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Revista Sinais Sociais / Sesc

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Academic year: 2021

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Dossiê: Políticas afirmativas - João Feres Júnior (org.) • Recriando fronteiras raciais - Antonio Sérgio Alfredo Guimarães • Mercado de trabalho e políticas de ação afirmativa: o caso da Lei no 12.990/2014 na

efetivação do princípio de igualdade de oportunidade - Wania Sant’Anna • Ação afirmativa na educação: avanços e limites da política - André Lázaro • Ações afirmativas na pós-graduação: uma análise dos programas de inclusão em universidades públicas brasileiras - Anna Carolina Venturini • Novas experiências de inclusão: ação afirmativa para negros e nativos no Brasil - Valter Roberto Silvério

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Sesc | Serviço Social do Comércio

Departamento Nacional

ISSN 1809-9815 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v. 12 n. 34 | p. 1-192 | set./dez. 2018

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As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores.

As edições podem ser acessadas eletronicamente em PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL

Antonio Oliveira Santos

DEPARTAMENTO NACIONAL

Diretor-Geral

Carlos Artexes Simões

Diretoria de Estratégia e Desenvolvimento Institucional Daniel Mansur Lopez

Gerência de Formação e Pesquisa

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EDITORIA

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Veronica Tomsic

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PRODUÇÃO EDITORIAL

Diretoria de Comunicação

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PREPARAÇÃO E PRODUÇÃO EDITORIAL

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(Conceito Comunicação Integrada Ltda.)

REVISÃO

Conceito Comunicação Integrada Ltda.

REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

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ARTE FINALIZAÇÃO E PRODUÇÃO GRÁFICA

Celso Mendonça

ESTAGIÁRIA DE PRODUÇÃO EDITORIAL

Juliana Marques

Sinais Sociais / Sesc, Departamento Nacional - Vol. 1, n. 1 (maio/ ago. 2006)- . – Rio de Janeiro : Sesc, Departamento Nacional, 2006 - .

v.; 30 cm. Quadrimestral.

Suspenso no período de maio de 2017 a setembro de 2018. ISSN 1809-9815

1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. Brasil. I. Sesc. Departamento Nacional.

© Sesc Departamento Nacional, 2018. Av. Ayrton Senna, 5.555 — Jacarepaguá Rio de Janeiro — RJ

CEP 22775-004 Tel.: (21) 2136-5555

Distribuição gratuita, venda proibida.

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610 de 19/2/1998.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária: Renata de Souza Nogueira CRB-7/5853

Angela de Castro Gomes (UFF - Unirio) Carlos Guilherme Mota (USP - Universidade Presbiteriana Mackenzie)

Elina Pessanha (IFCS/UFRJ) Franciso Alambert (FFLCH/USP) Gabriel Cohn (USP – Unifesp) Gustavo Lins Ribeiro (UnB) João Feres Júnior (IESP/UERJ) José Jairo Vieira (PPGE/UFRJ) Marco Aurélio Nogueira (Unesp) Marcos Costa Lima (UFPE)

Marta de Azevedo Irving (EICOS/UFRJ – PPED/UFRJ) Maurício Blanco Cossío (Instituto AFortiori) Myriam Lins de Barros (ESS/UFRJ) Paulo Cesar Duque-Estrada (PUC-Rio) Rita Chaves (PECLLP/USP)

Rogério Medeiros (PPGTLC/UFRJ) Sônia Karam Guimarães (PPGS/UFRGS) Tania Bacelar (CFCH/UFPE)

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SUMÁRIO

Apresentação

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Editorial 6

Dossiê: Políticas afirmativas

Organização: João Feres Júnior

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Introdução 11

Recriando fronteiras raciais

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães

21

Mercado de trabalho e políticas de ação afirmativa:

o caso da Lei nº 12.990/2014 na efetivação

do princípio de igualdade de oportunidade

Wania Sant’Anna

45

Ação afirmativa na educação: avanços e

limites da política

André Lázaro

85

Ações afirmativas na pós-graduação:

uma análise dos programas de inclusão em

universidades públicas brasileiras

Anna Carolina Venturini

119

Novas experiências de inclusão:

ação afirmativa para negros e nativos no Brasil

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APRESENTAÇÃO

A origem do Sesc vincula-se à intenção de contribuir para o desenvolvimento do Brasil a partir de uma profunda compreensão de seu potencial e dos obstáculos ao seu progresso.

Uma tarefa desafia aqueles que receberam como legado a missão de realizar no presente os ideais vislumbrados pelos líderes do passado: a revisão e a ampliação permanente dessa compreensão.

Assim como ao Sesc cabe atuar sobre a realidade social, cabe valorizar e difundir o entendimento acerca dessa realidade, dos conceitos e questões fundamentais para o país e das políticas públicas e formas diversas de promover o bem-estar coletivo.

Antonio Oliveira Santos Presidente do Conselho Nacional

O Serviço Social do Comércio não teria alcançado, ao longo de seus 72 anos, um papel tão relevante e definitivo para a sociedade brasileira, não fosse pela valorização da reflexão sobre a ação social e pela compreensão aprofundada das contradições do mundo contemporâneo.

A preocupação com o rigor e com a coerência do pensamento e a valorização conceitual se concretiza nos mais diferentes recortes da ação do Sesc, mas está expressa em sua plenitude em produções como a revista Sinais Sociais.

Publicada pela primeira vez há 10 anos, Sinais Sociais encontrou seu lugar no campo da produção reflexiva acadêmica. Progressivamente chamou a atenção dos centros de pesquisa e dos pensadores que hoje referenciam o pensamento social brasileiro, com edições corajosas, provocações intelectuais instigantes e, sobretudo, com a preocupação genuína em iluminar pela produção do conhecimento os rumos da sociedade brasileira e do complexo mundo em que vivemos.

carlos artexes simões Diretor-Geral do Departamento Nacional

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desigualdade social é amplamente estabelecida entre especialistas. Há um conjunto significativo de dados e indicadores socioeconômicos que atestam a gravidade desse problema e mostram suas implicações na vida cotidiana da população brasileira, especialmente dos setores mais pobres. O conhecimento que advém desses dados e indicadores é importante, entre outras razões, porque pode subsidiar o desenvolvimento de ações e políticas públicas que visem enfrentar e reduzir as desigualdades, contribuindo assim para a construção de uma sociedade mais justa e democrática. 

As políticas de ação afirmativa no Brasil foram concebidas como um instrumento que se propõe precisamente a promover justiça social. Não obstante, o processo de implementação dessas políticas, ainda recente, tem sido alvo de questionamentos em diversos setores da sociedade. O debate em torno do assunto revelou um grande dissenso na opinião pública sobre questões como democracia, justiça, equidade, mérito, privilégios e igualdade de oportunidades.

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Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v. 12 n. 34 | p. 1-192 | set./dez. 2018 Nesse contexto, é importante destacar o protagonismo exercido pela sociedade civil, especialmente pelo movimento negro, que pressionou o poder público no sentido da criação das políticas de ação afirmativa, visando, principalmente, democratizar o acesso à educação superior. Essa iniciativa ajudou a consolidar um debate sobre desigualdade racial no país e a incluir o tema na agenda pública nacional.

É nesse cenário que a revista Sinais Sociais apresenta este dossiê sobre as políticas de ação afirmativa no Brasil, reunindo artigos de especialistas, que buscam apresentar dados, discutir, problematizar e lançar hipóteses sobre o tema. Transcorrida mais de uma década desde a implantação dessas políticas, seus avanços e limites são debatidos nesta edição, além de suas perspectivas para o futuro. A publicação de um dossiê com essas características é uma excelente oportunidade para refletirmos sobre desigualdades sociais, expansão de oportunidades e políticas de inclusão implementadas no país nos últimos anos.

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Diretor e professor de ciência política do Instituto de Estudos

Sociais e Políticos (IESP) da UERJ. É coordenador do Grupo

de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (http://

gemaa.iesp.uerj.br/); do OCS, Observatório das Ciên cias

Sociais (http://ocs.iesp.uerj.br/); e do Laboratório de Estudos

de Mídia e Espaço Público, no âmbito do qual está o site

Manchetômetro (http://www.manchetometro.net/),

dedicado à análise diária da cobertura midiática da

política. Tem publicações nas áreas de teoria política,

história dos conceitos, políticas de ação afirmativa,

relações raciais, estudos de mídia e política, e história e

desenvolvimento das ciências sociais.

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Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v. 12 n. 34 | p. 9-19 | set./dez. 2018 João Feres Júnior

Introdução

São muito exíguas as iniciativas de análise sistemática da ação afirmativa no Brasil como uma política pública, isto é, por meio de ferramentas analíticas e teóricas elaboradas pelos estudos de políticas públicas, uma subárea da Ciência Política. Em 2018 completamos uma década e meia de funcionamento dessas políticas nas universidades brasileiras, isto é, já há material suficiente para estudarmos essa política pública em todas suas fases: definição do problema e agendamento, formulação, legitimação, implementação, avaliação e mesmo mudança no desenho (policy change).

Na verdade, há uma abundância de trabalhos que discutem aspectos da definição do problema e do agendamento da política (GUIMARÃES, 1996; HERINGER, 2002; MOEHLECKE, 2002; SELL, 2002), ou seja, mais especificamente, como a ação afirmativa racial se tornou uma solução possível para um

problema da sociedade brasileira. Mas há aqui uma questão interessante de temporalidade, pois a reação à ação afirmativa só começou de fato a partir da implantação das primeiras experiências em 2003, particularmente focada no exemplo da UERJ. Em outras palavras, boa parte do enorme e longo debate acerca da identificação do problema e do agendamento da ação afirmativa se deu paralelamente a sua implantação. É claro que temos a definição do problema e o agendamento que permitiu que as primeiras políticas fossem implantadas. Mas isso se deu em um contexto local e limitado, ao contrário do debate que se seguiu à implantação, esse sim trombeteado pela grande mídia nacional em tons bastante carregados.

Quando foi primeiramente posta em prática, a ação afirmativa racial no Brasil foi, para muitos, como um raio em céu azul. Houve de fato uma reação bastante forte à introdução dessas políticas advinda de parte da academia, de

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parte da “intelectualidade” e da grande mídia, particularmente dos veículos de comunicação do Grupo Globo.

Os estudos quantitativos de conteúdo que fizemos sobre esse debate mostram que o argumento central que articulava a oposição era o que podemos chamar de paradigma freyreano, para evitar o uso do termo democracia racial. Em outras palavras, a maior parte dos detratores das “cotas raciais”, como ficaram conhecidas nos jornais com intenção claramente pejorativa, defendiam a ideia de que a ação afirmativa racial era uma importação dos Estados Unidos completamente inadequada à sociedade brasileira, pois esta abrigava relações raciais bastante distintas daquelas dos EUA. Baseados em interpretações da obra de Gilberto Freyre, diziam que as identidades raciais no Brasil eram elásticas e dependentes dos diferentes contextos sociais, e que a ação afirmativa iria congelar tais identidades, forçando a sociedade a um processo de racialização sem precedentes. Argumentavam que a ação afirmativa iria destruir o âmago da identidade nacional, exatamente constituído por essa suposta fluidez identitária. Um dos líderes do movimento anticotas, Ali Kamel, diretor-geral de Jornalismo e Esportes da Rede Globo, chegou a publicar um livro intitulado Não somos racistas, para combater as cotas (KAMEL, 2003). Junto a esses argumentos de ordem antropológica, vinham argumentos políticos bastante conservadores, de rejeição da intervenção do Estado nas relações sociais e de defesa intransigente de políticas universalistas contra qualquer política que atenda minorias e grupos marginalizados, sob o

argumento de que tais políticas violavam o princípio republicano da igualdade perante as leis. É razoável dizer que com o movimento anticotas, a direita retornava ao debate público no Brasil depois de um longo sono de duas décadas na Nova República. A similaridade entre a agenda do movimento anticotas e a dos movimentos de nova direita que surgiram no rastro das manifestações

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de junho de 2013 é digna de nota: ambas conjugam uma agenda conservadora nos costumes, de negação de direitos a minorias e grupos marginalizados socialmente, com uma visão de restrição da atividade estatal. Ademais, os dois movimentos foram fortemente apoiados, senão promovidos, pela grande mídia. Para coroar, ambos comungam do antipetismo, que era disfarçado no movimento contra as cotas e agora se tornou muito estridente.

Voltando às várias etapas da vida de uma política pública, a formulação dos programas de ação afirmativa em nosso país seguiu um caminho bastante interessante que merece em si estudos específicos. Como os trabalhos do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) mostraram, as políticas foram se espalhando pelo país a partir de 2003, seu primeiro ano de implantação na UERJ e na UNEB, obedecendo desenhos dos mais variados que eram produto das circunstâncias políticas de cada instituição de ensino (FERES JÚNIOR, DAFLON, CAMPOS, 2011). As universidades estaduais, pioneiras na implantação da ação afirmativa, obedeciam a leis estaduais ou criavam políticas de ação afirmativa a partir de decisões de seus próprios órgãos deliberativos. Já as federais começaram mais tarde a adotar tais políticas e receberam incentivos importantes do Governo Federal, particularmente do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). Mas como as metas do Reuni eram vagas, cada instituição gozou de autonomia para criar suas próprias normas. A disseminação da ação afirmativa sem uma normatização central produziu grande diversidade de critérios, mormente sociais (renda e escola pública) e raciais (pretos, pardos, negros, indígenas), para a determinação de beneficiários.

Tal diversidade foi em boa parte suprimida pela Lei nº 12.711, sancionada em agosto de 2012, que ao longo de quatro anos de implantação, submeteu todo o sistema universitário e escolas técnicas federais a uma única norma (DAFLON,

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FERES JÚNIOR, MORATELLI, 2014). As universidades estaduais continuaram fora do alcance da lei federal e, portanto, aplicando seus próprios critérios. Isso não fez com que o processo de disseminação das ações afirmativas fosse completamente freado, contudo. As estaduais paulistas, USP, Unicamp e Unesp, por exemplo, acabaram por adotar cotas raciais depois de um longo processo de debate interno e externo e da supressão de programas de bônus, como é o caso de USP e Unicamp, que funcionaram por mais de década sem produzir qualquer efeito inclusivo (VENTURINI, 2015; VENTURINI, FERES JÚNIOR, 2016). Em suma, o processo de formulação foi bastante dinâmico, mas, assim como o agendamento, ele não teve muita exposição pública, ou melhor, ele ficou reservado aos públicos restritos que participaram dos processos deliberativos em cada universidade e às câmaras legislativas, entre elas o Congresso Nacional. Este, por seu turno, até promoveu audiências sobre o tema, mas os debates raramente discutiram aspectos técnicos da formulação da política, ficando mormente restritos à constante pugna entre “intelectuais públicos” freyreanos convidados por parlamentares de direita e defensores das cotas, advindos em sua maioria de movimentos sociais, e convidados pela esquerda. No que toca à legitimação da ação afirmativa no Brasil, um fenômeno bastante interessante se deu. Logo que as políticas foram implantadas, as primeiras pesquisas de opinião mostravam que a maioria da população rejeitava as cotas raciais, ainda que aceitasse com mais facilidade reservas de vagas por critério de renda. Com o passar dos anos, a população passou a aceitar mais e mais as políticas raciais como necessárias para a promoção da justiça social no Brasil, um sinal inequívoco da perda de popularidade da mitologia freyreana.

Ainda sobre a legitimação, é importante dizer que a questão racial é raramente acionada como tema eleitoral, a não ser em alguns casos em eleições de

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parlamentares, ou seja, proporcionais. Assim, é bastante difícil auferir o grau de legitimidade emprestado às políticas de recorte racial por parte do povo. Ao mesmo tempo é razoável afirmar que a sensibilidade do brasileiro médio à desigualdade racial e questões correlatas parece estar aumentando ao longo dos anos. Poucas pessoas teriam a coragem de afirmar não haver racismo no Brasil. Mesmo quando de seu lançamento, quinze anos atrás, o livro de Kamel já parecia arriscadamente anacrônico, produto da audácia excessiva ou talvez da total alienação do autor em relação à sociedade em que vive.

A implementação das políticas de ação afirmativa no Brasil tem sido, por um lado, exemplar. O plano de implantação do programa federal estipulado pela Lei nº 12.711/2012 para durar quatro anos foi cumprido à risca pelas instituições do sistema federal (FERES JÚNIOR et al., 2017). Seja nas universidades federais ou estaduais, ou mesmo nas universidades privadas, como produto do Programa Universidade para Todos (ProUni), as políticas de ação afirmativa transformaram o perfil do ensino superior brasileiro. Contudo, não é possível dizer muito mais acerca desse processo por falta de instrumentos de avaliação. Chegamos aqui a um ponto crítico do ciclo dessa política pública: a avaliação. No caso do Brasil, é mais apropriado falar da ausência de avaliação.

Historicamente, desde a implantação das primeiras políticas de ação afirmativa em universidades públicas, as instituições têm sistematicamente negado o acesso do público e de pesquisadores aos dados acerca da política, sejam eles de matrícula efetiva de alunos, abandono ou rendimento. Com raríssimas exceções, quase nada se sabe de concreto sobre o funcionamento efetivo dessas políticas. A Lei Federal prevê em seu artigo 7º que, “no prazo de dez anos a contar da data de publicação desta Lei, será promovida a revisão do programa”, mas não dá maiores informações acerca de como isso será feito. Na verdade, o texto hoje vigente foi alterado pela Lei nº 13.409/2016.

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O anterior, isto é, o original da Lei nº 12.711/2012 dizia que o Poder Executivo era responsável por promover tal revisão. Agora, sequer sabemos quem deverá assumir tal responsabilidade. O MEC mais de uma vez ensaiou criar uma comissão de avaliação, mas ela nunca foi de fato implantada.

Sem avaliação, é difícil falar em mudança do desenho. Mas é possível sim falar de outro processo comum às políticas públicas e pouco explorado pela literatura acadêmica, que é o de migração para áreas contíguas. Esse é o objeto maior do presente volume da revista Sinais Sociais: as novas fronteiras da ação afirmativa. A despeito do processo por vezes conturbado de evolução dessas políticas em nosso país, ele continua em andamento, agora migrando para outras áreas da atividade social.

O artigo de Antonio Sérgio Guimarães abre a revista com uma reflexão que detalha o processo de corrosão da hegemonia do paradigma freyreano citado anteriormente, particularmente no que toca um de seus desenvolvimentos mais recentes: a constituição de comissões averiguadoras das declarações de cor/raça, que começaram a ser implementadas em algumas poucas universidades, foram referendadas pela decisão do Supremo Tribunal Federal rejeitando a ADI 186, em 2012, e hoje fazem parte de vários processos seletivos que envolvem políticas de ação afirmativa de recorte racial.

O segundo artigo da revista, de autoria de Wania Sant’Anna, traça a evolução histórica das ações afirmativas no Brasil como preâmbulo para o tratamento da questão atual das ações afirmativas étnico-raciais no mercado de

trabalho. Para tal, Sant’Anna reconstrói a história de discriminação sofrida pelos afrodescendentes no país desde o momento imediatamente posterior à abolição da escravidão até o aparecimento do Movimento Negro e sua trajetória até os dias de hoje, quando políticas de ação afirmativa étnico-racial estão sendo implantadas no mercado de trabalho em consequência da

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aprovação da Lei nº 12.990/2014. Por fim, examina o caso concreto da aplicação de reserva de vagas na contratação de funcionários da Petrobras, dando um exemplo concreto do funcionamento de uma comissão de verificação da identidade racial que serve para ilustrar e, ao mesmo tempo, questionar o diagnóstico bastante cético feito por Guimarães.

Baseado em experiências coletadas nos Fóruns de Ação Afirmativa promovidos em vários estados da federação pelo Grupo Estratégico de Análise da Educação Superior (GEA-ES) da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais no Brasil (Flacso Brasil), do qual é coordenador, André Lázaro reflete sobre os desafios concretos colocados ao funcionamento das políticas de ação afirmativa no estado avançado de sua implantação. Tais desafios dizem respeito a múltiplos aspectos envolvidos nessas políticas, entre eles, integrar as redes de nível médio e superior públicas, agregar pesquisadores de movimentos sociais, mobilizar a sociedade para ser informada e contribuir com o sucesso das políticas, fomentar o desenvolvimento de indicadores sensíveis às diversas dimensões que as políticas de ação afirmativa mobilizam no conjunto da sociedade etc. O debate até agora tem se atido a questões muito gerais dessa política. A contribuição de Lázaro aponta para detalhes fundamentais que devem nortear pesquisas futuras sobre o tema.

Outra nova fronteira da ação afirmativa abordada no presente número da Sinais Sociais é a pós-graduação, tema do artigo de Anna Carolina Venturini. Até pouco tempo considerada estranha ao escopo dessas políticas, a pós-graduação, instância mais elitizada de nosso sistema educacional, começou a se tornar também objeto de políticas de ação afirmativa, de maneira bastante atomizada, mas vigorosa. Venturini mostra como o agendamento dessa questão foi produto do sucesso das ações afirmativas na graduação, que fizeram de sua implementação na pós-graduação uma consequência

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lógica para o avanço da democratização das instituições públicas de ensino. Ela também oferece uma radiografia do atual estado das políticas na pós-graduação nacional, chamando atenção para algumas das peculiaridades do movimento de expansão das políticas, como o aparente paradoxo de as iniciativas pioneiras advirem de programas bem avaliados, mas dominantemente de Ciências Sociais e Humanidades, menos concorridos se comparados aos programas de Exatas e Biológicas.

Por fim, o artigo de Valter Silvério traça a luta do Movimento Negro por direitos ao longo de décadas, que conduziu, entre outras coisas, ao reconhecimento pelo Estado da existência de discriminação racial no país, bem como da ação afirmativa como uma política para corrigir as desigualdades causadas por tal discriminação. Silvério defende que esse fenômeno deve ser melhor entendido no bojo do processo de democratização do Estado brasileiro e identifica três aspectos fundamentais que o marcaram: 1) a mudança na política de Estado relacionada à inclusão de negros, população nativa, e pessoas pobres no ensino superior; 2) o impacto dessas ações no debate acadêmico; e 3) o papel do movimento social negro nesse processo.

A criação de políticas de ação afirmativas raciais e sociais foi um dos acontecimentos de maior significado político e social nas últimas décadas em nosso país. Elas revolucionaram a maneira como gestores, acadêmicos e a população em geral compreendem a questão racial, as injustiças que nos assolam e as soluções para combatê-las. O maior entendimento dos detalhes de sua implantação em todos os seus estágios é fundamental para o próprio sucesso dessas iniciativas. Temos aqui um caso raro em que o desenvolvimento do conhecimento acadêmico pode contribuir direta e indiretamente para o desenvolvimento das próprias instituições acadêmicas e para a sociedade como um todo.

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Referências

DAFLON, Verônica Toste; FERES JÚNIOR, João; MORATELLI, Gabriella. Evolução temporal e impacto da Lei nº 12.711 sobre as universidades federais. In: Grupo de Estudos Multidis-ciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA); FERES JÚNIOR, João (Ed.). Levantamento das políticas de ação afirmativa (Textos para discussão, n. 4). Rio de Janeiro: IESP-UERJ, p. 1-10, 2014. FERES JÚNIOR, João; DAFLON, Verônica Toste; CAMPOS, Luiz Augusto. A ação afirmativa no ensino superior brasileiro. In: Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA); FERES JÚNIOR, João (Ed.). Levantamento das políticas de ação afirmativa. Rio de Janeiro: IESP-UERJ, p. 1-20, 2011.

FERES JÚNIOR, João et al. Políticas de ação afirmativa nas universidades estaduais (2016). In: Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA). Levantamento das políticas de ação afirmativa. Rio de Janeiro: IESP-UERJ, p. 1-30, 2017.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio. Políticas públicas para a ascensão dos negros no Brasil: argumentando pela ação afirmativa. Afro-Asia, Salvador, n. 18, p. 235-264, 1996.

HERINGER, Rosana. Ação afirmativa, estratégias pós-Durban. Observatório da Cidadania/ Socialwatch, p. 55-61, 2002. Disponível em: http://www.socialwatch.org/sites/default/files/ pdf/en/panorbrasileirob2002_bra.pdf. Acesso em: 7 jul. 2017.

KAMEL, Ali. Não somos racistas. O Globo, Rio de Janeiro, 9 dez. 2003.

MOEHLECKE, Sabrina. Ação afirmativa: história e debates no Brasil. Cadernos de Pesquisa, Rio de Janeiro, n. 117, p. 757-776, 2002.

SELL, Sandro Cesar. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil. Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux, 2002.

VENTURINI, Anna Carolina; FERES JÚNIOR, João. O Programa de Inclusão Social da USP (Inclusp). In: Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA). (Textos para discussão, n. 9). Rio de Janeiro: IESP-UERJ, p. 1-17, 2015.

VENTURINI, Anna Carolina; FERES JÚNIOR, João. Onze anos da ação afirmativa sem cota da Unicamp. In: Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa. (Textos para discussão, n. 11). Rio de Janeiro: IESP-UERJ, p. 1-24, 2016.

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Antonio Sérgio Alfredo Guimarães

Professor titular do Departamento de Sociologia da

Universidade de São Paulo, ensina regularmente na

pós-graduação e conduz pesquisas em associação com

o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Formado em ciências sociais pela Universidade Federal

da Bahia (1972), onde também obteve o grau de mestre,

é doutor em sociologia pela University of Wisconsin,

Madison (1988) e livre-docente em sociologia política

pela Universidade de São Paulo (1997). Ocupou a cátedra

Simon Bolivar da University of Cambridge; a cátedra

Sérgio Buarque de Holanda da Maison des Sciences

de l’Homme, e foi Lehman Distinguished Professor da

University of Illinois Urbana-Champaign. Foi professor da

Universidade Federal da Bahia, e professor visitante em

diversas universidades estrangeiras, entre elas a Princeton

University. Presidiu a Sociedade Brasileira de Sociologia, de

1996 a 1998, e dirigiu o Centro de Recursos Humanos da

UFBA. Recebeu a comenda da Ordem do Mérito Científico

do Ministério de Ciência e Tecnologia do Brasil em 2007.

Seus principais livros incluem: Imagens e identidades

do trabalho; Um sonho de classe: trabalhadores e

formação de classe na Bahia dos anos 80; Preconceito e

discriminação; Racismo e antirracismo no Brasil; Classes,

raças e democracia; Preconceito racial: modos, temas e

tempos.

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Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v. 11 n. 34 | p. 119-153 | set./dez. 2018 Anna Carolina Venturini

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Resumo

O estabelecimento de cotas para negros em universidades públicas brasileiras, a partir de 2003, colocou no cenário político e acadêmico brasileiro o desafio de pensar a autorracialização. Comissões averiguadoras das declarações de cor/raça dos candidatos às cotas começaram a ser implantadas desde 2004. Em 2016, tais comissões passaram a fazer parte do ordenamento jurídico do país. Nesse artigo, interessa-me examinar as

razões que as motivaram e como elas foram justificadas por autoridades e intelectuais envolvidos no seu desenho e implementacão. Estarei atento, sobretudo, a examinar o que elas representam em termos de demarcar barreiras raciais. 

Palavras-chave: Racialização. Fronteiras raciais. Cotas raciais. Defesa de direitos.

Abstract

The establishment of quotas for blacks in Brazilian public universities, starting in 2003, placed the challenge of thinking about self-racialization in the Brazilian political and academic scene.  Commissions for verification of the color/race declarations of candidates for quotas began to be implemented since 2004. But in 2016, such commissions became part of the legal system of the country. In this article, my purpose is to examine the reasons that led to the formation of such commissions and how they were justified by authorities and intellectuals involved in its design and implementation. I will be especially attentive to what they represent in terms of demarcating new racial barriers.

Keywords: Racialization. Racial borders. Racial quotas. Rights advocacy.

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O estabelecimento de cotas para negros em universidades públicas do país, a partir de 2003, recolocou no cenário político e acadêmico brasilei-ro a reflexão sobre racialização em novas bases. O que fora até então co-locado como produto do cientificismo racista do século XIX e da geração naturalista dos 1870 (SCHWARCZ, 1993), ou, nos anos 1950 e 1960, objeto de cuidadosas etnografias sobre a manipulação de características físicas, sociais e culturais na construção de hierarquias sociorraciais baseadas na cor (HARRIS, 1964; AZEVEDO, 1953; WAGLEY, 1994), passava a ser agora uma preocupação política prática: se ações afirmativas para o população negra brasileira eram imprescindíveis, como implementá-las sem essen-cializar e biologizar as raças sociais? Se o acesso às vagas reservadas a pretos e pardos poderia ser contestado política e judicialmente, como estabelecer de modo preciso quem seriam o preto e o pardo – os benefi-ciários da política? Mais precisamente, num país que baseara toda a sua política racial desde pelo menos o começo do século XX promovendo como mito nacional a mestiçagem ou o branqueamento, como discernir agora o pardo do branco? O problema era, assim, menos o de utilizar em políticas públicas categorias raciais de uso corrente no dia a dia das pessoas, e mais o de cristalizar fronteiras raciais no processo de imple-mentação dessas políticas.

O emaranhado do dilema pode ser medido por algumas balizas. Primeiro, a impossibilidade de definir cientificamente raças humanas, seja por ca-racterísticas fisionômicas, seja por caca-racterísticas genéticas (PENA, 2008; EL-HAJ, 2012). Segundo, a presença maciça de marcadores genéticos in-dígenas na população brasileira, facilitando uma demarcação frouxa, completamente política ou, às vezes, instrumental (PENA, 2008). Terceiro, o caráter sabidamente situacional e intencionalmente ambíguo da clas-sificação racial brasileira (HARRIS, 1970). Quarto, o dever moral de res-peitar o modo como os indivíduos assumem identidades sociais, o que é basilar na ordem democrática e no estado de direito em todo o mundo. Finalmente, saber exatamente qual a finalidade das ações afirmativas: compensar discriminações passadas? Garantir oportunidades para gru-pos de menor competitividade social e econômica? Ampliar o acesso às universidades públicas de populações discriminadas? Diversificar a ori-gem social, econômica e racial da população universitária?

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Boa parte desses dilemas pôde ser evitada de modo bastante engenhoso pelas universidades públicas que adotaram cotas para pretos e pardos e indígenas.2 De fato, em sua maioria, elas associaram a condição racial do beneficiário com sua condição socioeconômica, privilegiando essa úl-tima. Ou seja, a maior parte das universidades preferiu desenhar uma política privilegiando alunos de escola pública ou de uma determinada faixa de renda, adicionando a essas condições objetivas a autodeclaração subjetiva, considerada como suficiente, de cor/raça. A política ganhava assim uma finalidade clara de, respeitando os padrões de desempenho escolar, privilegiar membros de grupos sociais que se mantinham injus-tificadamente – e de modo injusto – fora dos quadros universitários. Essa solução parece ter agradado movimentos sociais negros e a opinião pú-blica do país, a crer seja na participação ativa de movimentos negros na discussão dessas políticas, seja nos índices de sua aprovação em pesqui-sas de opinião.

Houve, entretanto, um caso de uma grande universidade que destoou de todos: o da Universidade de Brasília (UnB), que em 2004 estabeleceu co-tas de 20% para estudantes negros – pretos e pardos, independentemente de sua origem socioeconômica ou procedência escolar. Se nas demais universidades do país, eventuais autodeclarações contestáveis de cor/ raça eram diluídas por uma política mais ampla de justiça social – difi-cilmente um candidato poderia burlar a sua origem escolar, a sua renda familiar e a sua identidade racial a um só tempo –, no caso da UnB, uma possível burla poderia ser interpretada como um desafio à política de cotas, ou como fator desestabilizador da sua continuidade. E, de fato, foi desse modo que a UnB interpretou a possibilidade de ‘fraude’.

A decisão da UnB, principalmente depois que alguns casos de candidatos rejeitados pela comissão de verificação de veracidade da declaração de cor/raça foram divulgados pela grande imprensa escrita e pela mídia te-levisiva, suscitou amplo debate no país. Muitos artigos de acadêmicos e jornalistas foram publicados sobre esses episódios, um dossiê da revista acadêmica Novos Horizontes foi publicado sobre o tema, e remissões a esses episódios passaram a ser referência obrigatória no debate sobre a implantação das cotas no país.

A repercussão desses casos ensejou que um partido político – o Demo-cratas – apresentasse ao Supremo Tribunal Federal, em 31 de julho de

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2009, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (a ADPF 186), em que questionava a constitucionalidade das cotas ou reser-vas de vagas raciais na Universidade de Brasília. Ademais, aproveitando--se do que parecia ser flagrante violação do preceito internacionalmente aceito do direito à autodeclaração de identidades comunitárias, a ADPF apresentava o sistema de verificação da declaração de cor da UnB como um “tribunal racial”, argumentando que essa era a consequência lógi-ca da instituição de cotas raciais em um país miscigenado, onde seria impossível distinguir raças e onde as fronteiras de cor eram borradas e ambíguas.

Os ministros do STF, em seu acórdão sobre a ADPF 186, publicado em 26 de abril de 2012 (BRASIL, 2012), foram então compelidos a decidir não apenas sobre a constitucionalidade das cotas raciais, sua adequação e proporcionalidade, mas também do uso da heteroclassificação racial na garantia efetivada implantação das cotas raciais. Ao fazê-lo, portanto, o Supremo Tribunal Federal demarcou o terreno jurídico em que as formas de classificação racial presentes no cotidiano social teriam efeitos práti-cos reconhecidos juridicamente.

Neste artigo, irei refletir sobre a consequência desses novos parâmetros legais para a dinâmica das relações sociais no Brasil, mais particular-mente para a reclassificação racial em curso. Minha exposição seguirá a seguinte ordem. Primeiro, examinarei as reações mais importantes, em termos argumentativos, sobre o estabelecimento de comissões de ave-riguação da declaração de cor/raça; em seguida resumirei a ordem legal proposta pelo STF para o ordenamento das relações raciais e sua efetiva implementação no país; em terceiro lugar, retomarei o debate sobre fron-teiras raciais no Brasil para avaliar como a classificação racial brasileira poderia ser compatível com as cotas raciais, sem a necessidade de es-tabelecimento de comissões averiguadoras; finalmente, na última parte explorarei tanto as razões que levam as organizações negras a demandar a formação dessas comissões quanto seus efeitos sobre a política étnico--racial brasileira.

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No debate público que se seguiu, a decisão da UnB de averiguar a au-todeclaração de cor/raça dos candidatos foi julgada sempre a partir de uma questão: tal comissão feria ou não os direitos fundamentais dos grupos sociais discriminados, seguindo recomendação do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial das Nações Unidas?3 A autodecla-ração de pertencimento a grupos étnico-raciais fora reconhecida desde a Convenção 169 da OIT, sancionada pelo Brasil em 2002, e expressa na Declaração de Durban (2001), que serviu de base para a implementação de cotas sociorraciais no país.4 Seriam as comissões averiguadoras uma reedição tupiniquim dos tribunais raciais sul-africanos do apartheid ou dos tribunais nazistas?

Os intelectuais brasileiros contrários ao estabelecimento de cotas raciais tomaram a formação de tais comissões como a consequência lógica da política de cotas: as fronteiras raciais brasileiras seriam tão porosas que, na ausência de tais comissões, as políticas de ação afirmativa para negros seriam inviabilizadas pela livre circulação dos indivíduos pelas categorias de cor (FRY, 2004). O sistema de cotas, portanto, manifestava-se claramente impossível de funcionar sem ferir direitos humanos fun da-mentais.

Pressionado pelas críticas, o vice-reitor da UnB à época, Thimoty Mulholland, escreveu no jornal Correio Brasiliense:

A cota de 20% das vagas na UnB foi destinada, em edital, a estudantes de cor preta ou parda que se consideram negros. O candidato foi livre para optar pelo sistema de cotas, para indicar sua cor e para declarar-se negro. Processos anteriores, porém, apontaram o abuso da autodeclaração, che-gando a 40% em pelo menos um caso. Entrevistas e fotografias já foram usadas no país para inibir esse tipo de comportamento e para manter a integridade do processo. A UnB nada inovou (MULHOLLAND, 2004).

O vice-reitor explicita, portanto, três pontos importantes: (a) a comis-são seria um dissuasor para evitar fraudes; (b) o não reconhecimento da negritude do candidato pela comissão deveria tornar a autodeclaração de cor/raça nula em termos administrativos; (c) a pessoa que não teve sua declaração validada pela comissão tinha a intenção de aproveitar-se indevidamente da cota. Chama a atenção no argumento o fato de que

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também a UnB temia que, sem a vigilância de fronteiras étnico-raciais pela comissão, a política de cotas não se sustentaria, dada a extensão do não reconhecimento ou da desobediência aos seus critérios de benefi-ciamento.

Fenótipos, principalmente a cor, sempre foram decisivos para definir-se negro no Brasil. No entanto, o longo processo de construção social de uma “cultura negra”, que ganhou força a partir dos anos 1970, com movimentos como o Black Rio, o Samba Rock, os blocos afro, e outros, parecia apontar que os negros brasileiros passavam a se definir tam-bém em termos étnicos, ou seja, em termos de pertencimento a uma comunidade que partilha costumes, valores e modos de vida ancestrais. Esta construção étnica exige e pressupõe a liberdade de autodeclarar-se negro, de reconverter-se aos valores de uma comunidade de origem largamente imaginada e reconstruída, como qualquer pertença étnica. A esse respeito, o movimento indígena brasileiro contemporâneo é o melhor exemplo de como os fenótipos são relegados ao segundo pla-no em favor dos sentimentos de pertencimento a uma comunidade de origem que partilha uma cultura.5

Algumas manifestações de ativistas e intelectuais negros talvez nos aju-dem a esclarecer as justificativas de por que as organizações negras vol-tavam a ressaltar e demarcar fronteiras a partir de fenótipos, para os quais a heteroclassificação é imprescindível. Danilo Lima, coordenador de juventude da ONG Educafro, se manifesta da seguinte maneira:

Uma grande contribuição dessa comissão de verificação é trazer a refe-rência ao fenótipo das pessoas, ou seja, pessoas com melanina acentu-ada, isso é importante porque o racismo no Brasil tem algumas caracte-rísticas de perversidade. Nós, pessoas com pele mais preta, cabelo mais crespo e com mais traços associados à negritude, são mais vitimadas pela sociedade [sic]. E, existe uma enxurrada de estatísticas que demonstram esse fato. A política de ação afirmativa vem para corrigir isso (LIMA, cita-do em OLIVEIRA, 2016).

Djamila Ribeiro, pesquisadora na área de filosofia política, feminista e secretária-adjunta da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, declarou:

É bom frisar que o racismo no Brasil é pelo fenótipo – meu avô paterno era português, então por isso eu vou me declarar branca? Não faz sentido.

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pela textura do meu cabelo. Então, o fato da pessoa ter um avô negro, mas ela é lida como branca, ela tem que entender que ela vai ter privilégios de pessoas brancas na sociedade (RIBEIRO, citada em OLIVEIRA, 2016).

Frei Davi Santos, fundador da Educafro, explica a mudança de posição da sua organização, que antes limitava o reconhecimento da identidade racial à autodeclaração:

A Educafro, de 2000 a 2010, defendia radicalmente que o critério único de-veria ser a autodeclaração, porque a entidade percebia que de cada cem afro-brasileiros, oitenta tinham vergonha de se definir como tal. Ora, até então no Brasil, negro levava a pior. Com a lei das cotas, pela primeira vez ser negro é vantagem, então, nós entendíamos que autodeclaração iria ajudar aqueles 80% de afro-brasileiros que estavam no meio do caminho de assumir sua negritude. [...] Daí nosso susto ao ver que alguns brancos e pardos-brancos passaram a ver a lei como uma oportunidade de gerar fraudes. É o caso do Itamaraty, em que um branco de olhos verdes pegou sua bisavó negra para roubar a nossa vaga. [...] As cotas não estão preocu-padas com a genotipia, mas unicamente compromissadas com a fenoti-pia. Portanto, não adianta você falar que tem avós ou bisavós negros para querer ter o direito que você não tem porque não é vítima de racismo (SANTOS, citado em OLIVEIRA, 2016).

Temos, pois, questões de duas ordens diferentes: uma primeira na órbita dos direitos e da ética; uma segunda, na órbita da formação dos grupos raciais. Será que se tratava de um excesso de zelo e temor infundado por parte das autoridades da UnB e de ativistas negros; ou, o que não é necessariamente uma alternativa, a lógica que preside a implantação de cotas é de natureza diferente da lógica que sustenta a luta contra a discriminação racial? Ou seja, poderiam as duas lógicas serem seguidas simultaneamente pelo mesmo agente – o movimento negro: beneficiar os de fenótipo negro, no preenchimento das cotas, e os afrodescendentes em geral, na promoção da cultura e da identidade negras? Poderia pedir--se a ambos, aos com fenótipos precisos e aos fenotipicamente embran-quecidos, adesão às causas negras?

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A mais alta corte de justiça do país, o Supremo Tribunal Federal, não julgou que direitos individuais pudessem ser violados pelas comissões averiguadoras. O parecer do ministro Lewandowski, relator da ADPF 186, examina todos os argumentos do requerente, o partido Democratas – para julgá-los improcedentes. O voto do relator, seguido pela unanimidade da corte, estabelece claramente que a reserva de vagas é compatível com a Constituição de 1988, que o edital da UnB reservando 20% das vagas para autodeclarados pretos, pardos e indígenas é de caráter temporá-rio, devendo ser avaliado em dez anos; sendo adequado e proporcional ao objetivo explícito de proteger o direito à educação superior pública a membros de grupos historicamente desfavorecidos; reconhece que tal desfavorecimento tem como causa efetiva os traços fenotípicos (raciais) dessas pessoas; e, tendo o edital preservado a autodeclaração de cor/ raça, as comissões averiguadoras seriam apenas uma forma de garantir a lisura da competição entre os autodeclarados negros.

O voto de Lewandoski é apenas contestado em seu teor pelo ministro Gilmar Mendes, que se rende aos argumentos do requerente da ADPF 186 no que se refere à predominância causal das condições socioeconô-micas sobre a discriminação racial na competitividade e desempenho dos estudantes nos exames vestibulares, e à inconstitucionalidade das comissões. No entanto, reconhecendo que se trata de um edital vigente há oito anos, que deveria ser avaliado pela UnB depois de dez anos, e arguindo o caráter pragmático e experimental de todos os editais que reservavam vagas para negros nas universidades públicas, opta por se-guir o voto do relator.

Uma decisão do ministro Dias Tóffoli, um ano depois, de novo reconhe-ceu a legalidade das entrevistas e do uso de “critérios objetivos” para a aferição de identidades raciais.6 Em 3 de novembro de 2015, instado por movimentos sociais negros e por procuradores federais e estadu-ais, o Ministério Público Federal organiza uma audiência pública com o título “Fraudes nos sistemas de cotas e mecanismos de fiscalização: o papel do Ministério Público”(BRASIL, 2015). A partir dessa audiência, fica estabelecido o entendimento de que o Ministério Público deve exi-gir a constituição dessas comissões verificadoras, seguindo o Acórdão

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do STF na ADPF 186, como modo de garantir a lisura de editais que es-tabelecem reserva de vagas para negros. Mais uma vez, reitera-se que apenas traços fenotípicos objetivos sejam levados em consideração por tais comissões.

Tal objetividade foi regulamentada, no âmbito do Governo Federal, pela Secretaria de Gestão de Pessoas e Relações do Trabalho no Serviço Pú-blico do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, na Orientação Normativa nº 3, de 01 de agosto de 2016, que disciplina a for-mação de comissões de averiguação da declaração de identidade racial. Para garantir objetividade, segundo a orientação, “as formas e critérios de verificação da veracidade da autodeclaração deverão considerar, tão somente, os aspectos fenotípicos do candidato, os quais serão verificados obrigatoriamente com a presença do candidato” (ver Quadro 1). No mes-mo ano, a prefeitura do Rio de Janeiro, por meio do Decreto nº 42.574, de 18 de novembro de 2016, regulamentou as comissões no nível municipal, compostas de três membros indicados pelo Conselho Municipal de De-fesa dos Direitos dos Negros e um servidor municipal. O decreto, em seu parágrafo segundo, reza que “a comprovação da autodeclaração de negro considerará o fenótipo apresentado pelo candidato e levará em conta in-formações existentes, fornecidas ou não pelo candidato, que auxiliem na análise acerca da condição do candidato como negro”.

Um mês depois, foi a vez de a prefeitura de São Paulo, por meio do Decreto nº 57.557, de 21 de dezembro de 2016, regulamentar a mesma matéria. Em seu artigo terceiro, diz o decreto que “a autodeclaração não dispensa a efetiva correspondência da identidade fenotípica do candidato com a de pessoas identificadas socialmente como negras”, dispondo também que “a fotografia e a autodeclaração deverão ser encaminhadas à Se-cretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial para confirmação de que o interessado atende ao estabelecido no artigo 3º deste decreto” (SÃO PAULO, 2016). A prefeitura de São Paulo institui também no mesmo decreto uma comissão para avaliar a autodeclaração:

Art. 16. Fica instituída, na Secretaria Municipal de Promoção da Igual-dade Racial, sob a supervisão da Coordenação de Ações Afirmativas, a Comissão de Análise de Compatibilidade com a Política Pública de Cotas – CAPC, incumbindo-lhe a instrução e elaboração do relatório final do procedimento de análise da correspondência entre a autodeclaração e

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as características fenotípicas que identifiquem o candidato socialmente como negro e sua consequente compatibilidade com a política pública de cotas raciais.

§ 1º A CAPC, constituída por portaria do Secretário da Secretaria Muni-cipal de Promoção da Igualdade Racial, será composta por, no mínimo: I – 2 (dois) servidores da Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial com conhecimentos no campo das relações raciais, cabendo a um deles a presidência do colegiado;

II – 1 (um) servidor da Coordenadoria de Gestão de Pessoas – COGEP, da Secretaria Municipal de Gestão, com conhecimentos no campo das rela-ções raciais;

III – 1 (um) representante da sociedade civil com notório saber no campo das relações raciais;

IV – 1 (um) representante da sociedade civil, com comprovada participa-ção duradoura no movimento social negro (SÃO PAULO, 2016).

A busca de objetividade levou ao paroxismo de se reproduzirem os crité-rios de tipologização de raças da “ciência” frenológica do século XIX, tal como fez o edital da Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em 2016 (ver Quadro 2).

Se, as primeiras comissões tinham sempre representantes de entida-des negras, isto é, grupos que cultivavam a identidade étnico-racial ne-gra no Brasil, elas rapidamente passaram a ser estabelecidas à revelia e fora da supervisão de tais entidades. Assim, por exemplo, a Resolução nº 769/2017, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), estabeleceu que:

Art. 6º - A Comissão prevista no artigo anterior será constituída a cada certame. § 1º - A Comissão de Avaliação será composta por um Juiz de Direito, um Médico e um Assistente Social Judiciário, estes dois últimos do quadro do Tribunal de Justiça, que serão designados pelo Presidente da Comissão do Concurso. § 2º - Não havendo médico do Quadro do Tribunal de Justiça na Região Administrativa Judiciária do concurso a Comissão de Avaliação será composta por um Juiz de Direito e dois Assistentes So-ciais Judiciários, estes dois últimos do Quadro do Tribunal de Justiça (TJSP, 2017).

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Fica claro, portanto, que o que está hoje em curso no Brasil é a recriação de fronteiras raciais a partir de fenótipos, esquecendo-se qualquer tipo de consideração de identificação étnica, considerada subjetiva pelos tri-bunais de justiça.

Trabalhando, ao mesmo tempo, com autoatribuição e heteroatribuição de cor/raça, diversos autores (TELLES, 2014; SCHWARTZMAN, 2008; BAILEY et al., 2013) notam que o indivíduo é discriminado racialmente pelo que aparenta ser, isso é, pelo modo como é classificado pelos outros, não pelo modo como se autoclassifica. Porém, mais importante ainda, Daflon (2017) e Lamont et al. (2016) demonstram que os pardos tendem a per-ceber a discriminação que sofrem, tal como medida por desigualdades socioeconômicas em relação aos brancos, não como discriminação de raça, mas de classe.

De fato, foi o modo de discriminar baseado apenas na aparência física que fez a sociologia falar em discriminação racial, e não apenas étnica, ou de classe, isto é, um modo de identificar e agrupar pessoas segundo características fisionômicas raciais, e não segundo seu modo de vida ou hábitos sociais. Se, portanto, a política de cotas visava corrigir a discrimi-nação racial, deveria ser a heteroclassificação a prevalecer. Essa parece ser a lógica que presidiu várias falas de ativistas que se manifestaram a favor das comissões (MAIO; SANTOS, 2005). Mas, aqueles que são contra as comissões apontaram um paradoxo: o acesso ao emprego ou à educa-ção (direito do discriminado) estaria sendo garantido por meio da viola-ção do direito do postulante à autodeclaraviola-ção da identidade, posto que é possível que uma comissão ajuíze, à sua revelia, a sua pertença racial. Ainda que se conteste este argumento, posto que a autodeclaração está claramente garantida pelos editais, ainda assim poder-se-ia argumentar que as comissões suspendem e tolhem o direito universal à autodeclara-ção. Para que direito não fosse sustado, a comissão deveria também de-monstrar a falsidade do pertencimento étnico, ou seja, que a autodecla-ração seria fraudulenta em si mesma, independentemente de fenótipos. O único meio de fugir desse paradoxo moral parece ser encontrar um critério objetivo, passível de ser eticamente verificável, para a discrimi-nação. Quer dizer, buscar indicadores de discriminação efetiva e não

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apenas potencial (que é o modo como se é percebido e classificado pela comissão). A rationale por trás desse argumento é a seguinte: se caracte-rísticas físicas podem levar e certamente levam a discriminações raciais, estas devem deixar marcas na trajetória de um indivíduo – em que es-colas estudou, qual a renda familiar de sua família de origem etc. Estes seriam indicadores que os legisladores e autoridades públicas deveriam buscar para estabelecer a lei de cotas em universidades públicas.

Isso é exatamente o que se encontra na Lei no 12.711, de 29 de agosto de 2012, que regulamenta o sistema de cotas no preenchimento de vagas nas universidades federais. Essas universidades reservam aos autode-clarados pretos, pardos e indígenas um percentual de vagas que varia de acordo com a percentagem dessa população em cada estado da Federa-ção, mas condicionam a seleção aos alunos egressos de escolas públicas (50% de todas as vagas), e aos que têm renda familiar igual ou inferior a 1,5 salários mínimos (50% das vagas anteriormente reservadas). Ou seja, a proporção de negros é aplicada aos que preencheram as duas condi-ções anteriormente citadas – egresso de escola pública e origem familiar de baixa renda.

Talvez, pelo fato de a condição racial estar associada a duas outras con-dições sociais, a origem escolar e a renda familiar, os exames vestibula-res ensejem menos debates sobre a autodeclaração de cor/raça dos seus candidatos e sobre a necessidade de comissões verificadoras.

Numa primeira aproximação, estamos, portanto, diante de um fenôme-no de clausura social (PARKIN, 1979), tal como teorizado por Max Weber (1998), que limita vantagens competitivas a um grupo de pessoas porta-doras de certas características físicas, corpóreas, como certos fenótipos – cor da pele, textura do cabelo, formato dos lábios etc. – características adscritas pelos colonizadores europeus aos africanos e seus descenden-tes. Tal clausura é reivindicada e algumas vezes também garantida por organizações reconhecidas pelo Estado brasileiro – governos federal, es-tadual e municipal – como representantes políticos legítimos dos negros, designação que abarca os definidos como pretos ou pardos. Tal fechamen-to, entretanfechamen-to, beneficia apenas aqueles que aceitarem de espontânea

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vontade se autodeclarar pretos ou pardos. Ou seja, o fechamento do be-nefício serve para excluir (não para incluir) voluntários e requerentes ao benefício que não sejam reconhecidos a partir de fenótipos, excluin-do-se, portanto, qualquer reivindicação identitária baseada apenas em conformidade política, ideológica, cultural, ou detectável apenas gene-ticamente (EL-HAJ, 2007).

A pergunta que me interessa é: estará tal clausura recriando a identidade racial negra que prevaleceu antes da onda de protestos e movimentos negros no pós-1988? Ou seja, estará reforçando a velha definição brasi-leira de raça como aparência física? Validando a velha ideologia racial de que certas pessoas embranquecem, deixam de ser negras, dependendo dos azares da genética? A julgar por algumas falas de ativistas que pode-mos recolher, a resposta é sim.

Tal como recolhida por Maio e Santos (2005), Dione Moura, relatora da Comissão de Implantação do Plano de Metas de Integração Social, Étnica e Racial da UnB, teria declarado na ocasião: “Sabemos que haverá ca-sos de irmãos em que um terá a inscrição homologada e outro não”. Do mesmo modo, a mencionada fala do frei Davi revela que tanto inclusão étnica (cultural) quanto genética não são consideradas suficientes. Mantendo-se tal política, portanto, é possível que a autodeclaração cen-sitária branca, que vinha caindo desde os anos 1980 (ver Quadro 3), volte a crescer nos próximos censos, dada a abrangência dessas políticas que já se estendem por boa parte do emprego no serviço público e na edu-cação superior pública (IBGE, 2018). Afinal de contas, a discriminação ra-cial contra pretos e pardos continua a existir em nossa sociedade. Assim, além dos incentivos sociais já presentes, os indivíduos terão incentivos institucionais negativos para se declararem negros. É possível também que o peso das dimensões culturais e políticas da identidade racial, que vinham se consolidando há décadas, seja revertido (GUIMARÃES, 2012). Ou seja, que afinal se consolide uma forma de identidade branca bra-sileira tão abrangente quanto a do início dos 1960, e que algum tipo de multirracialismo efetivamente se enraíze no país.

Essa forma de racialização de brancos por exclusão, ou seja, brancos que são definidos por não serem considerados negros, ou que voltam a se definir como brancos pelo receio de se submeterem a comissões

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averiguadoras, parece relativizar as virtudes morais que se possam atri-buir a processos de formação racial. Ou seja, tal como todas as demais formações de grupo – nacionais, étnicos e religiosos – a formação racial está sujeita às mesmas vicissitudes morais proporcionadas pelas clau-suras sociais, e à monopolização de vantagens competitivas, estudadas por Weber (1998).

Mas, é também possível que o movimento de definição fenotípica do gru-po racial, ocorrendo em paralelo com seu fechamento cultural, ou seja, acompanhado de protagonismo político para delimitar de modo mais preciso o que seria a “cultura negra”, conduza, no longo prazo, à estabili-zação do grupo étnico-racial. Essa tendência pode ser acompanhada no Brasil por discussões apaixonadas em redes sociais e na mídia em geral sobre o que seria apropriação cultural, e sobre o significado moral do uso de turbantes por mulheres fenotipicamente não negras (OLIVEIRA, 2016). Ou seja, como sempre, o embate político-racial brasileiro continua em aberto: serão reconhecidos e beneficiados por cotas apenas os brasileiros de aparência negra, ou serão todos os descendentes de uma raça discri-minada que merecem o reconhecimento de sua condição étnica singu-lar? Provavelmente, essas duas identidades sociais continuarão por mui-to tempo a disputar o espaço público, mas hoje o Estado brasileiro, por meio de seu Poder Judiciário, parece mais inclinado a referendar apenas a primeira delas. Ou seja, apesar de toda mobilização étnica das últimas décadas, parece que se cristaliza em termos de legislação o que era cos-tumeiro nos anos 1950: cor é apenas uma aparência. Se naqueles anos observadores argutos como Sartre7 notavam o caráter desracializado que intelectuais e trabalhadores negros queriam emprestar à aparência física – afastando-se tanto da pertença étnica quanto da consciência racial –, hoje, na defesa de posições de monopólio, a aparência física se resguarda no discurso da consciência étnico-racial de ativistas negros.

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Fonte: Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Disponível em: <http://www.planejamento.gov.br/assuntos/servidores/arquivos/20170124OrientacaoNormativa03.pdf>

Anexos

QUADRO 1: Orientação Normativa nº 3/2016, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão

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Fonte: MEC/IFPA. Disponível em: <https://ifpa.edu.br/documentos-institucionais/0000/concurso-tae-2016/2711-anexo-iv-padro-es-avaliativos/file>

QUADRO 2: Anexo IV do concurso público do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará

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Fonte: Elaborado pelo autor, com base nos censos demográficos do IBGE, 1872-2010 (IBGE, 2018). Brancos em azul; pardos em cinza, pretos em preto.

Notas

1 Versão anterior desse texto foi apresentada na reunião da Latin American

Studies Association, em Lima, maio de 2017. Esse texto foi escrito com o respaldo institucional da Simón Bolivar Chair, do Centre of Latin American Studies, University of Cambridge.

2 Há vários artigos e livros recentes analisando os diferentes sistemas de

cotas implantados pelas universidades brasileiras. Para uma visão geral e comparativa, ver Paiva (2010) e Daflon et al. (2013).

3 Em sua Recomendação Geral VIII de 1990, o Comitê declarou que, depois de ter considerado os relatórios dos países membros sobre as formas como os indivíduos foram identificados como membros de grupos raciais ou étnicos, é de opinião que tal identificação, se não houver justificativa em contrário, deve basear-se na autoidentificação do indivíduo em questão (BANTON, 1996, p. 334).

38.1 44.0 63.5 61.7 61.1 54.2 51.6 53.7 47.8 19.7 14.6 14.6 11.0 8.7 5.9 5.0 6.2 7.6 32.4 21.2 26.5 29.4 38.9 42.5 38.5 43.1 0.0 10.0 20.0 30.0 40.0 50.0 60.0 70.0 1872 1890 1940 1950 1960 1980 1991 2000 2010

População residente por cor nos anos censitários

QUADRO 3: Evolução em termos percentuais da população residente no Brasil, segundo a cor

(41)

4 Declaração da Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação

Racial, a Xenofobia e Intolerância Correlata: “§92. Insta os Estados a recolher, compilar, analisar, divulgar e publicar dados estatísticos fiáveis a nível nacional e local e realizar todas as outras medidas relacionadas que sejam necessárias para avaliar regularmente a situação de indivíduos e grupos de indivíduos vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância relacionada: (a) Esses dados estatísticos devem ser desagregados de acordo com a legislação nacional. Qualquer informação desse tipo deve ser recolhida, se for o caso, com o consentimento explícito das vítimas, com base na sua autoidentificação e em conformidade com disposições em matéria de direitos humanos e liberdades fundamentais, tais como regulamentos de proteção de dados e garantias de privacidade” (BRASIL, 2001, p. 63).

5 A respeito da disputa crescente sobre a definição de indígenas e quilombolas

e as aporias entre auto e heteroclassificação ver, entre outros, Boyer (2014).

6 “Não há, pois, ilegalidade na realização da entrevista. Contudo, o que se

exige do candidato é a condição de afrodescendente e não a vivência anterior de situações que possam caracterizar racismo. Portanto, entendo que a decisão administrativa carece de fundamentação, pois não está baseada em qualquer critério objetivo [...] Considero que o fato de alguém ‘se sentir’ ou não discriminado em função de sua raça é critério de caráter muito subjetivo, que depende da experiência de toda uma vida e até de características próprias da personalidade de cada um, bem como do meio social em que vive. Por isso, não reconheço tal aspecto como elemento apto a comprovar a raça de qualquer pessoa” (BRASIL, 2013).

7 “O negro, como o trabalhador branco, é uma vítima da estrutura capitalista

da nossa sociedade; esta situação revela a sua estreita solidariedade, para além dos tons de pele, com certos grupos de europeus oprimidos como ele. Tal situação encorajou-o a projetar uma sociedade sem privilégios, onde a pigmentação da pele será um simples acidente” (SARTRE, 1948, p. XIII).

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Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v. 12 n. 34 | p. 21-43 | set./dez. 2018 Antonio Sérgio Alfredo Guimarães

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Referências

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo ARE 726611 RS. Diário da Justiça Eletrônico, n. 176, p. 132, 09 set. 2013. Disponível em: <http:// www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=4481777&tipo=DJ&descricao=D JE%20N%BA%20176%20-%2006/09/2013>. Acesso em: 03 abr. 2017.

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