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A compreensão do que é violência homotransfóbica reivindica, a princípio, a diferença entre crime e violência. “Crime” é a tipificação em legislação penal de atos violentos, o que prognostica a sua deliberação e resolução por uma estrutura jurídica. “Violência”, por seu turno, é um fenômeno profuso em que distintivos atos, ao reputarem-se como arbitrários e abusivos, imiscuem-se em dinâmicas relacionais de poder, integrando os sujeitos implicados e os dispondo de maneira diferenciada. A violência pode materializar-se distintivamente, reverberando em infortúnios letais, físicos, patrimoniais, morais, psíquicos, simbólicos etc. Assim, a violência não prognostica imprescindivelmente a transgressão de uma lei penal, reputando-se como crime (DEBERT; GREGORI, 2008; FACCHINI, 2016).

Há violência quando, numa situação de interação, um ou vários autores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua

integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais. (MICHAUD, 1989, p. 10-11).

Por conseguinte, o que é violência homotransfóbica? Como asseverado na seção predecessora acerca dessa violência no Brasil, a violência homotransfóbica possui singularidades concernentes aos sujeitos que são por ela alvejados. Assim, se gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais são sujeitos singulares, as vivências e experiências que esses sujeitos possuem no que concerne à violência é, outrossim, singular.

Essa é a razão do porquê critica-se a nomenclatura “LGBTfobia”, uma vez que, para além do acrônimo “LGBT” ser identitário e ser instrumentalizado pelo movimento LGBT brasileiro – de cariz identitário –, tal acrônimo ontologiza, essencializa e fixa a identidade daqueles que estão ante seu domínio. Assim, a “LGBTfobia” não somente dissolve as singularidades de cada sujeito, mas embaralha e equaliza a disparidade entre violência de orientação sexual e violência de identidade de gênero. À vista disso, “‘LGBTfobia’ é um conceito que ainda carece de muita exploração teórica, problematização conceitual e, possivelmente, uma ressignificação política.” (PEIXOTO, 2018, p. 9).

Outrossim, critica-se o acrônimo “LGBTI” e a nomenclatura “LGBTIfobia” que aspiram imiscuir os intersexuais4 à violência contrária às orientações sexuais e identidades de

gênero não hegemônicas. Ora, os sujeitos intersexuais, para além de não aspirarem integrar-se à “população LGBT”, possuem suas singularidades em decorrência não de orientação sexual e identidade de gênero, mas da diferença corporal.

Isso posto, a violência homotransfóbica não é oriunda de uma fobia psíquica, patológica e individual, tracejada por sentimentos e emoções negativas como o medo, por exemplo, uma vez que compreendê-la tão somente sob o prisma da fobia individual esvazia o alicerce e o horizonte estrutural dessa violência. A violência homotransfóbica não se inicia e se finda em um ato violento interpessoal contrário a gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, visto que, para além de ser individual, é institucional e simbólica, sendo integrada por discursos, saberes e poderes que se vinculam às estruturas e às relações de poder.

Em concordância com a teoria queer, a ordem sexual hegemônica prognostica uma orientação sexual heterossexual e uma identidade de gênero cisgênero. A heterossexualidade e

4 Os intersexuais são sujeitos que possuem diferenças de atributos sexuais, como a genitália, os cromossomos, as

gónadas, os hormônios, os caracteres genéticos etc., o que estorva suas compreensões por intermédio do binarismo de gênero homem versus mulher. Uma vez que esses sujeitos desmantelam o binarismo de gênero normativo, os intersexuais foram historicamente alvejados pelos discursos, saberes e poderes médicos que empreenderam as suas patologizações. Os sujeitos intersexuais são subordinados a cirurgias genitais e intervenções médicas perfeitamente prescindíveis, que tão somente aspiram retroalimentar a normatização de gênero. Sob esse prisma, a intersexualidade está para além de qualquer discurso, saber e poder médico, uma vez que há múltiplas intersexualidades, profusas, complexas e em trânsito (MACHADO, 2012).

a cisgeneridade são estruturais e, por conseguinte, normativas e compulsórias, atuando de maneira a normatizar as subjetividades dos sujeitos. Assim, por intermédio das instituições políticas, econômicas, jurídicas, médicas, midiáticas, familiares, escolares, religiosas etc., todos os sujeitos são arquitetados para serem heterossexuais e cisgêneros. É à imagem e semelhança dos heterossexuais e cisgêneros que a vida latu sensu é empreendida.

É sob esse prisma que essa ordem sexual hegemônica prognostica a lógica normativa sexo-gênero-sexualidade, onde os sujeitos, ao nascerem, terão seus gêneros asseverados em conformidade com seus sexos e, por conseguinte, suas sexualidades norteadas a sujeitos de gênero contrário. Assim, por intermédio de relações de poder, empreende-se uma citação ininterrupta desses discursos normatizadores para que ocorra um robustecimento e cristalização dessas normas. Por conseguinte, essa ordem sexual hegemônica é transpassada por identidades fixas, por binarismos sexuais e de gênero, por hierarquizações, assim como por discursos de saber e poder que naturalizam e normatizam sexo, gênero e sexualidade, de maneira a condenar, criminalizar e patologizar as orientações sexuais e as identidades de gênero não hegemônicas.

[...] as regulações de gênero são organizadas em um aparato de poder por meio do qual a produção e normatização do masculino e do feminino tomam lugar de formas variadas, como por exemplo, hormônios ou cromossomos. [...] Gênero, nesse sentido, é um aparato feito nas práticas sociais que materializam os corpos e instituem constrangimentos, mas está longe de ser algo que conduz a uma estabilidade definitiva. Tal aparato, nesse sentido, deve ser visto como um conjunto de dispositivos que criam desigualdades de poder, mas também e simultaneamente, ele é estrutura aberta às transformações. Como bem assinala Butler, gênero é uma prática de improvisação em um cenário de constrangimentos. (GREGORI, 2008, p. 579).

Por seu turno, aqueles que desmantelam a lógica normativa sexo-gênero-sexualidade são reputados como abjetos, não humanos. Assim, a violência contrária às orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas, vale dizer, a violência contrária a gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais aparenta ser mais do que justificável e legítima.

Quando se age e se deseja reproduzir a/o mulher/homem “de verdade”, desejando que cada ato seja reconhecido como aquele que nos posiciona legitimamente na ordem de gênero, nem sempre o resultado corresponde àquilo definido e aceito socialmente como atos próprios a um/a homem/mulher. Se as ações não conseguem corresponder às expectativas estruturadas a partir de suposições, abre-se uma possibilidade para se desestabilizar as normas de gênero, que geralmente utilizam da violência física ou/e simbólica para manter essas práticas às margens do considerado humanamente normal. [...] As formas idealizadas dos gêneros geram hierarquia e exclusão. Os regimes de verdade estipulam que certos tipos de expressões relacionadas com o gênero são falsos ou carentes de originalidade, enquanto outros são verdadeiros e originais, condenando a uma morte em

vida, exilando em si mesmo os sujeitos que não se ajustam às idealizações. (BENTO, 2017, p. 89-90).

A violência homotransfóbica é materializada e corporificada pela letalidade, pela hostilização, pela marginalização, pela humilhação, pela invisibilização e pela gramática simbólica heterossexual e cisgênero. Essa violência homotransfóbica contrária àqueles que possuem orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas arquiteta uma fronteira entre um “eu”, normal e legítimo, e um “outro”, abjeto e subalterno. Assim, a violência contrária a gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais atua não somente de maneira a hostilizar esses sujeitos, mas de maneira a retroalimentar a manutenção e a subsistência da ordem sexual hegemônica e sua normatividade sexo-gênero-sexualidade, robustecendo-as e cristalizando-as. À vista disso, a violência homotransfóbica está para além de ser tão somente um ato interpessoal, psíquico e/ou patológico, uma vez que é estrutural e institucional. A violência homotransfóbica é o próprio fragmento fulcral da ordem sexual hegemônica, de maneira que não há uma ordem sexual hegemônica sem uma violência homotransfóbica que arquitete a manutenção da normatividade sexo-gênero-sexualidade.

É nessa significação que o ódio se reputa como elementar da violência homotransfóbica. O ódio contrário a quem desmantela a normativa sexo-gênero-sexualidade, o ódio contrário aos seres abjetos, reverbera na ojeriza, no asco, na violência e, ao fim, no aniquilamento, físico ou simbólico, de quem não é compreendido como ser humano. Esse ódio retroalimenta a hegemonia do grupo violentador, perpetuando as hierarquias entre os sujeitos. Assim, a violência homotransfóbica é, outrossim, uma violência de ódio5.

É ante essa compreensão acerca da violência homotransfóbica que na seção subsequente investiga-se como o direito brasileiro e a justiça brasileira têm compreendido não somente gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, mas a violência homotransfóbica no país, assim como a sua criminalização em distinto. Assim, investiga-se o procedimento da criminalização da homotransfobia no Brasil, como o Supremo Tribunal Federal, por intermédio dos discursos de seus ministros, materializou não somente a violência homotransfóbica e sua criminalização, mas sexo, gênero e sexualidade, vulnerabilidade, precariedade e tutela, assim como demais marcadores sociais da diferença, como raça, por exemplo.

5 Uma compreensão jurídica acerca dos crimes de ódio assevera que esses crimes são agravantes penais de crimes

já tipificados em legislação penal e que não modificam seu âmago. Os crimes de ódio são contrários a um grupo social, materializando-se em um preconceito de raça, etnia, gênero e identidade de gênero, orientação sexual, nacionalidade, religião etc. Assim, a punição mais austera, ponderada pelo magistrado na aplicação da pena, fundamentar-se-ia pela maior reprovabilidade da conduta do transgressor em decorrência de seu preconceito (SOUZA, 2018).

4 VIOLÊNCIA HOMOTRANSFÓBICA, DIREITO, DISCURSO JUDICIAL E