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4 VIOLÊNCIA HOMOTRANSFÓBICA, DIREITO, DISCURSO JUDICIAL E

4.6 Criminalização da homotransfobia desde um prisma queer

A discussão acerca da criminalização da violência homotransfóbica no Brasil, para além da maneira como foi orquestrada pelo Supremo Tribunal Federal, é complexa e tem radicalizado posicionamentos entre aqueles que se situam em conformidade com a instrumentalização do direito penal para versar acerca dessa violência, e aqueles que se situam, criticamente, em contrariedade à criminalização.

Para Ferreira, Masiero e Machado (2018), a legislação penal que criminalizasse a violência homotransfóbica no Brasil poderia ser reputada como uma legislação exemplar de um realismo de esquerda. Para as autoras, o realismo de esquerda simboliza um protótipo de política criminal discrepante do populismo punitivo, uma vez que para o realismo de esquerda a expansão do direito penal é legítima, racional e detentora de efetividade – visto que seria oriunda de uma problemática social real e de um dano a um bem jurídico notório, seria

arquitetada por sujeitos e movimentos sociais incursos em tais problemáticas, assim como não reverberaria em uma expansão carcerária. Assim, a criminalização da homotransfobia, como uma política criminal realista de esquerda, ainda que empreendesse novos tipos penais, os empreenderia de maneira legítima, racional e sob o fundamento de enfrentar uma problemática empírica que infringe os direitos humanos de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Para Carvalho (2017a), sob um prisma jurídico-penal, a instrumentalização do direito penal e a subsequente criminalização da violência homotransfóbica seria legítima desde que tão somente nomenclasse a homotransfobia qualitativamente em um nomen juris distintivo, sem recrudescer a punição. Assim, como corolário da empírica violência homotransfóbica no Brasil, a pormenorização dessa violência em um nomen juris singular, arquitetado para contemplar violências outrora criminalizadas, não reverberaria em uma expansão do direito penal, mas possuiria como virtude a remoção dessa problemática da invisibilidade jurídica.

Não vejo problemas de legitimidade jurídica ou de incompatibilidade com o projeto político-criminal garantista se a forma de nominação (nomen juris) do crime homofóbico ocorrer apenas através da identificação de determinadas condutas violentas já criminalizadas, isto é, a partir de um processo de adjetivação de certos crimes em decorrência da motivação preconceituosa ou discriminatória quanto à orientação sexual – p. ex., especificação da violência homofóbica nas estruturas típicas do homicídio, da lesão corporal, do constrangimento ilegal, do estupro. A técnica legislativa poderia ser restrita à identificação dessa forma de violência – sem qualquer ampliação de penas, objetivando exclusivamente dar visibilidade ao problema – através da remissão da sanção ao preceito secundário do tipo penal genérico [...] (CARVALHO, 2017a, p. 247, grifo do autor).

Todavia, para Carvalho (2017a), sob um prisma criminológico que está para além da legitimidade jurídico-penal, a criminalização da violência homotransfóbica teria como aptidão tão somente a reverberação de um simbolismo penal. Assim, uma vez que o direito penal não possui outros artifícios para lidar com essa problemática exceto a criminalização e o seu simbolismo, e visto a intrínseca homotransfobia do sistema de justiça criminal, a renúncia à instrumentalização do direito penal e à criminalização da violência homotransfóbica seria uma atitude revolucionária do movimento LGBT brasileiro.

No interior de uma cultura embriagada pelo punitivismo, porém, é inegável perceber que a criminalização possui um efeito simbólico. [...] Nesse sentido (e apenas no plano simbólico, sublinho), poderíamos esperar algum efeito virtuoso da criminalização da homofobia, notadamente em decorrência do papel que o direito penal ainda exerce na cultura (punitiva). [...] Em conclusão, sigo defendendo que o movimento LGBTs poderia superar essa lógica criminalizadora (vontade de punir), demonstrando aos demais movimentos sociais os riscos que a convocação do direito penal gera. E creio que seria possível abdicar do direito penal sem maiores danos às estratégias do

movimento, sobretudo porque as políticas antidiscriminatórias não punitivas de reconhecimento dos direitos civis tem sido eficazes na nominação e na exposição do problema das violências homofóbicas em todas as suas dimensões (violências simbólica, institucional e interpessoal). [...] ao negar explicitamente qualquer vínculo com o sistema penal, o movimento LGBTs estaria afirmando que a própria lógica punitiva é homofóbica, misógina e racista. Talvez essa fosse a estratégia efetivamente revolucionária em termos de ruptura com a cultura homofóbica. (CARVALHO, 2017a, p. 251-253, grifo do autor).

Para Masiero (2014), como corolário da empírica violência homotransfóbica no Brasil, a instrumentalização do direito penal seria legítima. Todavia, em concordância com Carvalho, a autora assevera que essa instrumentalização não deveria recrudescer a punição, empreendendo novos tipos penais, mas deveria arquitetar tão somente uma nomeação diferencial do crime homotransfóbico em violências outrora criminalizadas. Assim, ainda que a criminalização não atenuasse substancialmente a violência homotransfóbica, ela teria a aptidão de desnudar à ordem social que essa violência é hostil ao ponto de tornar-se crime. Sob esse prisma, o simbolismo penal seria profícuo.

O simbolismo penal é um artifício instrumentalizado pela criminologia feminista, sendo a Lei 11.340/2006, “Lei Maria da Penha”, um protótipo evidente de legislação penal simbólica. Sob esse prisma, a criminologia feminista não desejaria o recrudescimento punitivo, mas o simbolismo penal, uma vez que seu intento é publicizar a violência contrária à mulher, inserindo esse debate na ordem social e na agenda política, assim como compreendendo a violência doméstica e familiar como uma violência estrutural não privada.

Nesse contexto, a Lei 11.340/2006 (“Lei Maria da Penha”) vem a assegurar formalmente que a violência contra a mulher praticada em âmbito doméstico não reflete uma questão de ordem privada, como durante muito tempo foi vista, mas que representa uma atualização de um sistema de sexo/gênero que se mostra opressor para as mulheres e danoso ao corpo social como um todo. Visa tentar corrigir, em âmbito jurídico, os efeitos desiguais dos arranjos sociais tradicionais, marcados pela subordinação feminina, atuando também de forma simbólica, voltando-se, ainda que de forma indireta, a combater os próprios processos que geram as desigualdades. No limite em que busca corrigir os efeitos desiguais na ponta final do processo, a Lei Maria da Penha se apresenta como uma medida de discriminação positiva da mulher, objetivando acelerar o processo de concretização de seus direitos. (COUTO, 2017, p. 13-14, grifo do autor).

Todavia, o simbolismo penal delineado pela criminalização da violência homotransfóbica é passível de críticas, uma vez que essa idiossincrasia ultrapassa os ofícios legítimos do direito penal. A esfera penal não possui como intento empreender novos valores e princípios na ordem social, muito menos possui algum ofício pedagógico para a transmutação sociocultural. Asseverar a criminalização com o intento de viabilizar valores que não foram

assimilados pela ordem social é contraproducente. Assim, todo o simbolismo penal da criminalização da homotransfobia arquiteta tão somente uma falsa intuição de que algo foi feito em prol de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais (CARRARA, 2010).

A criminalização da homotransfobia no Brasil desatenta-se do fato de que a violência homotransfóbica é uma violência estrutural e não somente interpessoal. A tipificação dessa violência em uma legislação penal não possui a aptidão de empreender uma transmutação estrutural, institucional e sociocultural. Outrossim, a instrumentalização do direito penal para versar acerca dessa violência desatenta-se da violência institucional. Poderia um sistema heteronormativo atuar na salvaguarda de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais? Esses sujeitos, ao reivindicarem a expansão do direito penal, recrudescendo-o e tornando-o mais punitivo, barganham com um sistema que é ele mesmo historicamente homotransfóbico e que, por perpetuar a violência homotransfóbica, nunca foi apto em enfrentá-la e atenuá-la.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2015, p. 246-247) tem asseverado que a criminalização da violência homotransfóbica possui empecilhos a datar da própria violência institucional e da subsequente ineficácia da legislação e tutela penal.

A implementação das disposições legais que estabelecem crimes de ódio ou agravantes por crimes cometidos por preconceito foi criticada por acadêmicos e organizações da sociedade civil por várias razões. Em primeiro lugar, após promulgadas estas leis, os Estados geralmente falham na adoção de outras medidas complementares para combater a violência por preconceito. Além disso, a implementação destas medidas é frequentemente problemática, em virtude das ineficiências e obstáculos que existem no acesso à justiça sobre estes crimes, incluindo investigações predominantemente preconceituosas e a falta de treinamento da polícia, médicos legais, promotores e juízes. [...] Por exemplo, a Comissão observou que, apesar do artigo 58 do Código Penal colombiano reconhecer a orientação sexual da vítima como uma circunstância agravante, uma organização da sociedade civil informou que este dispositivo legal não está sendo aplicado devido ao preconceito que prevalece no sistema de administração de justiça. Em dezembro de 2014, uma organização informou a CIDH que dos 730 homicídios de pessoas LGBT documentados entre 2006 e 2014, não havia sequer uma condenação reconhecendo a orientação sexual ou a identidade de gênero como um motivo ou circunstância agravante.

Por seu turno, as ponderações de Alessandro Baratta (2011), expoente da criminologia crítica da década de 1970, ao investigar as práxis do sistema de justiça criminal e seus procedimentos de criminalização, asseveram o vínculo de funcionalidade e seletividade intrínsecas às instituições do sistema de justiça criminal que retroalimentam, para além de violências, dores e sofrimentos, as desigualdades socioeconômicas de classe, alvejando pobres e periféricos, e de raça, alvejando negros. Assim, a criminologia crítica já compreendia que a criminalização possui uma diminuta efetividade concerne à atenuação das violências de uma

ordem social, uma vez que o direito penal não somente atua de maneira seletiva, perpetuando a manutenção das desigualdades e hierarquias socioeconômicas estruturais, mas empreende, outrossim, uma função ativa de produtividade dessa desigualdade.

Por conseguinte, a criminologia crítica compreende que, uma vez que cada violência possui singularidades e complexidades distintivas, os estratagemas abstratos e simplistas que tão somente aspiram a criminalização não atenuam a violência, assim como não mitigam os empecilhos de uma ordem social, visto a ineficácia da tutela penal.

É impossível pensar, p. ex., que a mesma estratégia (criminalização) produza efeitos significativos na redução de situações de violência tão distintas [...]. A possibilidade de redução das violências a níveis razoáveis implica um processo complexo de análise de cada situação-problema em seu local de emergência, na aproximação com os atores envolvidos e em intervenções individualizadas em diferentes planos (individual, familiar, social e econômico). A lei penal é apenas uma – e provavelmente a menos eficaz e mais falha – das estratégias. (CARVALHO, 2017a, p. 251).

Outrossim, o que aparenta ser um instrumento progressista de salvaguarda e de enfrentamento da violência homotransfóbica pode robustecer as hierarquias do universo das orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas. Uma vez que dados sujeitos são mais violentados do que outros como corolário da articulação entre os marcadores sociais da diferença, ou como corolário de performatividades não hegemônicas e não alicerçadas no binarismo de gênero masculino versus feminino, a legislação penal poderia apoderar-se da hierarquização entre esses sujeitos, salvaguardando uns e violentando outros. Visto que travestis, transexuais, gays efeminados, lésbicas masculinizadas, assim como pobres, periféricos e negros são os mais alvejados pela violência homotransfóbica, esses sujeitos abjetos seriam aqueles que não possuiriam a salvaguarda de suas vidas pelo Estado.

Daí o fenômeno das fobias contra o deslocamento dos gêneros em travestis, transexuais ou mesmo em lésbicas masculinas ou gays femininos, as quais engendram diversas violências [...] É a este espaço da abjeção que são relegados os/as não-brancos, pobres, “afeminados”, “masculinizadas”, em suma, os/as queer. (MISKOLCI; PELÚCIO, 2012, p. 23).

Por seu turno, por intermédio de uma abordagem queer, faz-se críticas categóricas à instrumentalização das estruturas estatais e das instituições do sistema de justiça criminal para criminalizar a violência homotransfóbica e tutelar a vida de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Uma vez que queer é, dentre outros, uma interpelação à normatização, contemplando as normatizações oriundas dos dispositivos heteronormativos estatais, instrumentalizar as instituições do sistema de justiça criminal é crer no Estado como o próprio ator da normatização e da violência homotransfóbica.

Os artifícios jurídico-penais, para além de serem heteronormativos, não empreendem uma real modificação estrutural, uma vez que instrumentalizar o direito penal simboliza conferir à heterossexualidade e à cisgeneridade uma “zona de conforto”, não complexificando- as. Assim, para enfrentar a violência homotransfóbica, relega-se a heterossexualidade e a cisgeneridade no cômodo discurso de que são orientações sexuais e identidades de gênero legítimas e naturais, outorgadas pela biologia e por Deus. Todavia, para os estudos queer, a homotransfobia só poderá findar-se quando a heteronormatividade, a heterossexualidade e a cisgeneridade, como orientações sexuais e identidades de gênero normativas e compulsórias, forem interpeladas e complexificadas em nível estrutural (COLLING, 2011).

Para uma perspectiva queer, enquanto a heterossexualidade não for problematizada como uma imposição, como uma construção, a homofobia e a falta de respeito à diversidade sexual e de gênero não vão acabar. Portanto, nossas políticas e estratégias não podem apenas afirmar identidades homossexuais, mas também problematizar constantemente as identidades heterossexuais. (COLLING, 2011, p. 15).

Sob esse prisma, Miskolci (2011) assevera que as reivindicações do movimento LGBT brasileiro poderiam contrapor-se às demandas por criminalização e asserção identitária para, assim, replicar a violência institucional, transmutando a experiência da violência homotransfóbica em poder político de agência e resistência, assim como interpelando as normativas hegemônicas sexuais e de gênero.

Ao contrário de outras experiências históricas e nacionais, no Brasil, o movimento tem encontrado seu denominador comum em uma agenda anti- homofobia, não apenas na obtenção de direitos a partir de modelos oferecidos pelo Estado. A luta anti-homofobia poderia sofisticar-se e voltar-se contra o heterossexismo institucional efeminofóbico que ainda permite que a experiência de ser chamado, leia-se, ser xingado de bicha, gay, sapatão, travesti, anormal ou degenerad@ seja a experiência fundadora da descoberta da homossexualidade ou do que nossa sociedade ainda atribui a ela, o espaço da humilhação e do sofrimento. Ao invés de transformar a experiência da discriminação em força política de resistência e questionamento da heteronormatividade, parece mais forte, no contexto brasileiro, a manutenção de uma perspectiva que busca conciliar a armadilha identitária da qual o movimento parece não saber sair. Daí a estratégia que subdivide a homofobia nas chamadas transfobia, homofobia, lesbofobia, apelando para a proteção e a tolerância de identidades ao invés de problematizar as normas sexuais e, sobretudo, as de gênero. (MISKOLCI, 2011, p. 48).

Assim, uma vez que a violência homotransfóbica está para além de ser uma violência interpessoal, visto que é estrutural e oriunda de uma ordem sexual hegemônica e heteronormativa, a criminalização da homotransfobia não reverbera em efeitos profícuos concernentes à atenuação dessa violência, mormente ao desmantelamento da

heteronormatividade. Para além de uma criminalização, deve-se “desconstruir o processo pelo qual alguns sujeitos se tornam normalizados e outros marginalizados, tornando evidente a heteronormatividade, demonstrando o quanto é necessária a constante reiteração das normas sociais regulatórias a fim de garantir a identidade sexual legitimada. [...] Pôr em questão as classificações e os enquadramentos.” (LOURO, 2018, p. 46).

O horizonte da contrapartida penal não responde à complexidade estrutural das matrizes de opressão cisheteronormativas, porque não atinge os valores sociais e culturais a que se relacionam nem na sua superfície. Além disso, a promessa da prevenção em termos liberais clássicos é falaciosa. Primeiro, porque antes da decisão comentada, os instrumentos penais de responsabilização plenamente aplicáveis já demonstravam a sua insuficiência. Segundo, porque as agências do sistema penal têm cumprido historicamente a função de reproduzir as opressões estruturais da nossa sociedade – entre as quais incluem-se as de gênero e sexualidade, imbricadas sobretudo ao racismo. Admitir ser a via da criminalização forma do controle seletivo preferencial de corpos negros e de vitimização da população LGBTQI+ e mesmo assim demandar punição é negociar proteção a partir da violação de direitos de outros e, ainda, das mesmas minorias. (FERNANDES, 2019, p. 28, grifo do autor).

Por intermédio da “teoria queer of color”11 – uma ramificação da teoria queer que, para

além de concernir às categorias de sexualidade e gênero, articula-as à raça, etnia, nacionalidade etc. –, a criminalização da homotransfobia, um dos pilares políticos do movimento LGBT, reverbera no recrudescimento do sistema de justiça criminal. Esse recrudescimento punitivo possui como intento alvejar sujeitos pobres, periféricos, negros, imigrantes, assim como os inaptos a performatizarem as normas hegemônicas de sexualidade e gênero. Assim, gays, lésbicas, bissexuais, travestis e/ou transexuais pobres, periféricos, negros, imigrantes ou desconformes das normas hegemônicas de sexualidade e gênero, nas hipóteses em que são

11 A “teoria queer of color” contempla a heteronormatividade atrelada a outras estruturas e violências, como o

racismo, a misoginia, a xenofobia etc. Como uma teoria queer “não branca”, a teoria queer of color assevera que sexualidade e gênero não podem estar apartados de temáticas e problemáticas como as relações pós-colonialistas, nacionalismos e imperialismos, globalização, neoliberalismo e neoconservadorismo, diásporas e migrações, robustecimento de fronteiras, criminalização de pobres, negros e imigrantes, encarceramento em massa, militarização da violência estatal, guerras, violações de direitos humanos etc. Assim, a teoria queer of color, para além de concernir à gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, contempla todos os sujeitos abjetos detentores de vidas precárias do mundo contemporâneo (COHEN, 1997; ENG; HALBERSTAM; MUÑOZ, 2005; HARITAWORN, 2014; HARITAWORN; KUNTSMAN; POSOCCO, 2014; REA; AMANCIO, 2018). Por conseguinte, a teoria queer of color critica o “homonacionalismo”, categoria arquitetada por Jasbir Puar, em que alguns Estados instrumentalizam a tolerância e a aceitação da “população LGBT” como balizas para a asserção de suas legitimidades e soberania nacional. “O homonacionalismo corresponde à ascensão em simultâneo do reconhecimento legal, de consumidor e representativo dos sujeitos LGBTQ, e à restrição das prestações sociais, dos direitos dos imigrantes e da expansão do poder do Estado nas tarefas de supervisão, detenção e deportação.” Assim, vive-se em um “mundo cada vez mais homonacionalista – um mundo que avalia a pertença nacional com base no tratamento dos seus homossexuais.” (PUAR, 2015, p. 299-310).

vítimas de violência homotransfóbica, não obtêm a salvaguarda das instituições do sistema de justiça criminal, mas tornam-se alvos de criminalização (HARITAWORN, 2014).

Em concordância com Haritaworn (2014), nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, as legislações que criminalizam a violência homotransfóbica possuem como estorvo a criminalização da população pobre, periférica, negra, latino-americana, árabe e muçulmana. Nesses países, o infrator é reputado como um sujeito que é oriundo de uma família imigrante problemática, em que os sujeitos não são aptos a controlarem suas subjetividades violentas. Assim, as legislações que criminalizam a homotransfobia empreendem um binarismo entre os “bons LGBTs ocidentais” e o “resto”.

Assim, sob essa compreensão, ainda que a violência homotransfóbica no Brasil seja uma violência empírica, instrumentalizar o direito penal como artifício para enfrentar a homotransfobia e tutelar a vida de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, possui infortúnios. Barganhar e recorrer aos instrumentos que historicamente têm violentado esses sujeitos é contraproducente. À vista disso, o ponto não é ser conivente ou não à criminalização da homotransfobia, uma vez que esse binarismo é um tanto quanto simplista e não compreende a problemática da violência homotransfóbica em sua totalidade. Deve-se compreender que o direito penal e as instituições do sistema de justiça criminal, para além das violências que empreendem, não possuem efetividade para arquitetar uma legítima e evidente modificação na ordem social, assim como um desmantelamento da ordem sexual hegemônica e da heteronormatividade, essas as genuínas empreendedoras da violência homotransfóbica.

Ora, Audre Lorde já asseverara, no ano de 1984, que “the master’s tools will never

dismantle the maste’s house” – “as ferramentas do mestre nunca vão desmantelar a casa-

5 CONCLUSÃO

A ordem sexual hegemônica prognostica uma orientação sexual heterossexual e uma identidade de gênero cisgênero, que, por seu turno, são normativas e compulsórias. Essa ordem sexual hegemônica alicerça-se em uma lógica normativa sexo-gênero-sexualidade, onde os sujeitos, a datar de seus nascimentos e no transcorrer de suas vidas, têm seus gêneros asseverados em concordância com seus sexos, assim como suas sexualidades norteadas a sujeitos de gênero contrário. A ordem sexual hegemônica é arquitetada e retroalimentada por intermédio da heteronormatividade, das identidades fixas, dos binarismos sexuais e de gênero, assim como dos discursos de saber e poder que naturalizam e normatizam sexo, gênero e sexualidade, de maneira a condenar, criminalizar e patologizar as orientações sexuais e as identidades de gênero não hegemônicas.

À vista disso, sexo, gênero e sexualidade são dispositivos heteronormativos, vale dizer, vetores de poder que não são oriundos tão somente de uma materialidade natural/biológica, mas de relações de poder, discursos normatizadores, artifícios simbólicos e arranjos políticos que empreendem ininterruptamente, ainda que inconscientemente, uma citação da lógica normativa sexo-gênero-sexualidade. Assim, por serem estruturais, institucionais, normativas e compulsórias, a heterossexualidade e a cisgeneridade estão cristalizadas e robustecidas no