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Críticas acerca da criminalização da homotransfobia no Brasil pelo poder judiciário

4 VIOLÊNCIA HOMOTRANSFÓBICA, DIREITO, DISCURSO JUDICIAL E

4.5 Críticas acerca da criminalização da homotransfobia no Brasil pelo poder judiciário

A maneira como ocorreu a criminalização da violência homotransfóbica no Brasil, por intermédio do Supremo Tribunal Federal, é passível de críticas. Ainda que a criminalização da homotransfobia mediante o poder judiciário tenha a aptidão de empreender efeitos “extraprocessuais”, como a expansão da consciência social concernente à temática, instrumentalizar a jurisdição constitucional como artifício de tutela penal simboliza um estorvo para a máxima da separação dos poderes e para o princípio da reserva absoluta de lei formal em matéria de cariz penal, em que a edição de legislação penal é competência legislativa intransponível. Assim, concomitantemente o STF contemplou novas hipóteses de punição criminal, conferiu-se infortúnios à Constituição e ao Estado democrático de direito (CARDINALI, 2017; FERNANDES, 2019).

É notório que no Brasil contemporâneo o poder judiciário possui evidência visto a judicialização das relações sociais e da política. À proporção que há uma atenuação da ação política e uma crise de legitimidade das instituições políticas estatais, há uma expansão da ação judiciária e uma paulatina ingerência do ativismo judicial na vida brasileira latu sensu. O poder judiciário tornou-se um locus singularizado de luta política. Assim, o poder judiciário nacional, corporificado pelo Supremo Tribunal Federal, desnuda-se “o ente estatal capaz de atender às promessas descumpridas tanto pelos demais agentes estatais quanto por particulares, ou seja, como o ator político destinado a exercer a função de ‘guardião da democracia e dos direitos’.” (CASARA, 2018, p. 125-126).

Todavia, no que concerne à criminalização da violência homotransfóbica no Brasil, o ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal é aterrador. Diferentemente dos dois julgamentos predecessores em que a Corte julgou temáticas concernentes à gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais que versavam acerca de direitos civis – a ADI 4.277 e a ADPF 132 concerniam à legitimidade da união estável entre pessoas do mesmo gênero, assim como a ADI 4.275 concernia à legitimidade da retificação do prenome e do sexo/gênero de travestis e transexuais sem a substancialidade de cirurgia e laudo médico e psicológico de comprobação da transexualidade –, o MI 4.733 e a ADO 26, que concernem à legitimidade da criminalização da homotransfobia no Brasil, versam acerca de uma temática de cariz penal.

O universo penal é orquestrado por princípios distintivos e categóricos, como o princípio da legalidade. A legalidade está cristalizada no inciso XXXIX do art. 5º da Constituição da República, que assevera que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Assim, o princípio da legalidade reputa-se como uma máxima não somente penal, mas constitucional e democrática, que assegura que somente leis formais, oriundas do poder legislativo, podem criminalizar atos, e não decisões judiciais.

É sob esse prisma que o ministro Ricardo Lewandowski assevera que:

Não obstante a repugnância que provocam as condutas preconceituosas de qualquer tipo, é certo que apenas o Poder Legislativo pode criminalizar condutas, sendo imprescindível lei em sentido formal nessa linha. Efetivamente, o princípio da reserva legal, insculpido no art. 5º, XXXIX, da Constituição, prevê que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. A Carta Magna é clara: apenas a lei, em sentido formal, pode criminalizar uma conduta. [...] A extensão do tipo penal para abarcar situações não especificamente tipificadas pela norma penal incriminadora parece-me atentar contra o princípio da reserva legal, que constitui uma fundamental garantia dos cidadãos, que promove a segurança jurídica de todos. (BRASIL, 2019f, p. 17-19).

Outrossim, o ministro Marco Aurélio assegura que:

O ditame constitucional é claro: não há crime sem anterior lei que o defina, nem pena sem prévia cominação legal – inciso XXXIX do artigo 5º –, princípio a partir do qual construído todo o arcabouço constitucional em matéria penal, do qual derivam garantias seculares como a “proibição à analogia; a utilização do direito consuetudinário para fundamentar ou agravar a pena; a vedação à retroatividade; e a vedação de leis penais e penas de conteúdo indeterminado”. (BRASIL, 2019e, p. 11).

O princípio da legalidade, asseverado pela própria Constituição da República, não viabiliza ao poder judiciário ou ao poder executivo arquitetar tipos penais. O ofício legiferante acerca do direito penal é domínio privativo do poder legislativo. Ora, o art. 62, inciso I, da Constituição interdita até mesmo a viabilidade do Presidente da República editar medidas provisórias acerca de matérias de cariz penal. Assim, usurpar do poder legislativo a autoridade privativa de versar acerca de matérias de cariz penal desmantela a máxima da separação dos poderes, asseverados no art. 2º da Constituição que assevera que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

Do ponto de vista formal, a legalidade significa que a única fonte produtora de lei penal no sistema brasileiro são os órgãos constitucionalmente habilitados e a única lei penal é a formalmente deles emanada. A CR não admite que a doutrina, a jurisprudência ou o costume sejam capazes de habilitar o poder punitivo. [...] Perante a Constituição da República, qualquer pretensa lei penal material emanada da administração é obviamente inconstitucional. A matéria penal fica excluída das medidas provisórias (arts.

62 e 84, inc. XXVI CR). Por conseguinte, do tipo normativo de leis penais constitucionais devem ser excluídas todas aquelas não-emanadas dos órgãos legislativos do Estado dentro de suas respectivas atribuições. Em nenhum caso o Poder Executivo, o Judiciário e a Administração em geral podem criar leis penais. Somente o Congresso Nacional está habilitado para a programação criminalizante primária [...] (ZAFFARONI et al., 2011, p. 203-204, grifo do autor).

Outrossim, por intermédio do princípio penal da taxatividade, interpretações extensivas e expansivas que tornem a recrudescer o direito penal e a punição são inábeis de serem empreendidas. As legislações penais e as interpretações acerca de seus dispositivos prognosticam uma interpretação taxativa. Assim, decisões judiciais não podem expandir, de maneira a empreender, tipos penais mediante uma suposta “hermenêutica evolutiva”. A hermenêutica acerca de matérias de cariz penal é sempre literal, formal e estrita, não viabilizando extensões e expansões que recrudesçam a punição.

O princípio da máxima taxatividade se manifesta no âmbito interpretativo por meio de uma proibição absoluta da analogia in malam partem. Enquanto o direito civil provê segurança jurídica tratando de resolver o maior número possível de conflitos, razão pela qual “quando a lei for omissa o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito” (art. 4º da lei de introdução ao Código Civil), a segurança jurídica que toca ao direito penal consiste exatamente em recusar tratamento aos conflitos que não se inscrevem taxativamente na criminalização primária. Enquanto o direito civil cumpre melhor sua função de segurança jurídica quando coloca o poder público a serviço da solução do maior número possível de conflitos, tendendo portanto a corresponder a um sistema contínuo – sem lacunas –, o direito penal se estrutura como um sistema descontínuo de ilicitudes pontuais que não podem ser ampliadas pela interpretação, doutrinária ou jurisprudencial. [...] Isso obedece ao fato de que é necessário extremar os recursos para que só a lei formal seja fonte de criminalização primária, não podendo o juiz complementar seus pressupostos. (ZAFFARONI et al., 2011, p. 208-209, grifo do autor).

À vista disso, a decisão do Supremo Tribunal Federal que criminalizou a violência homotransfóbica sob o alicerce da extensão das categorias de raça e racismo à orientação sexual e identidade de gênero, de maneira que homotransfobia se tornou racismo, é descabida não somente porque raça é uma categoria que concerne a dimensões biológicas, fenotípicas e genotípicas de um grupo em distinto, mas porque não é viável ao poder judiciário expandir os núcleos penais da Lei 7.716/1989 – raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional – à orientação sexual e identidade de gênero. Como corolário do princípio da taxatividade, os núcleos penais da Lei 7.716/1989 não são exemplificativos, mas taxativos.

Sob esse prisma, o ministro Marco Aurélio assevera que:

A estrita legalidade, no que direciona à ortodoxia na interpretação da Constituição Federal em matéria penal, não viabiliza ao Tribunal, em

desconformidade com expressa e clara restrição contida na Lei Maior, esvaziar o sentido literal do texto, mediante a complementação de tipos penais. Ao versar a discriminação ou o preconceito considerada “a raça, a cor, a etnia, a religião ou a procedência nacional”, a Lei nº 7.716/1989 não contempla a decorrente da orientação sexual do cidadão ou da cidadã. [...]Descabe, para o fim de tipificar determinada conduta, o enquadramento da homofobia e da transfobia “no conceito ontológico-constitucional de racismo”. O reconhecimento da taxatividade dos preceitos – os quais não podem ser tomados como meramente exemplificativos e desprovidos de significado preciso – rechaça a ampliação do conteúdo proibitivo dos tipos versados na Lei nº 7.716/1989 a partir de eventual identidade considerados os pressupostos justificadores da criminalização, sob pena de ter-se o esvaziamento dos núcleos existentes nos preceitos incriminadores (raça, cor, etnia, religião e procedência nacional) – os quais, repita-se, apenas comportam operação exegética estrita, vinculada aos limites do texto. (BRASIL, 2019e, p. 11-12). A decisão do Supremo Tribunal Federal e a compreensão de dados ministros que julgaram e decidiram pela criminalização da violência homotransfóbica sob o alicerce da Lei 7.716/1989, de maneira que homotransfobia se tornou racismo, é equivocada em dois tempos. Equivocada por não compreender o que é raça, racismo, orientação sexual, identidade de gênero e homotransfobia, assim como por não compreender os princípios penais, os princípios constitucionais, bem como o que é asseverado pela própria Constituição da República.

Imiscuídos em uma cultura populista, dados ministros do Supremo Tribunal Federal julgaram e decidiram pela criminalização da homotransfobia no Brasil sob uma conjuntura de categórico desejo, ânsia e tensão pública e midiática. Assim, a decisão judicial da Corte mais atenta à opinião pública do que ao próprio direito e à própria Constituição.

Nota-se que o distanciamento em relação à população gerou em setores do Poder Judiciário, mesmo entre aqueles que acreditam na democracia, uma reação que se caracteriza pela tentativa de produzir decisões judiciais que atendam à opinião pública (ou, ao menos, aos anseios externados pelos meios de comunicação de massa). Tem-se o populista judicial, isto é, o desejo de agradar ao maior número de pessoas possível através de decisões judiciais como forma de democratizar a justiça aos olhos da população, mesmo que para tanto seja necessário afastar direitos e garantias previstos no ordenamento. Assim, não raro, juízes de todo o Brasil passaram a priorizar a hipótese que interessa à mídia ou ao espetáculo em detrimento dos fatos que podem ser reconstruídos por meio do processo. (CASARA, 2018, p. 131-132). A criminalização da violência homotransfóbica no Brasil por intermédio do poder judiciário brasileiro transporta para uma instituição não eleita e, por conseguinte, não representativa, deliberações que deveriam ser empreendidas em uma esfera sociocultural dotada de soberania popular, assim como em uma esfera política dotada de representatividade. Assim, em prol da judicialização da política e do ativismo judicial há um desmantelamento dos

princípios penais, dos princípios constitucionais, da Constituição da República, assim como da aptidão de agência e articulação sociopolítica dos sujeitos.

A experiência, cada vez mais, é a de uma total prescindibilidade das regras que dizem respeito à repartição de poderes e soberania popular em favor das demandas por mais punição e por mais atuação judicial. Quando se autoriza que o STF inclua uma elementar criminalizadora em uma lei – já que não há controvérsia quanto ao sentido de algum dos termos da norma –, inevitavelmente se está alterando o jogo republicano, atribuindo capacidade legislativa a órgão não eleito. Abre-se uma nova porta para que uma elite sem representatividade, e que já se revelou alinhada aos arranjos políticos e da razão neoliberal, assuma protagonismo no processo de delineamentos da pós- democracia brasileira. [...] a opção pela criminalização através da via judicial, considerando as regras da legalidade, da intervenção mínima e da separação de poderes, é uma afronta constitucional. Mas tem o condão de revelar o tônus do estado pós-democrático da atual conjuntura brasileira, que parece cada vez mais organizar em segundo plano os espaços políticos com representatividade e, em primeiro, um ativismo do judiciário violador de regras de soberania popular básicas. (FERNANDES, 2019, p. 28-29).

Nessa continuidade, na seção subsequente investiga-se a criminalização da violência homotransfóbica per se, vale dizer, para além de como a criminalização dessa violência foi empreendida pelo Supremo Tribunal Federal, investiga-se as argumentações acerca da legitimidade, efetividade e singularidade da instrumentalização do direito penal para concernir à violência contrária a gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Assim, investiga-se se o sistema de justiça criminal é apto a defrontar e enfrentar não só a homotransfobia, mas a ordem sexual hegemônica e (hétero)normativa que empreende essa mesma violência.