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4 VIOLÊNCIA HOMOTRANSFÓBICA, DIREITO, DISCURSO JUDICIAL E

4.3 Inspirações e ponderações teórico-metodológicas

Panfil e Miller (2015), ao aludirem acerca dos métodos qualitativos da criminologia queer, asseveram a substancialidade de se investigar os objetos de estudo ante a conjuntura em que os vínculos sociais entre os sujeitos se articulam. Essa investigação ocorreria por intermédio dos discursos, das narrativas e dos relatos de sujeitos, uma vez que tais discursos são enunciações valorativas que conferem compreensões acerca de como os sujeitos orquestram e assimilam suas vivências e experiências. Assim, um dos métodos qualitativos de pesquisa para se lograr tal intento seria a etnografia.

Visto que o escopo deste estudo é compreender como a violência homotransfóbica foi contemplada pelo poder judiciário brasileiro por intermédio de sua criminalização pelo Supremo Tribunal Federal, este estudo não instrumentaliza a etnografia como método de pesquisa, mas a análise crítica do discurso. Para compreender como sexo, gênero, sexualidade, violência homotransfóbica e a sua criminalização foram contemplados e materializados no ínterim do processo judicial da criminalização da homotransfobia no Brasil, aspira-se apreender quais enquadramentos discursivos, fundamentos e assertivas foram instrumentalizados pelos ministros do Supremo Tribunal Federal. Ora, “geralmente esses tipos de análise não se restringem a apenas enumerar os argumentos empregados no julgamento, mas dão um passo adiante para analisar criticamente o modo pelo qual as decisões são formadas nos órgãos julgadores.” (PALMA; FEFERBAUM; PINHEIRO, 2012, p. 165).

Em concordância com Foucault (2013) e seu pós-estruturalismo, o direito pode ser compreendido como vetor de artifícios e dispositivos de normatização. Por conseguinte, para o autor, a verdade habita todo discurso judicial, uma vez que todo discurso judicial se estrutura em torno de uma verdade judiciária. Assim, no empreendimento da verdade judiciária, saber e poder estão atrelados, vale dizer, a verdade judiciária se alicerça na relação de saber-poder. À

vista disso, a verdade judiciária – precipuamente as verdades judiciárias penais –, alicerçada na relação de saber-poder, arquiteta novos discursos judiciais, novas práxis judiciárias, novos dispositivos normatizadores, assim como novas subjetividades.

As práticas judiciárias [...] me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade que merecem ser estudadas. Eis aí a visão geral do tema que pretendo desenvolver: as formas jurídicas e, por conseguinte, sua evolução no campo do direito penal como lugar de origem de um determinado número de formas de verdade. Tentarei mostrar-lhes como certas formas de verdade podem ser definidas a partir da prática penal. (FOUCAULT, 2013, p. 21).

Os discursos judiciais, estruturados em torno de uma verdade judiciária, não arquitetam relações de coerência e continuidade naturais, mas relações de luta, violência e poder. Assim, para se compreender a verdade, o saber, assim como os discursos judiciais, deve-se compreender as próprias relações de poder.

E assim como entre instinto e conhecimento encontramos não uma continuidade, mas uma relação de luta, de dominação, de subserviência, de compensação etc., da mesma forma, entre o conhecimento e as coisas que o conhecimento tem a conhecer não pode haver nenhuma relação de continuidade natural. Só pode haver uma relação de violência, de dominação, de poder e de força, de violação. O conhecimento só pode ser uma violação das coisas a conhecer e não percepção, reconhecimento, identificação delas ou com elas. [...] Se quisermos realmente conhecer o conhecimento, saber o que ele é, aprendê-lo em sua raiz, em sua fabricação, devemos nos aproximar, não dos filósofos, mas dos políticos, devemos compreender quais são as relações de luta e de poder. E é somente nessas relações de luta e de poder – na maneira como as coisas entre si, os homens entre si se odeiam, lutam, procuram dominar uns aos outros, querem exercer, uns sobre os outros, relações de poder – que compreendemos em que consiste o conhecimento. (FOUCAULT, 2013, p. 27-31).

Sob esse prisma, os discursos judiciais arquitetados pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, estruturados em torno de uma verdade judiciária, alicerçados na relação de saber-poder, assim como detentores de relações de luta, violência e poder em seu ínterim, arquitetam novas verdades, novos saberes e novas subjetividades.

Em concordância com a teoria queer, os sujeitos são empreendidos por intermédio de relações de poder, artifícios simbólicos, arranjos políticos, assim como discursos normatizadores. Sob esse prisma, os corpos possuem discursos em seu ínterim. Para Butler, “discursos, na verdade, habitam corpos. Eles se acomodam em corpos; os corpos na verdade carregam discursos como parte de seu próprio sangue. E ninguém pode sobreviver sem, de alguma forma, ser carregado pelo discurso.” (PRINS; MEIJER, 2002, p. 163). Assim, os discursos instrumentalizados pelo STF no julgamento acerca da criminalização da

homotransfobia no Brasil imiscuem-se aos corpos, assim como reverberam nas vivências e experiências de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais no país.

Concernente à análise crítica do discurso, inspirada pelo pós-estruturalismo, precipuamente por Foucault e suas assertivas acerca do vínculo entre saber e poder, compreende-se que os discursos, arquitetados por intermédio de relações de poder, empreendem a realidade, as estruturas e as instituições hegemônicas de uma ordem social. Assim, se as estruturas e as instituições arquitetam os discursos, em contrapartida são também arquitetadas por esses mesmos discursos. “O discurso afeta as estruturas sociais e, ao mesmo tempo, está determinado por elas. Por conseguinte, o discurso contribui para a manutenção como para a mudança social.” (IÑIGUEZ, 2004, p. 150). À vista disso, a análise crítica do discurso devota-se a investigar os discursos que perpetuam o poder e que reverberam em dominação, hostilização, hierarquização e assimetrias sociais (IÑIGUEZ, 2004; MARTÍN ROJO, 2004; NOGUEIRA, 2001, 2008; VAN DIJK, 2004).

Um dos objetivos da lingüística crítica é investigar estruturas e relações de poder presentes no discurso. Os processos lingüísticos são produto de estruturas de dominação, nas quais o poder é distribuído assimetricamente. Essas desigualdades de poder afetam a produção de textos, e consequentemente afetam também a produção de sujeitos sociais. (FIGUEIREDO, 1997, p. 44).

Por conseguinte, uma vez que o direito é uma estrutura normativa que arquiteta saberes- poderes normatizadores, aspira-se compreender as significâncias que o Supremo Tribunal Federal conferiu à violência homotransfóbica por intermédio dos discursos judiciais. Os onze ministros do Supremo Tribunal Federal, como sujeitos detentores de evidente capital simbólico e de discursos com categóricos vínculos de saber-poder normatizador, materializaram sexo, gênero, sexualidade, violência homotransfóbica e criminalização. Assim, quais enquadramentos discursivos materializaram sexo, gênero, sexualidade e violência homotransfóbica? Quais enquadramentos discursivos materializaram vulnerabilidade, precariedade e tutela? Tais enquadramentos discursivos potencializaram a vulnerabilidade e a precariedade de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais? Como a disposição da abjeção e da tutela foram empreendidas pelos enquadramentos discursivos? Homotransfobia, orientação sexual e identidade de gênero foram articulados a outras violências e marcadores sociais da diferença?

Sob esse prisma, foram analisados os discursos dos votos de sete ministros, vale dizer, ministros Celso de Mello, relator da ADO 26, Alexandre de Morais, Edson Fachin, Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski. Os/as ministros/as

Carmen Lúcia, Dias Tófoli, Luiz Fux e Rosa Weber não oportunizaram os documentos de seus referentes votos ao público, ainda que se tenha requisitado aos seus gabinetes por intermédio de correspondência via e-mail.

Ademais, ainda que o julgamento em estudo esteja publicizado na plataforma digital de vídeos do YouTube na conta oficial do STF, preferiu-se não instrumentalizar tais vídeos para analisar os discursos dos votos dos ministros, mas tão somente os discursos documentados. A pesquisa documental viabiliza a investigação, a interpretação e o diálogo com documentos e seus enunciadores, seus saberes e suas verdades oficializadas. Assim, os documentos, mais do que a própria voz e mais do que a própria fala, tornam-se agentes discursivos que dialogam com seus interlocutores, viabilizando interpretações, reflexões, inspirações e ponderações críticas.

Enfim, a análise crítica do discurso aqui empreendida instrumentaliza, como referencial teórico, as ponderações da teoria queer, precipuamente as ponderações de Butler. Compreende- se que o direito, como vetor e locus de normatização e poder, viabiliza múltiplos artifícios e referenciais para se empreender a análise do discurso. Todavia, é ante os princípios norteadores dos estudos queer que as investigações, as interpretações e as reflexões críticas acerca dos discursos judiciais dos ministros são aqui engendradas.

4.4 DISCURSO JUDICIAL, CRIMINALIZAÇÃO E A MATERIALIZAÇÃO DA