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Queer no Brasil: entre pós-colonialismos e interseccionalidades/articulações

INTERSECCIONALIDADES/ARTICULAÇÕES

Ante a conjuntura brasileira, os marcadores sociais da diferença de gênero, sexualidade, raça, etnia e classe articulam-se de maneira singular como corolário do histórico de colonização, escravidão, assim como das suas heranças e reminiscências no país. Assim, se as vivências e experiências no Brasil são díspares das conjunturas dos autores da teoria queer e da criminologia queer, em contrariedade a uma transportação acrítica e simplista de teorias, “temos que construir e afinar nossas próprias ferramentas conceituais e teóricas, justamente para pensar essa realidade particular.” (PELÚCIO, 2012, p. 413). Ora, se há uma multiplicidade de problemáticas que devem ser investigadas em conformidade com a sua conjuntura e singularidade, “deve-se fomentar a coexistência, muitas vezes tensa, de inúmeras perspectivas teóricas que auxiliem em sua compreensão.” (CARVALHO, 2017b, p. 223).

Por intermédio dessa compreensão e da singular conjuntura brasileira, a teoria queer e a criminologia queer podem ser atreladas às teorias do pós-colonialismo e da interseccionalidade/articulação.

A nomenclatura “pós-colonialismo” possui duas compreensões distintivas. A primeira compreensão concerne ao lapso histórico-temporal subsequente aos procedimentos de descolonização das nações do “terceiro-mundo”, vale dizer, procedimentos de independência, libertação e emancipação dos países dominados pelo colonialismo, neocolonialismo e imperialismo europeu. A segunda compreensão concerne à congregação de abordagens teóricas florescidas a datar da década de 1980, precipuamente os estudos culturais das universidades norte-americanas e britânicas (BALLESTRIN, 2013).

Enquanto teoria, o pós-colonialismo congrega uma multiplicidade de abordagens que conferem notoriedade às hodiernas heranças e reminiscências coloniais que integram o poder e o saber contemporâneos. Os estudos pós-coloniais asseveram que, ainda que com o fim da ordem colonial oficial e suas administrações políticas, perdura-se, hodiernamente, uma dominação colonial político-econômica e sociocultural que reflete o vínculo colonizador- colonizado, assim como uma sociabilidade autoritária. À vista disso, o prefixo “pós” não prognostica um “depois” (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2017).

Os estudos chancelados sob a rubrica do pós-colonialismo asseveram que a modernidade – ocidental, eurocêntrica e iluminista –, ao arquitetar os protótipos de liberdade, igualdade, emancipação e cidadania – categorias árduas para o iluminismo –, empreendeu, concomitantemente, a aniquilação de povos não europeus. Por conseguinte, critica-se a metanarrativa dessa modernidade hegemônica que se alicerçou na hostilização e violência de múltiplas vidas e modernidades para além da Europa, reputando-as como “outros” subalternos (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2017).

Ora, em uma ordem social colonizada em que o Estado é estrangeiro, o mercado possui seres humanos como mercadorias – escravos –, a comunidade é aniquilada em razão de um capitalismo, assim como essa mesma comunidade é suplantada por colonos e seus descendentes, não há que se asseverar civilização, mas incontestável violência genocida (SANTOS, 2008).

Stuart Hall, representante célebre dos “Estudos Culturais Britânicos” e do pós- colonialismo, assevera que:

Na narrativa reencenada do pós-colonial, a colonização assume o lugar e a importância de um amplo evento de ruptura histórico-mundial. O pós-colonial se refere à “colonização” como algo mais do que um domínio direto de certas regiões do mundo pelas potências imperiais. Creio que significa o processo inteiro de expansão, exploração, conquista, colonização e hegemonia imperial que constitui a “face mais evidente”, o exterior constitutivo, da modernidade capitalista europeia e, depois, ocidental, após 1492. Essa renarração desloca a “estória” da modernidade capitalista de seu centramento europeu para suas “periferias” dispersas em todo o globo; a evolução pacífica para a violência imposta [...] (HALL, 2003, p. 112-113).

Por seu turno, concernente à concatenação entre pós-colonialismo e teoria queer, há similitudes, uma vez que ambas as teorias instrumentalizam a abordagem teórico-filosófica pós- estruturalista, precipuamente no que versa a compreensão dos discursos como artifícios simbólicos empreendidos por intermédio de relações de poder, assim como a contrariedade aos binarismos. Assim, uma vez que os binarismos coloniais arquitetam, na esfera discursiva, e legitimam, na esfera política, uma hierarquização entre o ocidente e o “outro”, o pós- colonialismo desmantela os binarismos coloniais arquitetados pela modernidade ocidental, reexaminando a diferença colonial sem recorrer à falácia das dicotomias modernas: “eu-outro”, “ocidente-oriente”, “norte-sul”, “metrópole-colônia”, “colonizador-colonizado” etc. À vista disso, as categorias binárias “colonizador-colonizado” tornam-se interpenetráveis, obscurecendo-se e fusionando-se (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2017).

O termo [pós-colonial] se refere ao processo geral de descolonização que, tal como a própria colonização, marcou com igual intensidade as sociedades colonizadoras e as colonizadas (de formas distintas, é claro). Daí a subversão do antigo binarismo colonizador/colonizado na nova conjuntura. De fato, uma das principais contribuições do termo “pós-colonial” tem sido dirigir nossa atenção para o fato de que a colonização nunca foi algo externo às sociedades das metrópoles imperiais. Sempre esteve profundamente inscrita nelas – da mesma forma como se tornou indelevelmente inscrita nas culturas dos colonizados. [...] As diferenças entre as culturas colonizadora e colonizada permanecem profundas. Mas nunca operam de forma absolutamente binária, nem certamente o fazem mais. (HALL, 2003, p. 108).

As similitudes entre pós-colonialismo e teoria queer vão além. O pós-colonialismo assevera que racismo e sexismo são dimensões intrínsecas à colonialidade, o que historicamente reverberou em uma “racialização”, “generificação” e “sexualização” dos corpos. À vista disso, o pós-colonialismo confere ao queer a compreensão da subsistência de um poder que corporifica o gênero e a sexualidade articulados à raça, repercutindo na naturalização das hierarquias raciais e sexuais. Por seu turno, o queer desnuda ao pós-colonialismo como a história e a lógica da colonialidade é masculina e heterossexual. Assim, se os corpos da colônia são racializados, generificados, sexualizados e, por conseguinte, abjetos, vale dizer, se há uma racialização do sexo e uma sexualização da raça que arquiteta seres abjetos, não há como atuar em contrariedade à colonialidade olvidando-se dos corpos queer. Na América Latina, se gênero e sexualidade atrelam-se à história pós-colonial e, por conseguinte, à raça, aqui, ser queer é igualmente ser pós-colonialista (MISKOLCI, 2009; PELÚCIO, 2012; PEREIRA, 2015).

[...] os processos normalizadores sempre operaram interseccionalmente tendo as categorias raça e sexualidade como eixo formador simultâneo de identidades hegemônicas e subalternas. O processo integrado de sexualização da raça e racialização do sexo expõe a normalização que caracteriza a história de sociedades pós-coloniais, em especial as que convivem com o legado da escravidão como o Brasil e os Estados Unidos. Nestes países, cada um com suas especificidades, o imperativo nacional de constituição de uma comunidade imaginária resultou em formas distintas e aparentemente contraditórias de organização social, por meio da regulação da sexualidade. O sexo é o principal meio de articulação entre indivíduo e sociedade, daí ter sido o foco dos dispositivos reguladores das relações “raciais”, entre classes e com o “estrangeiro”. Em outras palavras, não há questão sobre nacionalidade que não se confunda com raça e sexualidade. (MISKOLCI, 2009, p. 176).

Por conseguinte, para o pós-colonialismo a instrumentalização de abordagens teóricas que contemplam, de maneira conjuntural e relacional, as práxis articulatórias entre marcadores sociais da diferença, é substancial. Assim, os marcadores sociais da diferença, como categoriais de diferenciação que transpassam o social, quando congregados e articulados, reverberam em vivências e experiências na vida dos sujeitos (PISCITELLI, 2008, 2012, 2013).

Em concordância com Avtar Brah (2006; BRAH; PHOENIX, 2004), as articulações entre os marcadores sociais da diferença – gênero, sexualidade, raça, etnia, classe, nacionalidade, religião etc. – devem ser compreendidas como relações conjunturais, dinâmicas e relacionais, que se articulam em conjunturas historicamente distintivas. Assim, deve-se atentar não somente para as (micro)subjetividades, mas, outrossim, para as (macro)estruturas para se compreender as dinâmicas de poder e as diferenciações sociais que singularizam as vidas dos sujeitos.

Nosso gênero é constituído e representado de maneira diferente segundo nossa localização dentro de relações globais de poder. Nossa inserção nessas relações globais de poder se realiza através de uma miríade de processos econômicos, políticos e ideológicos. [...] Cada descrição está referida a uma condição social específica. Vidas reais são forjadas a partir de articulações complexas dessas dimensões. [...] articulação não é a simples junção de duas ou mais entidades discretas. Melhor, é um movimento transformador de configurações relacionais. A procura por grandes teorias que especifiquem as interconexões entre racismo, gênero e classe foi bem menos do que produtiva. Melhor construí-las como relações historicamente contingentes e específicas a determinado contexto. Daí que podemos focalizar um dado contexto e diferenciar entre a demarcação de uma categoria como objeto de discurso social, como categoria analítica e como tema de mobilização política, sem fazer suposições sobre sua permanência ou estabilidade ao longo do tempo e do espaço. (BRAH, 2006, p. 341-353).

As articulações entre gênero, sexualidade, raça, etnia e classe são idiossincrasias substanciais que reverberam no empreendimento de si, nas viabilidades e ascensões profissionais, na obtenção de posses e propriedades, no acesso íntegro à saúde e à justiça, no itinerário educacional, no ingresso e trânsito de espaços públicos, nas vivências relacionais e afetivo-sexuais, nas vulnerabilidades, assim como na violência.

É sob esse prisma que Mason (2002) assevera que diferentes marcadores sociais da diferença atuam mutuamente, de maneira articulada e em simultaneidade, nas vivências e experiências da violência homotransfóbica. Assim, para a autora, gênero, sexualidade, raça e classe, por exemplo, ao atuarem em articulação em uma conjuntura distintiva, empreendem violências homotransfóbicas díspares a datar das diferenciações e assimetrias entre gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais.

Em concordância com Junqueira (2007, p. 155-159):

No âmbito da construção social dos corpos, a ordem da sexualidade não se constitui isoladamente, mas ao sabor das dinâmicas das posições e oposições que organizam todo o mundo social. Desse modo, marcadores identitários relativos a “sexo”, “gênero”, “orientação sexual”, não se constroem separadamente e sem fortes pressões sociais concernentes a outros marcadores sociais, como “cor”, “raça”, “etnia”, “corpo”, “idade”, “condição físico-

mental”, “classe”, “origem” (social, geográfica, etc.), entre outros. Por isso, tanto estes quanto aqueles não poderiam ser tomados de maneira isolada e sem levar em consideração os contextos de produção de seus significados, os múltiplos nexos que estabelecem entre si e os mútuos efeitos que produzem. [...] E mais: imbricadas, homofobia e heteronormatividade, à medida que se articulam de modo dinâmico e múltiplo com as lógicas relativas ao sexismo, à misoginia, ao racismo, à xenofobia etc., parecem adquirir maiores potência, capilaridade e capacidade de atualização, elementos indispensáveis para que a hegemonia urdida em torno delas ganhe eficácia, magnitude e produza ulteriores efeitos.

Todavia, é imprescindível asseverar que a diferença não prognostica uma desigualdade. Os marcadores sociais da diferença não são tão somente fronteiras fixas de poder que reverberam em hierarquização, hostilização e opressão, mas diferenças que viabilizam subjetividades, experiências, resistências e agências aos sujeitos (PISCITELLI, 2008, 2012).

À vista disso, ante a realidade brasileira, como corolário do histórico de colonização, escravidão e das suas hodiernas heranças e reminiscências coloniais, os marcadores sociais de gênero, sexualidade, raça, etnia e classe não atuam em apartado, mas se articulam, uma vez que atua(ra)m no arranjo dos discursos empreendedores da nação brasileira (MISKOLCI, 2012). Em decorrência de um racismo e sexismo substancias para a colonialidade masculina, heterossexual e branca brasileira, empreendeu-se a racialização, generificação e sexualização dos corpos, de maneira que gênero e sexualidade articularam-se à raça reverberando em hierarquias raciais e sexuais. Por conseguinte, as hodiernas vivências e experiências de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais concernentes à violência homotransfóbica são, outrossim, diferenciais.

Assim, sob esse prisma pós-colonial e interseccional/articulatório que evidencia a dinâmica histórica, conjuntural e relacional das articulações entre os marcadores sociais da diferença, a violência homotransfóbica imiscui-se em um arquétipo onde a homotransfobia não atua autonomamente e imparcialmente. Para além de se contemplar a orientação sexual e a identidade de gênero nas investigações acerca da violência homotransfóbica, deve-se atentar para como esses marcadores sociais articulam-se mútua e sincronicamente a outros, como raça e classe, por exemplo.

É sob esse prisma que Woods (2014a, 2014b), ao versar acerca de uma criminologia queer que contemple a interseccionalidade, assevera que a orientação sexual e a identidade de gênero, atreladas à raça, à classe etc., materializam diferencialmente as vivências e experiências dos sujeitos concernente à violência homotransfóbica e seus vínculos com as instituições do sistema de justiça criminal.

Conformando o que se chama de criminologia(s) queer, um campo criminológico que viria a apresentar novas e necessárias perspectivas criminológicas que procuram compreender e revelar a violência, a exclusão e o estigma gerados pela normalização de uma dada ordem (sobretudo a ordem sexual heteronormativa). [...] Assim, cabe, em primeiro lugar, a uma criminologia queer, avançar o campo para além do quadro do desvio sexual e considerar a orientação sexual e identidade/expressão de gênero como diferenças não-desviantes em combinação com outras diferenças, como de raça, etnia, classe e religião, as quais podem influenciar a vitimização, o envolvimento no crime, e experiências no sistema de justiça criminal de forma mais ampla.

Como corolário da sui generis conjuntura histórica brasileira, e em contrariedade à uma transportação acrítica e simplista de teorias, a articulação crítica de abordagens teóricas para se investigar os pormenores dessa mesma conjuntura distintiva é substancial. Assim, é sob esse prisma de articulação teórica, em que os estudos queer se articulam ao pós-colonialismo e à interseccionalidade/articulação, que na seção subsequente investiga-se a violência homotransfóbica no Brasil. É por intermédio dessa congregação de abordagens que se compreende a materialização, a corporificação, assim como as singularidades da violência contrária a gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais no país.

3 VIOLÊNCIA HOMOTRANSFÓBICA NO BRASIL

Nesta seção do trabalho investiga-se como a violência homotransfóbica estrutura-se, materializa-se e corporifica-se no Brasil. Em um primeiro instante, alude-se acerca dos índices e dados concernentes a essa violência no país por intermédio de documento e relatório oficial empreendido pelo poder público. Posteriormente, para além dos índices, alude-se acerca de como essa violência ocorre no país por intermédio de estudos e pesquisas teórico-empíricas, mediante sua articulação com outros marcadores sociais da diferença e mediante a violência institucional arquitetada pelas instituições do sistema de justiça criminal. Enfim, alude-se acerca da violência homotransfóbica per se, vale dizer, o cariz dessa violência em distinto. Assim, para além de ser compreendida por intermédio de um prisma tão somente individual, a violência homotransfóbica é estrutural e possui, para além de elementares psíquicas e patológicas, a elementar do ódio contrário aos seres abjetos.