as elementares naturais e biológicas do corpo, mas conferir notoriedade aos discursos e às instituições que corporificam o sexo e a sexualidade.

Sob esse prisma, as políticas identitárias de gays e lésbicas que evidenciam e glorificam a dimensão da sexualidade são equivocadas, uma vez que a sexualidade não alude a nenhum estado de liberdade. A sexualidade é, verdadeiramente, um dispositivo histórico de poder que atua inserindo em cada sujeito uma identidade controlada pelo Estado e manejada pelo mercado. Assim, a desconstrução do sujeito e da sua identidade não reverbera em sua destruição, mas em sua libertação e emancipação dos discursos normatizadores que empreendem e perpetuam a sua subalternidade (MARIANO, 2005; MISKOLCI, 2011).

Outrossim, a tese de Foucault (2017) assevera a subsistência de um “discurso reverso”, uma vez que foi a datar desse discurso que se empreendeu as políticas identitárias. Os sujeitos que foram historicamente reputados como homossexuais e, por conseguinte, anormais, transmutaram essa anormalidade em discurso afirmativo identitário. Essa é a razão do porquê “gay” tornou-se uma predileção ao “homossexual” para o movimento gay e lésbico norte-americano da década de 1960, visto que a anormalidade historicamente conferida aos sujeitos homossexuais por intermédio de discursos, saberes e poderes foi evidenciada, por esses mesmos sujeitos, como locus de orgulho e resistência gay (SPARGO, 2017).

Ora, para Foucault (2014), o “poder” não está sumarizado no ideal de poder negativo, repressor, atrelado a alguém ou a instituições. Para o autor, o poder possui cariz positivo, vale dizer, o poder é empreendedor de saber, assim como está no todo de uma ordem social. O poder é histórico, dinâmico, contingencial, relacional e arquitetado em redes, retroalimentado, como corolário de seu cariz positivo, resistências.

Ora, o aparecimento, no século XIX, na psiquiatria, na jurisprudência e na própria literatura, de toda uma série de discursos sobre as espécies de subespécies de homossexualidade, inversão, pederastia e “hermafroditismo

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psíquico” permitiu, certamente, um avanço bem marcado dos controles sociais nessa região de “perversidade”; mas também possibilitou a constituição de um discurso “de reação”: a homossexualidade pôs-se a falar por si mesma, a reivindicar sua legitimidade ou sua “naturalidade”, e muitas vezes dentro do vocabulário e com as categorias pelas quais era desqualificada do ponto de vista médico. (FOUCAULT, 2017, p. 111).

Por seu turno, Judith Butler, a queen queer, é quem arquiteta uma teoria queer para o sexo, o gênero e a sexualidade. Na década de 1960 “gênero” era compreendido como uma dimensão social e cultural que se conferia ao “sexo”, sendo esse uma dimensão natural e biológica que, por seu turno, fundamentaria o gênero. Todavia, Butler (2016b) assevera que o binarismo sexo/natureza versus gênero/cultura é descabido, uma vez que não há sexo predecessor ao gênero. Assim, não há disparidade entre sexo, gênero e sexualidade.

Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio construto chamado “sexo” seja tão culturalmente construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nula. Se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não faz sentido definir o gênero como a interpretação cultural do sexo. O gênero não deve ser meramente concebido com a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. (BUTLER, 2016b, p. 27). Para Butler (2016b), visto que o corpo, outrora compreendido como natureza biológica fixa, é uma dimensão que se torna sexuada e generificada por intermédio de práxis discursivas, o gênero e a sexualidade, outrossim, não são mais compreendidos como extensões e prolongamentos da materialidade de um sexo natural/biológico. Fundamentando-se em Foucault, para Butler sexo, gênero e sexualidade são vetores de poder arquitetados mediante relações de poder, discursos normatizadores e artifícios simbólicos alicerçados em torno da heteronormatividade enquanto norma hegemônica (MARIANO, 2005).

O corpo só ganha significado no discurso no contexto das relações de poder. A sexualidade é uma organização historicamente específica do poder, do discurso, dos corpos e da afetividade. Como tal, Foucault compreende que a sexualidade produz o “sexo” como um conceito artificial que efetivamente amplia e mascara as relações de poder responsáveis por sua gênese. (BUTLER, 2016b, p. 162).

Assim que, ao nascer um sujeito, o médico atesta “é um menino” ou “é uma menina”, empreende-se um ato fundacional. Esse ato não é tão somente descritivo, mas prescritivo, vale dizer, esse ato origina corpos, sexos, gêneros e sexualidades hegemônicas heteronormativas. Todavia, esse ato fundacional não está para todo o sempre consagrado, uma vez que essa nomeação demanda ser citada, recitada e reiterada incomensuráveis vezes e em conjunturas várias, ainda que inconscientemente, para que a materialização, corporificação e cristalização

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dessas normas se arrematem. A esse procedimento de citação ininterrupta de discursos normatizadores nomencla-se “performatividade” (BENTO, 2017; LOURO, 2018). “[...] é a própria nomeação de um corpo, sua designação como macho ou como fêmea, como masculino ou feminino, que ‘faz’ esse corpo. O gênero é efeito de discursos. O gênero é performativo.” (LOURO, 2016, p. 13).

[...] as normas regulatórias do “sexo” trabalham de uma forma performativa para constituir a materialidade dos corpos e, mais especificamente, para materializar o sexo do corpo, para materializar a diferença sexual a serviço da consolidação do imperativo heterossexual. Nesse sentido, o que constitui a fixidez do corpo, seus contornos, seus movimentos, será plenamente material, mas a materialidade será repensada como o efeito do poder, como o efeito mais produtivo do poder. Não se pode, de forma alguma, conceber o gênero como um construto cultural que é simplesmente imposto sobre a superfície da matéria – quer se entenda essa como o “corpo”, quer como um suposto sexo. Em vez disso, uma vez que o próprio “sexo” seja compreendido em sua normatividade, a materialidade do corpo não pode ser pensada separadamente da materialização daquela norma regulatória. O “sexo” é, pois, não simplesmente aquilo que alguém tem ou uma descrição estática daquilo que alguém é: ele é uma das normas pelas quais o “alguém” simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural. (BUTLER, 2018, p. 195-196).

Todavia, uma vez que o domínio do sexo, do gênero e da sexualidade são contingenciais e dotados de ambivalência e volatilidade, citações e reiterações descontextualizadas da conjuntura hegemônica heteronormativa são viáveis. Essa fenda no procedimento hegemônico de empreendimento de sujeitos viabiliza agências, transgressões, subversões e ressignificações das normas hegemônicas de sexo, gênero e sexualidade. Assim, o procedimento “malsucedido” empreendido por sujeitos que transgridem a lógica (hétero)normativa sexo-gênero-sexualidade, concomitantemente engendra performatividades queer, confere a esses mesmos sujeitos o cariz de seres abjetos.

Ainda acompanhando Butler, nas reflexões sobre sexo, gênero e sexualidade, os sujeitos abjetos, ou seja, aqueles que não se enquadram nas categorias conhecidas, não seguem aquilo que a autora chama de “gêneros inteligíveis”, que “são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo”. Assim, os ‘gêneros inteligíveis’, que funcionam predominantemente ainda hoje, se organizam segundo a lógica do ‘tem pênis, logo é homem, masculino e deve sentir atração afetivo-sexual por mulheres (é heterossexual)’, e ‘tem vagina, logo é mulher, feminina e deve sentir atração afetivo-sexual por homens’. Nesse campo, tanto pessoas homossexuais, bissexuais, quanto intersexuais, travestis, transexuais e todas aquelas que quebram essa pressuposta continuidade podem ser consideradas abjetas. Creio que considerar essas pessoas como abjetas só seja possível quando o termo “abjeto”, como já dito anteriormente, é usado como sinônimo de desprezível, repulsivo, vil, horrível, incompreensível. (LEITE JÚNIOR, 2012, p. 561).

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A multiplicidade de orientações sexuais e identidades de gênero desmantelam o dogma sexual. Não há identidades fixas ou binarismos sexuais e de gênero, mas uma variabilidade de subjetividades, o que reverbera na imprescindibilidade da não categorização e compartimentação de sujeitos. Não há uma natureza homem, mulher, heterossexual, homossexual, cisgênero ou transgênero, mas sujeitos sociais contextuados e contingenciais. “Essa plasticidade, a possibilidade de fazer gênero, de mudar a performance de acordo com os espaços sociais seria a própria ‘essência’ do gênero.” (BENTO, 2011, p. 97, grifo do autor).

Sob esse prisma, a teoria de Butler é, como a teoria queer, uma teoria pós-identitária.

Assim como a análise de Foucault sobre a implicação recíproca entre saber e poder na produção das posições do sujeito, a performatividade de gênero literalmente destrói a base dos movimentos políticos cujo objetivo é a libertação de naturezas reprimidas ou oprimidas, tanto de gênero quanto sexual, porém revela possibilidades de resistência e subversão encobertas pela política identitária. (SPARGO, 2017, p. 43-44).

Para além de teorizar acerca do sexo, gênero e sexualidade, Butler tem teorizado acerca dos sujeitos detentores de vidas precárias. Para Butler (2017), a inteligibilidade de uma vida é arquitetada por intermédio de “enquadramentos”, vale dizer, relações de poder, discursos normatizadores, artifícios simbólicos, assim como arranjos políticos. Os enquadramentos são, metaforicamente, quadros e molduras que atuam enquadrando e emoldurando a vida. Assim, os enquadramentos explanam, identificam, categorizam, hierarquizam e hostilizam, de maneira diferencial, as vidas inteligíveis e vivíveis, e as vidas que não são reconhecidas como vidas.

Por conseguinte, para a autora, todas as vidas são vulneráveis, uma vez que toda e qualquer vida pode ser aniquilada, acidentalmente ou propositadamente. Todavia, nem todas as vidas são precárias. A precariedade é a condição negativa para além da vulnerabilidade que, empreendida por intermédio dos enquadramentos, torna as vidas precárias passíveis de violência e morte de maneira desigual. Assim, se todos os sujeitos, por possuírem uma vulnerabilidade fundamental, são passíveis de violência, e se o que torna uma vida mais vulnerável do que outra é a disposição desigual da precariedade, as vidas precárias são aquelas que padecem uma violência exponencial, uma aniquilação da vida que não é passível de luto (BUTLER, 2017).

“Precariedade” designa essa condição politicamente induzida em que certas populações sofrem por conta de redes insuficientes de apoio social e econômico mais do que outras, e se tornam diferencialmente expostas à injúria, violência e morte. Como mencionei anteriormente, a precariedade é assim a distribuição diferencial da condição de precariedade. Populações que são diferencialmente expostas têm riscos mais elevados de doença, pobreza, fome, despejo e vulnerabilidade a violências sem proteção ou reparação

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adequadas. A precariedade também caracteriza a condição politicamente induzida de vulnerabilidade e exposição maximizadas para as populações que estão expostas à violência estatal arbitrária, à violência de rua ou doméstica, e a outras formas [de violência] não reconhecidas pelo Estado para as quais os instrumentos jurídicos do Estado falham em prover proteção e reparação suficiente. (BUTLER, 2016a, p. 33).

Gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, dentre outros sujeitos detentores de vidas precárias, padecem vulnerabilidades maiores à violência e à morte, uma vez que possuem maior precariedade em suas vidas como corolário de suas orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas – o que não prognostica que são sujeitos impassíveis de aptidão de agência e resistência (BUTLER, 2016a; DEMETRI, 2018).

Assim, Butler (2017, 2019) assevera que as políticas de esquerda devem defrontar e enfrentar a violência de Estado, precipuamente sob a hodierna conjuntura neoliberal que desmantela as estruturas político-sociais e, subsequentemente, reverbera em hostilizações e violências. A nova aliança arquitetada pela política democrática radical, que não possui, imprescindivelmente, concordância identitária, contrapõe-se aos enquadramentos normativos que empreendem precariedade e, por conseguinte, vidas precárias.

Isso inicia a possibilidade de desconstruir essa forma de responsabilidade individualizadora e enlouquecedora em favor de um ethos de solidariedade que afirmaria a dependência mútua, a dependência de infraestrutura e de redes sócias viáveis, abrindo caminho para uma forma de improvisação no processo de elaborar formas coletivas e institucionais de abordar a condição precária induzida. (BUTLER, 2019, p. 28).

À vista disso, pelo o que foi asseverado, ainda que não seja um corpus teórico ortodoxo, para a teoria queer alguns alicerces são substancias. A crítica e o subsequente desmantelamento da heteronormatividade, das identidades fixas, dos binarismos sexuais e de gênero, das normas e saberes que, para além de naturalizarem e normatizarem sexo, gênero e sexualidade, condenam, criminalizam e patologizam as diferenças, é elementar. Por conseguinte, os estudos queer não investigam o porquê de os sujeitos transgredirem a ordem sexual hegemônica, mas os enquadramentos e os arranjos que normatizam, hierarquizam, regulamentam, controlam, hostilizam e violentam aqueles que possuem orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas, os seres abjetos detentores de vidas precárias. Assim, ao investigar as estruturas e as instituições, a teoria queer evidencia as relações de poder, os discursos normatizadores, os artifícios simbólicos e os dispositivos históricos que materializam e corporificam o sujeito. Todavia, para além de desejar e reivindicar um ícone identitário, a teoria queer assevera, propositadamente, seu cariz sempre inconcluso.

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Nessa continuidade, na seção subsequente investiga-se como o queer tem sido imiscuído na ciência criminológica por intermédio da criminologia queer. Assim, é mediante as ponderações críticas da criminologia queer, sua compreensão acerca das vivências e experiências que gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais possuem concernente à violência e seus vínculos com as instituições do sistema de justiça criminal, que é viável compreender como esses sujeitos são contemplados pelo direito, assim como se a criminalização da violência homotransfóbica é um artifício legítimo e apto a defrontar e enfrentar essa violência em distinto.

2.2 CRIMINOLOGIA QUEER

Em concordância com Jordan Blair Woods (2014a, 2014b) e sua “teoria do homossexual desviante”, a criminologia queer pode ser compreendida por intermédio de duas elementares, vale dizer, a elementar da delinquência e a elementar da (in)visibilidade.

Por intermédio da elementar da delinquência, a orientação sexual e a identidade de gênero foram investigadas pela criminologia até a década de 1970, em que a homossexualidade – instrumentalizada tanto para orientação sexual quanto para identidade de gênero – era contemplada como desvio, precipuamente pela criminologia positivista e pela criminologia da reação social. Por conseguinte, por intermédio da elementar da (in)visibilidade, a orientação sexual e a identidade de gênero foram invisibilizadas pela criminologia após a década de 1970, precipuamente pela criminologia crítica. Assim, a criminologia tem empreendido e perpetuado um continuum de abjeção acerca dos sujeitos que não possuem orientações sexuais e identidades de gênero hegemônicas (WOODS, 2014a, 2014b).

Groombridge (1999) e Sorainen (2003) asseveram que a criminologia positivista compreendia o homossexual como pervertido sexual, criminoso; adiante, a criminologia da reação social compreendia o homossexual como desviante, outsider; ulteriormente, a criminologia crítica sequer compreendia esse sujeito. Sob esse prisma, Carvalho (2017b) assevera que o empreendimento científico da criminologia é ele mesmo homo[trans]fóbico.

Por seu turno, Cesare Lombroso – expoente da criminologia positivista de prisma ortodoxo –, em sua obra “O homem delinquente” (2016), assevera que os dementes morais, como delinquentes natos, poderiam possuir, dentre outras idiossincrasias, perversões sexuais.

Os pederastas frequentemente de elevada cultura e talento (funcionários, mestres) [...] têm uma estranha necessidade de associar-se no delito e formar verdadeira congregação, que se reconhece, num olhar, ainda que viajando em

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país estrangeiro. [...] Menos estranho é ver como esses delinquentes, se forem de classes elevadas, amam os trabalhos e as roupas femininas. Os uniformes e a postura ornada de bijuterias, com os ombros descobertos e com cabelos encaracolados, se ligam aos maus hábitos. Também gestos esquisitos pela arte fazem recolher quadros, flores, estátuas, perfumes, quase extraindo por atavismo, junto com vícios e gostos da antiga Grécia. São muitas vezes honestos ao menos, e cônscios de serem culpados até ante si mesmos, lutam longamente com infames inclinações, lamentam-nas, deploram-nas e as escondem. Os de classe inferior amam a vida de baixo nível, preferem odores fortes, adotam nomes femininos e são o instrumento dos furtos mais vulgares, mais atrozes assassinatos e chantagens. (LOMBROSO, 2016, p. 140-141). Outrossim, Lombroso (LOMBROSO; FERRERO, 2004), ao concernir acerca da mulher delinquente, compreende as mulheres lésbicas como pervertidas sexuais, de maneira que as mulheres lésbicas seriam lésbicas visto as suas patologias biológicas – o hermafroditismo que as impeliria ao comportamento masculino – e/ou patologias sociais – a prostituição que as impeliria ao comportamento viril do criminoso e da prostituta.

Há evidentemente casos de hermafroditismo feminino em que, embora os órgãos sejam essencialmente femininos, há uma tendência congênita ao masculino. Tais casos constituem o núcleo do grupo de lésbicas. No entanto, o fato de podermos coletar apenas alguns desses casos em comparação às centenas de casos masculinos mostra que, entre as mulheres, até as tendências eróticas são menos acentuadas e demonstra novamente a escassez entre as mulheres de psicopatias sexuais. Além disso, explica por que entre as mulheres há uma menor variação: seu centro cortical tem muito menos influência no erotismo, dando-lhes menos oportunidades de ficar excitadas e, portanto, pervertidas. Por outro lado, circunstâncias como a prostituição incentivam o lesbianismo entre as mulheres mais do que a pederastia entre os homens. A maioria das lésbicas não são lésbicas nascidas, mas sim lésbicas ocasionais que tomam emprestadas as características viris do criminoso e da prostituta. Isso explica por que as lésbicas ocasionais são capazes de aturar, simular e inspirar o amor dos homens, tornando-a sua profissão exclusiva. Seria impossível para a verdadeira lésbica nata fazer isso, pois ela tem nojo de homens, assim como o pederasta tem nojo de mulheres. (LOMBROSO; FERRERO, 2004, p. 179-181, tradução nossa).

Howard Becker – expoente da criminologia da reação social empreendedora da teoria do etiquetamento, labelling approach, que, ao alicerçar-se no internacionalismo simbólico enquanto teoria (micro)sociológica do século XX, empreendeu uma revolução paradigmática da ciência criminológica por desmantelar a sua ortodoxia –, em sua obra “Outsiders” (2008), assevera que os homossexuais são sujeitos desviantes.

O ingresso num grupo organizado tem várias consequências para a carreira do desviante. Antes de mais nada, os grupos desviantes tendem, mais que indivíduos desviantes, a racionalizar sua posição. Num extremo, eles desenvolvem uma justificativa histórica, legal e psicológica muito complicada para a atividade desviante. A comunidade homossexual é um bom exemplo. Revistas e livros publicados por homossexuais para homossexuais incluem

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artigos sobre homossexuais famosos na histórica. Contêm artigos sobre biologia e a fisiologia do sexo, destinados a mostrar que a homossexualidade é uma resposta sexual ‘normal’. Incluem artigos jurídicos, reivindicando liberdades civis para os homossexuais. Tomado em conjunto, esse material fornece uma filosofia operacional para o homossexual, explicando-lhe por que ele é como é, que outras pessoas também foram assim, e por que está certo ser assim. A maior parte dos grupos desviantes tem uma fundamentação autojustificadora (ou “ideologia”), embora raramente tão bem-elaborada quanto a dos homossexuais. (BECKER, 2008, p. 48).

Por conseguinte, a criminologia crítica de matriz romano-germânica, arquitetada por criminólogos como Alessandro Baratta (2011), por exemplo, instrumentalizava tão somente o marcador social da diferença de classe por intermédio de um prisma marxista detentor de uma metodologia materialista. O prisma marxista e a metodologia materialista compreendiam, precipuamente, as instituições do sistema de justiça criminal como instituições que retroalimentavam as desigualdades socioeconômicas, empreendendo, portanto, violência e seletividade institucionais. Assim, não obstante sua notoriedade, a criminologia crítica negligenciava múltiplos marcadores sociais da diferença para além da classe, como raça, etnia, nacionalidade e, outrossim, gênero e sexualidade. À vista disso, ao fim do século XX e início do século XXI emergem novas problemáticas, novas temáticas e novas criminologias, como a criminologia queer.

Nessa continuidade, uma das viáveis razões pela qual o homossexual e a homossexualidade não foram mais contemplados pela criminologia a datar da década de 1970 é porquanto a homossexualidade, no ano de 1973, deixou ser compreendida como transtorno mental pelo DSM – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – da Associação Americana de Psiquiatria2.

Por seu turno, a criminologia queer emerge a datar dos anos 2000 e assevera-se de maneira mais categórica a datar dos anos 2010, precipuamente no ano de 2014 por intermédio de duas obras, vale dizer, o volume especial 22 da revista internacional Critical Criminology, editado por Matthew Ball, Carrie L. Buist e Jordan Blair Woods (2014), e o Handbook of LGBT communities, crime, and justice, editado por Dana Peterson e Vanessa R. Panfil (2014).

A criminologia queer pode ser reputada como uma abordagem criminológica que aspira evidenciar as vivências e experiências que gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais possuem concernente à violência latu sensu e seus vínculos com as instituições do sistema de justiça criminal. Assim, almeja-se transportar os holofotes e conferir luz aos que outrora foram compreendidos como desviantes e, ulteriormente, foram invisibilizados pela criminologia.

Referências

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