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Discurso judicial, criminalização e a materialização da violência homotransfóbica pelo

4 VIOLÊNCIA HOMOTRANSFÓBICA, DIREITO, DISCURSO JUDICIAL E

4.4 Discurso judicial, criminalização e a materialização da violência homotransfóbica pelo

O ministro Celso de Mello, enquanto relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, em seu voto de mais de 150 páginas inicia-o por intermédio de um discurso de tutela à gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Para o ministro, muito mais significativo do que concernir à violência homotransfóbica no Brasil, é asseverar e robustecer o poder que o Supremo Tribunal Federal possui em resguardar a Constituição da República e, por conseguinte, tutelar esses sujeitos.

Muito mais importante, no entanto, do que atitudes preconceituosas e discriminatórias, tão lesivas quão atentatórias aos direitos e liberdades fundamentais de qualquer pessoa, independentemente de suas convicções, orientação sexual e percepção em torno de sua identidade de gênero, é a função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal, a quem incumbe fazer prevalecer, sempre, no exercício irrenunciável da jurisdição constitucional, a autoridade e a supremacia da Constituição e das leis da República. (BRASIL, 2019a, p. 1, grifo do autor).

Por intermédio do discurso introdutório de seu voto, está evidente que o que o está em querela pelo poder judiciário não é a violência homotransfóbica no Brasil, sua compreensão e

singularidades, mas a perpetuação do poder do STF como instituição judiciária máxima em salvaguardar a norma constitucional.

Por conseguinte, ao contemplar gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais como “minorias”, o ministro Celso de Mello assevera que concerniria ao Estado brasileiro, mormente ao STF, a tutela desses sujeitos.

A intolerância e as práticas discriminatórias dela resultantes, motivadas por impulsos irracionais, especialmente quando dirigidas contra grupos minoritários, representam um gravíssimo desafio que se oferece à sociedade civil e a todas as instâncias de poder situadas no âmbito do aparelho de Estado, com particular destaque para o Supremo Tribunal Federal. (BRASIL, 2019a, p. 105, grifo do autor).

Adiante:

Trata-se, na realidade, de tema que, intimamente associado ao debate constitucional suscitado nesta causa, concerne ao relevantíssimo papel que compete a esta Suprema Corte exercer no plano da jurisdição das liberdades: o de órgão investido do poder e da responsabilidade institucional de proteger as minorias contra eventuais excessos da maioria ou, ainda, contra omissões que, imputáveis aos grupos majoritários, tornem-se lesivas, em face da inércia do Estado, aos direitos daqueles que sofrem os efeitos perversos do preconceito, da discriminação e da exclusão jurídica. (BRASIL, 2019a, p. 142, grifo do autor).

Em concordância com Miskolci (2009), a nomenclatura “minoria”, alicerçada sob um prisma numérico, subordina os sujeitos abjetos aos hegemônicos, contemplados como a maioria. A teoria queer é contrária aos estudos das minorias, vale dizer, estudos de gênero e sexualidade que compreendem gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais como minorias sexuais e de gênero, uma vez que esses estudos das minorias retroalimentam a centralidade da heterossexualidade e da cisgeneridade como orientação sexual e identidade de gênero legítimas, não criticando a heteronormatividade. Assim, “no que concerne aos estudos sobre minorias sexuais, na perspectiva queer eles, ao se denominarem desta forma, terminam por reverenciar as ‘maiorias’ que permanecem intocadas pelo impulso desnaturalizante que colocaria em xeque sua hegemonia como padrão social pressuposto.” (MISKOLCI, 2009, p. 168).

Adiante, o ministro Celso de Mello assevera que o acrônimo “LGBT”, para além de ter sido arquitetado pela própria comunidade de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, não é estanque, hermético e reducionista no que concerne aos outros sujeitos e grupos sociais, como os queer, os intersexuais e os assexuais. Para o ministro, o acrônimo “LGBT”, assim como a própria “comunidade LGBT”, contemplaria, outrossim, outros sujeitos para além dos já congregados pelo acrônimo.

A expressão LGBT, além de possuir a virtude de haver sido formulada pela própria comunidade que designa, atingiu ampla aceitação pública e consenso internacional, consagrando-se sua utilização, no Brasil, em 08/06/2008, na I Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (convocada por meio do decreto presidencial de 28 de novembro de 2007), cabendo assinalar, no entanto, que a primazia conferida ao uso desse termo decorre, exclusivamente, do prestígio e do renome que o acrônimo LGBT adquiriu no âmbito da defesa dos direitos humanos e do combate à discriminação, sem que o seu emprego signifique indiferença ou esquecimento em relação às demais siglas também utilizadas, especialmente com o propósito de fazer incluir, em sua definição, as pessoas que se identificam como “queer” (LGBTQ), as pessoas intersexuais (LGBTQI), as pessoas assexuais (LGBTQIA) e todas as demais pessoas representadas por sua orientação sexual ou identidade de gênero (LGBTQI+). (BRASIL, 2019a, p. 7, grifo do autor).

Todavia, a comunidade LGBT, como comunidade que se alicerça em um cariz identitário acerca das orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas, não contempla os sujeitos queer, que não instrumentalizam uma política identitária, assim como os sujeitos intersexuais, que se singularizam não pela orientação sexual ou identidade de gênero, mas pela diferença corporal. Uma vez que os queer, os intersexuais e os assexuais são sujeitos distintivos, é árdua as suas inserções ante o acrônimo LGBT, uma vez que até mesmo esses sujeitos não desejam se inserir à comunidade LGBT visto as suas individualidades.

Concernente aos intersexuais, por exemplo, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2015, p. 28) assevera que “alguns ativistas intersexo e defensores e defensoras de direitos humanos contestam a associação de pessoas intersexo com grupos LGBT e suas reivindicações, especialmente quando essa associação frequentemente resulta na ‘invisibilização da situação das pessoas intersexo’”. Assim, uma maior complexificação e singularização acerca dos sujeitos que integram o acrônimo LGBT, assim como acerca dos sujeitos que não integram, poderia ser empreendida pelo julgamento.

Adiante, o ministro Celso de Mello assevera que a comunidade LGBT, para além de não se reputar como uma “coletividade homogênea”, tracejar-se-ia pela “diversidade de seus integrantes”, possuindo “pessoas e grupos sociais distintos” e que, por seu turno, evidenciam “diferenciação entre si”. Todavia, ainda que diferentes, esses sujeitos estariam congregados por intermédio de uma rubrica em comum, vale dizer, “a sua absoluta vulnerabilidade”.

É possível constatar, a partir dessa breve exposição, que a comunidade LGBT, longe de constituir uma coletividade homogênea, caracteriza-se, na verdade, pela diversidade de seus integrantes, sendo formada pela reunião de pessoas e grupos sociais distintos, apresentando elevado grau de diferenciação entre si, embora unidos por um ponto comum: a sua absoluta vulnerabilidade agravada por práticas discriminatórias e atentatórias aos seus direitos e liberdades fundamentais. (BRASIL, 2019a, p. 8, grifo do autor).

Como dissertado em seções predecessoras deste trabalho, gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais possuem diferenciações entre si. Por intermédio de uma abordagem interseccional/articulatória em que múltiplos marcadores sociais da diferença, como gênero, sexualidade, classe, raça, etnia, nacionalidade etc., transpassam a vida dos sujeitos, a “comunidade LGBT” está distante de ser homogênea. As vivências e experiências desses sujeitos são infinitas. Todavia, conferir à gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais a idiossincrasia “vulnerabilidade” como rubrica que os agrega é desvalorizar a aptidão de agência que esses sujeitos possuem.

Em concordância com Butler (2017), todos os sujeitos possuem uma vulnerabilidade fundamental, uma vez que a vulnerabilidade é intrínseca aos seres humanos. Assim, um sujeito é mais ou menos vulnerável em conformidade com a disposição desigual da precariedade em sua vida. Todavia, não obstante gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais padeçam vulnerabilidades e precariedades maiores em suas vidas como corolário de suas orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas, isso não prognostica que são sujeitos impassíveis de aptidão de agência, assim como não os confere uma “absoluta vulnerabilidade” como idiossincrasia delineadora.

Demetri (2018), ao versar acerca das categorias butlerianas de vulnerabilidade, agência e tutela, assevera que:

Isso não é negar que não haja uma maior vulnerabilidade, mas daí não deve se seguir que a vulnerabilidade é característica indelével de determinadas populações. E pior: muitas vezes acompanha tal discurso um enunciado implícito de tutela, esvaziando a agência política desses atores. Nesse sentido, todo e qualquer conceito, especialmente aqueles usados à exaustão e sem rigor teórico de uso e definição, pode nos lançar em armadilhas e becos sem saída. [...] O poder pode subordinar, mas, paradoxalmente, toda e qualquer possibilidade de agência e de resistência precisam passar pelo poder. A vulnerabilidade, logo, não se distancia da resistência. (DEMETRI, 2018, p.176-180).

Assim, o discurso do ministro que assevera que a vulnerabilidade é o elo elementar que vincula gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, para além de desdenhar a aptidão de agência que esses sujeitos possuem, confere-os um locus de fragilidade, debilidade e impotência em que tão somente são meritórios de tutela.

Por conseguinte, concernente à compreensão de sexo, gênero e sexualidade, o discernimento do ministro Celso de Mello se alicerça em dimensões fixas, essencialistas, naturalistas e biológicas, assim como em binarismos sexuais e de gênero.

A designação do sexo da pessoa, sob perspectiva estritamente biológica, diz respeito à sua conformação física e anatômica, restringindo-se à mera verificação de fatores genéticos (cromossomos femininos ou masculinos), gonadais (ovários ou testículos), genitais (pênis ou vagina) ou morfológicos (aspectos físicos externos gerais). Esse critério dá ensejo à ordenação das pessoas, segundo sua designação sexual, em homens, mulheres e intersexuais (pessoas que apresentam características sexuais ambíguas). (BRASIL, 2019a, p. 9, grifo do autor).

O ministro alicerça-se na compreensão do sexo como uma categoria natural e biológica, uma vez que o circunscreve à elementares genéticas, gonadais, genitais ou morfológicas. Todavia, em concordância com as ponderações da teoria queer, precipuamente em concordância com as ponderações de Butler o sexo é oriundo, para além da materialidade tão somente, de relações de poder, de discursos normatizadores e de artifícios simbólicos.

Em concordância com Butler (2016a), no que concerne à materialidade o sexo pode ser compreendido por intermédio de elementares várias, como, por exemplo, pelas idiossincrasias sexuais primárias, pelas dimensões anatômicas, hormonais ou cromossômicas, ou pelo ofício reprodutivo. Todavia, Butler assevera que essa compreensão material acerca do sexo possui infortúnios, uma vez que nem todos os corpos sexuados são reprodutivos, quer porque alguns não possuem idade para a reprodução, quer porque alguns já ultrapassaram a idade para a reprodução, quer porque alguns nunca foram aptos à reprodução, quer porque alguns nunca desejaram a reprodução. Assim, para Butler (2016a, p. 25), “se a reprodução se torna a única forma pela qual pensamos sobre o corpo sexuado – definindo todos seus possíveis elementos constitutivos à luz de sua possível função reprodutiva –, então nós excluímos a possibilidade de uma vida sexual que não tenha relação com a reprodução.”

Ainda em concordância com Butler (2016a, 2016b) e suas ponderações pós- estruturalistas, a compreensão acerca do sexo tem se diferenciado no transcorrer dos séculos, de maneira que a diferenciação entre os sexos se vincula à interpretação histórica e conjuntural acerca da materialidade do mesmo. Por conseguinte, deve-se sim asseverar a materialidade do sexo, mas essa materialidade não deve ser fixa, perpétua e universal, uma vez que está transversa por relações de poder, assim como está alicerçada em um domínio discursivo e normativo de linguagens, símbolos e significâncias múltiplas sempre em contenda.

[...] não negamos a generalidade dessas diferenças materiais, ainda que, dadas as variações e exceções, seria um erro, e até mesmo uma forma de crueldade, denominar essa diferença como universal. Até neste momento tão óbvio, um momento em que declaramos a realidade e materialidade de dois sexos, nós já estamos em um campo discursivo, disputando aquilo que queremos dizer, e que significado prevalecerá. Sem esse paradigma, não poderíamos compreender a história da ciência, tampouco poderíamos compreender como o “sexo” opera em diferentes linguagens. (BUTLER, 2016a, p. 26).

Concernente a “gênero”:

Já a ideia de gênero, assentada em fatores psicossociais, refere-se à forma como é culturalmente identificada, no âmbito social, a expressão da masculinidade e da feminilidade, adotando-se como parâmetro, para tanto, o modo de ser do homem e da mulher em suas relações sociais. A identidade de gênero, nesse contexto, traduz o sentimento individual e profundo de pertencimento ou de vinculação ao universo masculino ou feminino, podendo essa conexão íntima e pessoal coincidir, ou não, com a designação sexual atribuída à pessoa em razão sua conformação biológica. É possível verificarem-se, desse modo, hipóteses de coincidência entre o sexo designado no nascimento e o gênero pelo qual a pessoa é reconhecida (cisgênero) ou situações de dissonância entre o sexo biológico e a identidade de gênero (transgênero). (BRASIL, 2019a, p. 9, grifo do autor).

O ministro alicerça-se na compreensão do gênero como uma categoria social e cultural que se confere ao sexo, categoria natural e biológica. Por intermédio do discurso do ministro haveria um binarismo sexo/natureza versus gênero/cultura, sendo o sexo predecessor ao gênero. Todavia, essa compreensão é arduamente criticada pela teoria queer, precipuamente pelas ponderações de Butler, para quem sexo é oriundo de relações de poder tanto quanto gênero, o que reverbera na compreensão de que não há uma diferenciação perfeita entre sexo e gênero.

Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio construto chamado “sexo” seja tão culturalmente construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nula. Se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não faz sentido definir o gênero como a interpretação cultural do sexo. O gênero não deve ser meramente concebido com a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. (BUTLER, 2016b, p. 27). Por conseguinte, ao asseverar que o gênero concerne à “expressão da masculinidade e da feminilidade” e, subsequentemente, no “modo de ser do homem e da mulher em suas relações sociais”, o ministro instrumentaliza, para além de um binarismo de gênero, um essencialismo. Gênero, para além de estar alicerçado tão somente em um binarismo de gênero masculino versus feminino, fundamentaria, de maneira essencializadamente cristalizada, comportamentos de homens versus comportamentos de mulheres.

Outrossim, quando concerne à identidade de gênero como dimensão “individual”, “íntima” e “pessoal” vinculada ao masculino ou feminino, o ministro não compreende que até mesmo as identidades de gênero não estão imiscuídas tão somente à esfera individual, mas às esferas estrutural e institucional, que, por seu turno, são transversas por relações de poder.

A sexualidade humana, por fim, envolve aspectos íntimos da personalidade e da natureza interna de cada pessoa, que revelam suas vocações afetivas e desígnios amorosos, encontrando expressão nas relações de desejo e de paixão. Essa perspectiva evidencia a orientação sexual das pessoas, que vem a ser exercida por meio de relacionamentos de caráter heterossexual (atração pelo sexo oposto), homossexual (atração pelo mesmo sexo), bissexual (atração por ambos os sexos) ou assexual (indiferença a ambos os sexos) [...] (BRASIL, 2019a, p. 9-10, grifo do autor).

O ministro, mais uma vez, alicerça-se na compreensão da sexualidade sob um prisma tão somente individual, íntimo e pessoal que desvaloriza as esferas estrutural e institucional em que há relações de poder. Assim, outra vez recorre-se à Butler para compreender que sexo, gênero e sexualidade são dispositivos heteronormativos que, arquitetados e instrumentalizados por intermédio de relações de poder, discursos normatizadores e artifícios simbólicos, robustecem corpos, sexos, gêneros e sexualidades hegemônicas. Sexo, gênero e sexualidade não são dimensões imiscuídas tão somente ao domínio da individualidade, mas ao domínio estrutural, institucional e normativo da heteronormatividade. Sexo, gênero e sexualidade são vetores de poder. “O corpo só ganha significado no discurso no contexto das relações de poder. A sexualidade é uma organização historicamente específica do poder, do discurso, dos corpos e da afetividade.” (BUTLER, 2016b, p. 162).

Outrossim, o ministro enumera as orientações sexuais viáveis, vale dizer, a heterossexualidade, a homossexualidade, a bissexualidade e a assexualidade. Todavia, resumir- se-á o universo da sexualidade humana em uma circunscrição alicerçada tão somente pelo desejo ao gênero oposto, pelo desejo ao mesmo gênero, pelo desejo por ambos os gêneros ou pela indiferença à ambos os gêneros? Em concordância com a teoria queer, a sexualidade humana está para além de qualquer categorização e compartimentação de sujeitos e subjetividades. Assim, uma vez que os sujeitos são sempre contextuados e contingenciais, deve- se compreender que o domínio do desejo é muito mais complexo, multiforme e enigmático do que qualquer enquadramento normativo.

Em seu voto o ministro Celso de Mello alude à uma citação de Daniel Gomes de Carvalho para contemplar “sexo”, “gênero” e “sexualidade”.

“De acordo com esse ponto de vista, o sexo é um fator biológico, ou seja, ligado à constituição físico-química do corpo humano. Outra coisa é o gênero. Quando se fala em ‘gênero feminino’, fala-se em todas as

características que a sociedade associa ao ‘ser mulher’; quando se fala em ‘gênero masculino’, fala-se em todas as características que a sociedade associa ao ‘ser homem’. Do ponto de vista, o gênero não é biológico-natural,

mas um constructo social. Em outras palavras, ‘ser homem’ ou ‘ser mulher’ não é um dado natural, mas performático e social, de maneira que, ao longo da história, cada sociedade criou os padrões de ação e comportamento de

determinado gênero. A orientação sexual, isto é, a quais gêneros nos sentimos atraídos (física, romântica ou emocionalmente), por sua vez, seria ainda um terceiro fator, diferente do gênero ou do sexo. A liberdade de construção do gênero e da orientação sexual, diferentemente do dado biológico do sexo (...) dialoga com o existencialismo. Lembre-se: existencialismo é uma filosofia que enxerga o homem como constructo de si mesmo: pelas suas escolhas, é possível construir a própria existência. Evidentemente, para os existencialistas, quando nascemos, já existe uma sociedade pronta, repleta de regras e padrões. Mas, como dizia Sartre, não importa o que os outros fizeram conosco, mas o que fazemos com o que fizeram com os outros. Nesse sentido, a liberdade de escolha de gênero seria uma maneira de exercermos essa liberdade existencial.” (CARVALHO apud BRASIL, 2019a, p. 16-17, grifo do autor).

Por intermédio do discurso de Carvalho é categórica a compreensão normativa, fixa, essencialista e binária acerca de sexo, gênero e sexualidade. Assim, concomitantemente o sexo estaria atrelado à natureza, à biologia e, por conseguinte, à fixidez, o gênero estaria atrelado ao binarismo masculino versus feminino.

Por conseguinte, o ministro Celso de Mello recorre à Simone de Beauvoir e sua teoria existencialista para concernir ao sexo e ao gênero.

É por isso que SIMONE DE BEAUVOIR, em sua conhecida obra “O Segundo Sexo” (“Le Deuxième Sexe”, tomo I, “Les Faits et Les Mythes” e, tomo II, “L’expérience Vécue”, Ed. Gallimard), escrita em 1949, já manifestava a sua percepção em torno da realidade de que sexo e gênero constituem expressões conceituais dotadas de significado e de sentido próprios, sintetizando, em uma fórmula tipicamente existencialista e fenomenológica, de caráter tendencialmente feminista (op. cit., vol. 2/11, 3ª ed., 2016, Ed. Nova Fronteira), que “On ne naît pas femme: on le devient” (“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”). (BRASIL, 2019a, p. 15-16, grifo do autor).

Todavia, críticas substancias têm sido empreendidas à Beauvoir, como as arquitetadas por Bento (2017):

Ao afirmar que “mulher não nasce, torna-se”, Beauvoir buscava mostrar os mecanismos que dão consistência ao “tornar-se”, constituindo um movimento teórico de desnaturalização da identidade feminina. Mas desnaturalizar não é sinônimo de dessencializar. Ao contrário, à medida em que se apontavam os interesses que posicionam a mulher como inferior por uma suposta condição biológica, as posições universalistas reforçaram, em boa medida, a essencialização dos gêneros, uma vez que tendem a cristalizar as identidades em posições fixas. [...] Dois corpos diferentes. Dois gêneros e subjetividades diferentes. Esta concepção binária dos gêneros reproduz o pensamento moderno para os sujeitos universais, atribuindo-lhes determinadas características que se supõe sejam compartilhadas por todos. O corpo aqui é pensado como naturalmente dimórfico, como uma folha em branco, esperando o carimbo da cultura que, através de uma série de significados culturais, assume o gênero. Butler, desenvolvendo uma crítica a essa concepção, afirma que um dos problemas desse tipo de construtivismo, que hegemonizou o feminismo por décadas, é haver feito do corpo-sexo uma matéria fixa, sobre a

qual o gênero viria a dar forma e significado, dependendo da cultura ou do momento histórico, gerando um movimento de essencialização das identidades. [...] O homem, para Beauvoir, representa o sujeito universal; e a mulher, por sua vez, seria o seu outro absoluto. Dessa forma, elas são mulheres em virtude de sua estrutura fisiológica; por mais que se remonte na história, sempre estiveram subordinadas ao homem. (BENTO, 2017, p. 66-67). O discurso do ministro instrumentaliza as ponderações de Beauvoir que, não obstante sejam notórias aos estudos de gênero, delimitam-se por suas compreensões fixas, essencialistas, binárias, assim como universalistas. Assim, ainda que o ministro tenha dialogado com as reflexões filosóficas de Beauvoir para além dos discursos médicos acerca de sexo, gênero e sexualidade, uma vez que as ponderações de Beauvoir mais retroalimentam do que