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Desigualdades e políticas afirmativas

No documento Revista Sinais Sociais / Sesc (páginas 90-93)

frentar as barreiras econômicas e sociais que se interpõem no acesso equitativo da população aos distintos níveis educacionais. É nesta pers- pectiva que as políticas de ação afirmativa devem ser avaliadas.

Políticas afirmativas, como a adoção de cotas para o ingresso nas uni- versidades e institutos públicos, federais e estaduais, são uma expressão de políticas distributivas, visto que alteram regras de acesso a um bem escasso que, até então, estava protegido por um conceito de “mérito” que ignorava as condições de partida dos concorrentes (WALTENBERG; CARVALHO, 2012, p. 39). Políticas de ação afirmativa provocam intensos debates em sociedades democráticas pois assumem a necessidade de uma intervenção normativa sobre processos que estavam socialmente garantidos pelo poder daqueles que deles se beneficiavam. Os grupos historicamente excluídos detêm menor capacidade de vocalizar seus ar- gumentos em favor das mudanças e, desse modo, suas razões alcançam baixa repercussão no debate público.2

A participação de argumentos no debate público continua sendo o meio pelo qual grupos de interesse pressionam as políticas para reorganizar o acesso a direitos e benefícios dos quais estão excluídos por motivos que não podem ser racionalmente aceitos sem que se questionem os conceitos de justiça e democracia que amparam a vida coletiva nas so- ciedades democráticas. Assim, o tema das cotas não diz respeito apenas ao acesso de determinados indivíduos a um bem socialmente valorizado e economicamente relevante, mas também questiona quais as concep- ções de justiça, liberdade e igualdade de direitos que estão vigentes na sociedade.

A noção de justiça está longe de ser consensual nas sociedades moder- nas. No caso brasileiro, em que sobrevivem e vigoram concepções que naturalizam privilégios, o questionamento sobre o que é justo ou injusto em determinada circunstância encontra ferrenhos contendores. Por isso, a implantação de políticas redistributivas não é um consenso no país, os debates são acirrados e os preconceitos se antecipam às informações. Uma pesquisa nacional procurou conhecer como os diferentes grupos da sociedade brasileira – considerando gênero, raça/cor, renda, escola- ridade, ocupação e região – avaliam as políticas sociais e até onde estão dispostos a apoiar iniciativas que redistribuem o acesso a direitos, bens e serviços.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v. 12 n. 34 | p. 85-117 | set./dez. 2018 André Lázaro

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Uma pesquisa dessa abrangência talvez não possa nos prometer coerên- cia nas respostas, levando em conta os diferentes interesses que cada um desses agregados sociais tem sobre os bens em questão e as for- mas de sua repartição na sociedade. Questionados, por exemplo, sobre as causas da pobreza,

[...] 23% dos entrevistados concordaram totalmente que as pessoas per- manecem na pobreza principalmente pela falta de oportunidades, 24,4% mostraram-se neutras, e 27,2% estavam em total desacordo (logo, viam a permanência da pobreza mais como uma falta de interesse ou esforço individual em ‘correr atrás do trabalho’) (LAVINAS, 2014, p. 132).3

Se fosse possível sintetizar o conjunto das opiniões, desfazendo os paradoxos identificados e desenhando uma “opinião média” sobre a redistribuição de bens em nossa sociedade, a pesquisa nos daria dois qualificativos para essa iniciativa: ela deve ser “condicionada e restrita” (LAVINAS, 2014, p. 137). A recepção ao Programa Bolsa Família exem- plifica esse posicionamento quando até mesmo personagens com lon- ga atuação na vida pública brasileira propõem que o benefício dado às famílias mais pobres deve, além das atuais condicionalidades, agregar a obrigação da participação dos familiares em reuniões regulares nas escolas em que seus filhos estão matriculados e que essas crianças al- cancem resultados de aprendizagem tais que justifiquem o recebimento do benefício por suas famílias. Jovens estudantes se tornam precoces arrimos de família (BRITTO, [2010], p. 14). Essa lógica “meritocrática” atravessa o debate sobre a adoção de políticas afirmativas para ingresso na educação superior e se radicaliza quando estas levam em conta as- pectos de raça/cor para a seleção dos estudantes.

Na lógica “meritocrática”, em que as diferenças de condições de partida são elididas, a questão racial é um tema que afronta os parâmetros com que se medem e se justificam as desigualdades existentes no país. O de- bate que acompanhou a adoção das cotas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (MACHADO, 2013) foi apenas um episódio dos muitos que ocuparam as agendas de tribunais e os artigos dos jornais, onde aflora- ram racionalizações sobre o racismo, a pobreza, o esforço e o mérito. Em regimes democráticos é necessário que políticas públicas sejam le- gitimadas por um processo complexo de debate público que se trava na sociedade civil (mídia, fóruns, eventos, publicações etc.), nas câmaras

legislativas, onde essas políticas são aprovadas, e nos tribunais, onde elas são questionadas. Assim, não basta o fato de a política realizar uma determinada concepção de justiça, ela precisa ser aceita pela sociedade e suas instituições como uma maneira válida de aplicação dessa concep- ção de justiça ao problema em questão. O caso da ação afirmativa é em- blemático neste sentido. Para que ela se consolidasse foi necessário que o conceito de mérito fosse revisado, passando a incorporar a igualdade de oportunidade como requisito.

Para populações cujo acesso à educação foi restrito há várias gerações,4 a matrícula na escola já se afigura como uma conquista inestimável e seus impactos são esperados nas várias dimensões da vida individual e cole- tiva. O acesso e a permanência na escola, para quem não a frequentou, parecem significar automaticamente a conquista dos benefícios que a educação promete. No entanto, não é isso que as pesquisas de aprendi- zagem verificam.

Em diversos estudos comparativos sobre níveis de aprendizagem de acordo com as séries escolares frequentadas, estudantes brasileiros apresentam majoritariamente resultados insatisfatórios face a seus equivalentes estrangeiros.5 Nas avaliações nacionais, como a Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA) e a Prova Brasil, a desigualdade eco- nômica tem sido apontada como um fator que crescentemente separa os estudantes de acordo com o nível socioeconômico de suas escolas. Estudo de Francisco Soares, levando em conta os resultados da Pro- va Brasil, aponta que em 2005, por exemplo, pouco menos de 20% dos estudantes da 4ª série / 5º ano de escolas mais pobres alcançaram ní- veis “adequado” e “avançado” na leitura, contra 39% dos estudantes de escolas mais ricas. Já em 2013, enquanto nas escolas mais pobres a proporção de estudantes naqueles níveis alcançou 21%, entre os mais ricos a proporção foi de 56,4%. Ou seja, os estudantes mais pobres não progrediram nada, enquanto que os mais ricos aumentaram considera- velmente sua competência, levando ao aumento da desigualdade entre os dois grupos de menos de 20% em 2005 para mais de 35% em 2013 (SOARES, 2017).

No documento Revista Sinais Sociais / Sesc (páginas 90-93)