• Nenhum resultado encontrado

4 VIOLÊNCIA HOMOTRANSFÓBICA, DIREITO, DISCURSO JUDICIAL E

4.1 Heteronormatividade no direito e na justiça brasileira

O vínculo entre sexo, gênero, sexualidade e direito é historicamente alicerçado em torno da heteronormatividade. No Brasil, a datar do período colonial há regulamentações jurídicas acerca do sexo, do gênero e da sexualidade, quer criminalizando os atos sexuais entre pessoas do mesmo gênero até o século XIX, quer engendrando prisões ilegais e subjugando homossexuais a métodos terapêuticos até o século XX, quer, até o presente, conferindo ao sujeito um sexo e um gênero alicerçados em um binarismo de gênero, masculino versus feminino, no ínterim de uma estrutura hegemônica e normativa heterossexual.

Concernente ao vínculo entre os três poderes do Estado brasileiro e as orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas, o poder executivo, a datar do primeiro Governo Lula, arquitetou políticas públicas e movimentou artifícios materiais e simbólicos para a salvaguarda de direitos e garantias de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, como o “Programa Brasil Sem Homofobia” do ano de 2004, por exemplo.

Todavia, é imprescindível asseverar que por intermédio da eleição do presidente Jair Bolsonaro à presidência da república no ano de 2018, gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais têm padecido de um desmantelamento estrutural de políticas públicas, direitos e garantias no país. A Medida Provisória 870/2019, transformada na Lei 13.844/2019, que

concerne à organização da Presidência da República e dos Ministérios, na Seção XIII, que concerne ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, não faz alusão a gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. O presidente Bolsonaro integrou ao aludido Ministério “minorias” várias, tais como as mulheres, os negros, os índios, os idosos, os deficientes, dentre outros. Contudo, gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais não foram contemplados pela política governamental de Bolsonaro.

O bolsonarismo, em sua dimensão sexual, é a atualização dessa tradição regressiva na forma de uma reação violenta diante das novas gramáticas morais e das profundas mudanças operadas pelas lutas dos movimentos LGBT, feminista e negro no Brasil. São mudanças culturais profundas operadas por essas lutas nas últimas décadas, que desafiaram a hegemonia biopolítica do homem branco, heterossexual, cisgênero e proprietário. E que sigam desafiando, porque governo nenhum poderá ocultar o que os próprios desejos já revelaram. (QUINALHA, 2018, p. 24).

Por seu turno, o poder legislativo tem-se desnudado retrógrado no que concerne à salvaguarda de direitos e garantias de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, haja vista à substancial ingerência das religiões cristãs e suas bancadas evangélica e católica aos parlamentares, até mesmo no que concerne à criminalização da homotransfobia (CARRARA, 2010). Assim, gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais têm padecido uma cidadania precária no Brasil, cidadania que se transmuta em uma dupla negação, negação da humanidade e negação da cidadania (BENTO, 2014).

Como corolário da inexistência de progresso materializada na omissão e conservadorismo da arena legislativa no que concerne aos direitos de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, a militância LGBT tem se volvido para a arena judiciária, mormente ao Supremo Tribunal Federal. Uma vez que as três temáticas mais árduas do movimento LGBT brasileiro – a união entre pessoas do mesmo gênero, a despatologização das pessoas trans, assim como a criminalização da homotransfobia –, não lograram êxito por intermédio do poder legislativo, o judiciário tem se tornado uma arena de litígio político para o movimento. Assim, o movimento LGBT tem logrado triunfo e corporificação de direitos e garantias não mediante a arena política, mas mediante a arena jurídica.

Com efeito, a crescente profissionalização do movimento [LGBT] levou à reestruturação de suas bandeiras a partir de um discurso baseado na gramática dos direitos, principalmente por meio da defesa de uma leitura das normas constitucionais alinhada com os seus interesses e visões de mundo. As estratégias e caminhos para a luta social abandonaram progressivamente a noção de uma contestação cultural ampla e radical, que rechaçava a potencialidade do Direito como agente emancipatório, e passaram à adoção pragmática dos itinerários institucionais de transformação do ordenamento

jurídico, tornando o trabalho dos juristas e a técnica jurídica cada vez mais importantes para o movimento. Assim, as suas principais bandeiras atuais (casamento igualitário, criminalização da homofobia e as demandas de pessoas trans) envolvem o reconhecimento formal de direitos dentro da ordem jurídica existente. O Direito converte-se, portanto, em uma arena privilegiada para atuação do movimento e promoção da transformação social por ele pretendida. Ademais, as próprias estratégias para a defesa, conquista e preservação destas demandas são realizadas primordialmente por meio dos canais institucionais. Por outro lado, diante de uma atuação do Congresso Nacional marcada no tema dos direitos LGBT pelo “imobilismo” e “conservadorismo”, esta arena deixa de ser entendida como viável, e novos caminhos de reivindicação são buscados, o que ajuda a explicar a crescente submissão da pauta LGBT ao Judiciário, inclusive em temas nos quais sua legitimidade para atuar é questionável, como o caso da criminalização da homofobia. (CARDINALI, 2017, p. 229-230).

O Supremo Tribunal Federal, enquanto instância máxima do poder judiciário brasileiro, tem se desnudado um tanto quanto democrático. Um olhar retrospecto assevera a maneira com que o judiciário tem atuado conferindo direitos e garantias a gays e lésbicas, precipuamente no que concerne ao direito de família e direito da seguridade social. Todavia, o judiciário brasileiro é, concomitantemente, um campo incongruente. Se de fato tem atuado na expansão de direitos e garantias a gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, em contrapartida tem atuado por intermédio de discursos heteronormativos (COACCI, 2015).

No caso paradigmático em que o Supremo Tribunal Federal deliberou acerca da legitimidade das uniões estáveis entre pessoas do mesmo gênero no ano de 2011 mediante a Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, instrumentalizou-se o discurso da “homoafetividade”.

Vocábulo categoricamente criticado, a “homoafetividade” foi instrumentalizada pela Corte para legitimar a união entre pessoas do mesmo gênero, alicerçando-se em um ideal heteronormativo e assimilacionista que assevera que gays e lésbicas merecem ter o direito ao reconhecimento da união estável porque reproduzem a vivência de casais heterossexuais. O ordenamento jurídico brasileiro contemplou, inicialmente, gays e lésbicas de maneira conservadora e discriminatória, uma vez que discerniu e subordinou uma orientação sexual assimilável e tolerável – homossexualidade – à outra normal e natural – heterossexualidade. Sob esse prisma, a homoafetividade foi arquitetada para despoluir, refinar e normatizar a homossexualidade, apartando-a da sexualidade e aproximando-a do afeto. Assim, ao parametrizar o sujeito heterossexual e o afeto, a introdução da homossexualidade no ordenamento jurídico brasileiro ocorreu por intermédio de uma lapidação moral, o discurso do amor romântico, reverberando em hierarquias sexuais (COSTA; NARDI, 2015; RIOS, 2010).

Ora, como seriam compreendidos a liberdade sexual, a bissexualidade, a pansexualidade, as transexualidades, a prostituição, a pornografia, o sadomasoquismo etc.? A instrumentalização de políticas identitárias pelo movimento LGBT brasileiro e pelo direito não complexifica a heterossexualidade, relegando-a a um locus confortável que perpetua a sua hegemonia. É sob esse prisma que Colling (2011) interpela o porquê a união entre pessoas do mesmo gênero, pleiteada pelo movimento LGBT brasileiro, é alicerçada na família nuclear burguesa, instituição que historicamente corroborou com a hostilização das orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas.

Por conseguinte, Coacci (2017) assevera que as decisões judiciais brasileiras acerca dos direitos e garantias de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais são alicerçadas em um “pedágio da natureza”, vale dizer, uma compreensão e um discurso acerca da “natureza” da homossexualidade e da transexualidade. A natureza reputar-se-ia como um “pedágio”, uma legitimação para se conferir cidadania e direitos a esses sujeitos, assim como legitimidade às suas reivindicações judiciais. Assim, os magistrados importam para o direito discursos, saberes e poderes médicos e religiosos acerca da “verdade” e da “natureza” do sexo e da sexualidade. Todavia, a heterossexualidade e a cisgeneridade não padecem de escrutínio. Ora, uma vez que direitos e garantias não são oriundos de uma natureza, mas de articulações histórico-políticas, a “naturalidade” da orientação sexual e da identidade de gênero não deveria ser a condição sine qua non para se conferir cidadania, direitos e garantias a gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Assim, o “pedágio da natureza” reputa-se como a fragilização da cidadania e da democracia, assim como violência institucional e simbólica da justiça brasileira.

Sob esse prisma, outrora à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.275, julgada no ano de 2017 pelo Supremo Tribunal Federal acera da legitimidade da retificação do prenome de travestis e transexuais sem a substancialidade de cirurgia e laudo médico e psicológico de comprobação da transexualidade, nas hipóteses em que essas pessoas desejavam modificar seus prenomes, o discurso da patologia emergia para corroborar a naturalidade do fenômeno transexual e a inexistência de liberdade do sujeito acerca da predileção de seu gênero. A modificação não era oriunda do desejo e da deliberação individual do sujeito, mas de uma patologia intrínseca ao mesmo. Alicerçando-se nos discursos, saberes e poderes médicos, o direito outrora conferia a viabilidade de retificação do prenome a travestis e transexuais requisitando, quando não a cirurgia de transgenitalização, o laudo médico e psicológico de comprobação da transexualidade e a permanência desse sujeito no procedimento transexualizador e hormonizador. Todavia, por intermédio do voto do ministro Edson Fachin na ADI 4.275, o direito à retificação do prenome e também do gênero pode ser, hodiernamente,

empreendido administrativamente em cartório, possuindo como formalidade e quesito tão somente o desejo e a asseveração do sujeito para a modificação (COACCI, 2018).

Por seu turno, Rios e Oliveira (2012) asseveram a subsistência de quatro classes discursivas que são instrumentalizadas pelo poder judiciário brasileiro. “Conservadorismo judicial e heterossexismo explícito” – discursos judiciais negativos acerca da homossexualidade que a subordina hierarquicamente à heterossexualidade; “liberalismo abstencionista e heterossexismo implícito” – discursos judiciais neutros e sem juízos de valor que se tornam coniventes e perpetuadores do preconceito e discriminação; “assimilacionismo familista e homoafetividade” – discursos judiciais que prognosticam a assimilação de arquétipos familiares, conjugais e afetivos heteronormativos; “diversidade sexual e afirmação dos direitos sexuais” – discursos judiciais que reconhecem a dignidade das orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas, conferindo-lhes direitos.

Assim, sexo, gênero, sexualidade e direito correlacionam-se por intermédio da heteronormatividade. Quanto mais normatizados gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais forem, maior será a asserção de direitos a esses sujeitos. O direito arquiteta uma hierarquização heteronormativa no ínterim do universo das orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas, reconhecendo esses sujeitos como sujeitos de direitos desde que estejam iminentes à gramática heteronormativa.

A heteronormatividade do direito implica no estabelecimento de um modelo de práticas que tendem a normalizar os corpos e as populações segundo os ditames desta regra, isto é, opera em um duplo grau de normalização. Exclui (incluindo), todo conjunto heterogêneo de corpos não conformados pelas determinações da regra fazendo com que direitos cuja marca é a universalidade não lhe sejam assim garantidos por sua condição de não- heterossexual. Mas, além disso, opera em um outro nível de conformações, na medida em que se esforça para capturar tais corpos visando assimilá-los nas prescrições da norma. Isto é, cria-se um gradiente de normalidade no qual os corpos passam a ser distribuídos segundo níveis de transgressão, e a partir de tal gradação garante direitos na medida em que são assimilados, ainda que fragmentariamente, pela heteronormatividade. (ARAUJO, 2018, p. 660). Por seu turno, no que concerne ao vínculo entre poder judiciário e violência homotransfóbica, em pesquisa empreendida por Carrara e Vianna (2004) acerca dos processos judiciais dos tribunais cariocas dos anos 1980 concernentes à violência letal contrária aos homossexuais, os autores asseveraram a subsistência de representações patologizantes que os magistrados possuíam no que versa às vítimas homossexuais – representações essas alicerçadas em saberes médicos que compreendiam a homossexualidade como doença, anomalia, distúrbio. Essa “homossexualidade medicalizada” era reputada pelos juristas como uma “fraqueza sexual”

ou “fraqueza moral”, assim como era, continuamente, atrelada à passividade sexual, uma vez que os réus, sexualmente ativos, não eram reputados pelos juristas como homossexuais. Assim, as vítimas homossexuais eram, antes de serem vítimas de crimes, vítimas de seus próprios desejos sexuais, patológicos e promíscuos, assim como vítimas de suas próprias melancolias e solidão, o que reverberava em seus vínculos com homens ativos e, ao fim, em suas mortes.

O mais intrigante é que esse imaginário jurídico truncado estava alicerçado nas ponderações da criminologia positivista e ortodoxa de matriz lombrosiana, uma vez que os magistrados, ao julgarem os crimes homofóbicos, alicerçavam-se nas representações de que os homossexuais eram vítimas visto as suas degenerescências e patologias sexuais e morais.

[...] a “passividade” sexual do homossexual “de verdade”, o caráter imperioso do desejo (homo)sexual, assim como a “tristeza”, a “melancolia”, a “degenerescência”, a “anomalia” fazem parte de um imaginário (no sentido estrito da expressão) em que se misturam representações muito tradicionais sobre a sexualidade e informações da sexologia que os criminólogos (aqui incluídos os médico-legistas) ensinaram durante grande parte do século XX. (CARRARA; VIANNA, 2004, p. 381).

Por conseguinte, em pesquisa empreendida por Braga e Serra (2018) acerca da compreensão das travestis pelos desembargadores paulistas, os autores asseveraram que dos cinquenta acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo investigados nenhum contemplava a travesti no feminino. Os discursos dos desembargadores transitavam em uma trama de relações que compreendiam as travestis como prostitutas, criminosas e perigosas, vale dizer, “afeitas ao crime”. “A periculosidade, a afeição ao crime, o vínculo quase necessário com a prostituição e o tráfico de drogas, a ‘mentira’ do ‘homem’ atrás ou por dentro da travesti são estereótipos, construções sociais” que emergiam nos discursos judiciais (BRAGA; SERRA, 2018, p. 110).

Os discursos judiciais, transversos por representações sociais desviantes e criminalizadoras das travestis, não somente legitimam as violências sociais, mas são eles mesmos a própria violência. Assim, o discurso judicial retroalimenta a precariedade como integrante das vivências e experiências das travestis no Brasil (BRAGA; SERRA, 2018).

Para nós, o funcionamento do Tribunal de Justiça parece consolidar juridicamente expectativas sociais, criminalizando corpos travestis por meio de fantasmas discursivos, relacionados à ambiguidade que habita o corpo travesti, que desconcerta o binarismo social e os limites das categorias jurídicas; muitas vezes, à custa de suas vidas e sague. [...] o sistema de justiça criminal produz nas suas práticas e discursos a subjetividade travesti como criminosa, perigosa e prostituída. A aplicação da lei penal é, desse ponto de vista, um processo produtivo de construção de subjetividades desviantes, processo este que produz mais precariedade em termos de acesso a direitos, especialmente no tocante ao reconhecimento da travesti como sujeita de direitos. [...] Os discursos jurídicos, carregados de representações desviantes

e criminalizadoras da travesti, como o “risinho”, legitimam as violências – e constituem eles mesmos a própria violência. Ao controlar quem pode reivindicar a identidade feminina e constituir a travesti como “pessoa afeita ao crime”, o discurso judicial (re)produz a marginalização e vitimização como constituintes da experiência travesti hoje no Brasil. (BRAGA; SERRA, 2018, p. 110-112, grifo do autor).

Os ideais cristalizados de sexo e gênero norteiam aos representantes dos saberes jurídicos um itinerário essencializado do que é e deve ser a pessoa trans. Os procedimentos judiciais concernentes às pessoas trans põem em risco a viabilidade de existência desses sujeitos, uma vez que as instituições jurídicas não somente contemplam, mas também empreendem, por intermédio de suas práxis e discursos, essas pessoas como abjetos. Assim, os sujeitos trans, antes de reivindicarem direitos concernentes à sua pessoa, lutam para serem reconhecidos como pessoas (TEIXEIRA, 2013).

Nesse sentido, a despeito de lógicas e racionalidades que dizem propagar ideais de igualdade/equidade, o sistema de Justiça é organizado e fundado por critérios e práticas de diferenciação hierárquica, tornando-se mais um espaço em que a população dissidente de gênero e sexualidade experimenta a criminalização. [...] O que se pode perceber, portanto, é que não há uma invisibilidade da população transexual e travesti nos sistema de Justiça, muito pelo contrário, há uma hipervisibilidade, contornada pela moralidade das convenções sociais e das normas de gênero. O contexto das experiências das dissidências de gênero e sexualidade se tornam munições que retroalimentam o universo da moralidade convencional sobre gênero e sexualidade, tornando, assim, as experiências das travestis e transexuais diante dos fatos a serem investigados, experiências de gênero criminosos. Criam-se procedimentos, atos e ritos que, longe de serem democráticos, materializam passo a passo os elementos que culpabilizam o gênero, identificando nesses corpos e vidas gêneros criminosos da Justiça brasileira. (PRADO et al., 2018, p. 533). Ora, a justiça instrumentaliza categorias fixas e essencialistas, assim como binarismos sexuais e de gênero oriundos dos discursos das ciências médicas que, a datar do século XIX, têm compreendido as orientações sexuais e as identidades de gênero não hegemônicas como patologias. Por conseguinte, a justiça atua de maneira mais austera nas hipóteses em que os sujeitos são travestis ou transexuais, possuem uma representação mais efeminada, quer homossexuais, ou possuem uma representação mais masculinizada, quer lésbicas. Essa violência simbólica empreendida pela justiça, concernente à performatividade e representação subjetiva de cada sujeito, reverbera em uma violência superior às que gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais já padecem (TOMSEN, 2006).

Assim, deve-se atentar para as decorrências indesejáveis de se instrumentalizar a gramática da judicialização do reconhecimento de direitos à gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. A utopia de que a justiça mitigará todos os empecilhos político-sociais e que

reconhecerá a dignidade desses sujeitos desatenta-se do fato de que a própria justiça brasileira retroalimenta as desigualdades sociais, assim como o próprio preconceito, discriminação e violência homotransfóbica. A gramática dos direitos humanos também deve ser instrumentalizada com ponderação, uma vez que possui uma significância abstrata que necessita, na sua determinação jurídica, de valores e compreensões extrajurídicos. Assim, torna- se árduo reivindicar direitos humanos quando gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil não são reputados sequer como humanos, mas como abjetos (CARRARA, 2010; JUNQUEIRA, 2012; SHARMA, 2008).

Embora partilhe da visão de que a livre expressão de gênero e do desejo é um direito humano, penso que a busca da legitimação das homossexualidades não pode ficar aprisionado a visões e posturas que traduzem uma ânsia por uma espécie de autorização, concessão, aquiescência ou clemência, que não implica avanço ético e político algum, pois equivale a advogar pelo reconhecimento do inevitável, e não da legitimidade de um direito. Diante de tais pedagogias, é inútil falar em direitos humanos de maneira abstrata e genérica. [...] em favor da promoção dos direitos sexuais e do enfrentamento à opressão sexista e homofóbica, é preciso considerar a própria heteronormatividade uma violação dos direitos humanos. E mais: além de duvidar de formulações vagas e bem-intencionadas, seria indispensável confrontar-se diretamente com as crenças e as lógicas produtoras de opressão. (JUNQUEIRA, 2012, p. 293, grifo do autor).

Sob essa compreensão, o direito, como estrutura normativa, sempre arquitetou sexo, gênero e sexualidade, quer materialmente, quer simbolicamente. Todavia, o campo jurídico, por intermédio de suas normativas, legislações, práxis, decisões e discursos judiciais, arquiteta essas dimensões sob o prisma da natureza, retroalimentando e robustecendo a abjeção, a heteronormatividade, as identidades fixas, os binarismos sexuais e de gênero, assim como a violência homotransfóbica e a lógica sexo-gênero-sexualidade que a teoria queer aspira desmantelar. O direito, ao arquitetar saberes-poderes normatizadores, atua normatizando o sujeito de maneira que quanto mais normatizado for, maior será sua contemplação como sujeito de direitos.

É ante essa compreensão acerca do vínculo entre sexo, gênero, sexualidade e direito que na seção subsequente investiga-se os itinerários da criminalização da homotransfobia no Brasil. Assim, investiga-se como a violência homotransfóbica foi contemplada e instrumentalizada pela arena legislativa e, posteriormente, pela arena judiciária e seus discursos por intermédio do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, do Mandado de Injunção (MI) 4.733 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, em que se tornou a violência homotransfóbica crime no Brasil.