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Justificando as políticas

No documento Revista Sinais Sociais / Sesc (páginas 131-139)

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relações sociais e que, nessas circunstâncias, o valor igualdade adquira proeminência sobre o mérito (FERES JÚNIOR, 2006, p. 48-50). Trata-se, por- tanto, de um argumento que enfatiza o acúmulo de injustiças passadas. A reparação e correção de desigualdades históricas é uma das justifica- tivas apresentadas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), que em 11 de janeiro de 2017 adotou a política de reserva de vagas em todos os processos seletivos para os cursos de pós-graduação. De acordo com o reitor da UFBA, Prof. João Carlos Salles, a ação afirmativa “busca avançar na correção de desigualdades históricas, tornando a UFBA plena em sua vocação inclusiva” (UFBA, 2017). A Portaria Normativa nº 13, emitida pelo Ministério da Educação, também argumenta que “a adoção de Políticas de Ações Afirmativas na graduação não é suficiente para reparar ou com- pensar efetivamente as desigualdades sociais resultantes de passi vos históricos [...]” (BRASIL, 2016b).

O argumento da justiça social, por sua vez, foca na desigualdade do pre- sente, de modo que a mera constatação de desigualdades na atualidade seria suficiente para justificar a criação de medidas corretivas (FERES JÚ- NIOR, 2006, p. 52). No caso dos negros e indígenas, estes são discrimi- nados em razão de estereótipos étnico-raciais e a variável raça/cor está diretamente relacionada a uma grande desigualdade socioeconômica e à dificuldade de mobilidade social ascendente (HASENBALG, VALLE SILVA, 1999), o que seria suficiente para justificar a instituição de políticas para promoção desses indivíduos nas universidades e no mercado de traba- lho. Assim, as ações afirmativas permitiriam superar as desigualdades fáticas e estariam ligadas à distribuição de justiça e à criação de uma efe- tiva igualdade de oportunidades aos indivíduos, por meio da realocação de bens e oportunidades existentes na sociedade (DWORKIN, 2002, 2012). Como exemplo de programa que mescla os argumentos da reparação e da justiça social, podemos mencionar a política de ação afirmativa do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS-MN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A políti- ca foi instituída após demandas de um coletivo de alunos do programa, em razão da baixa presença de estudantes negros e indígenas no corpo estudantil do programa, e também com o objetivo de reparar práticas históricas de discriminação contra tais grupos. Segundo o documento intitulado “Política de Acesso Afirmativo: uma proposta para o ingresso

de indígenas e negros no PPGAS-Museu Nacional (UFRJ)”, apresentado em 2007, havia uma desigualdade no quadro de discentes, visto que até o referido ano apenas quatro negros haviam sido titulados doutores pelo programa, sendo dois estrangeiros. Tal quadro demonstrava uma alta desigualdade racial dentro do Programa de Pós-Graduação do Museu Nacional, o que justificava a criação de políticas afirmativas. Ademais, a proposta ressaltava que, naquele ano, o PPGAS-MN contava com cinco alunos negros e um indígena em um universo de mais de cem alunos. Assim, dentre os argumentos e justificativas apresentados pelos discen- tes formuladores da proposta, destacam-se: a baixa representatividade de negros e indígenas no corpo discente e docente do PPGAS-MN; a necessidade de criar uma política orientada para a redução das desi- gualdades raciais; bem como a necessidade de “contribuir para que a segregação racial constatada na sociedade brasileira não se reproduza de modo cada vez mais acentuado na prática acadêmica” (UFRJ, 2007, p. 2). O argumento da justiça social em razão da baixa representatividade de determinados grupos também é mencionado pelo Programa de Pós-Gra- duação em Direito da UFPA, segundo o qual a inclusão de estudantes autodeclarados pretos, índios e de pessoas com deficiência se justifica pela baixa participação desses grupos no ensino superior. Assim, a prin- cipal função da ação afirmativa seria aumentar a representatividade de minorias tradicionalmente oprimidas em instituições nas quais sua par- ticipação é baixa (DWORKIN, 2002). Os dados iniciais retirados dos censos demográficos demonstram que a pós-graduação é predo minantemente branca (FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS, 2015; ARTES, 2016), o que justifi- caria a criação de políticas para ampliar as oportunidades de acesso de negros e indígenas na pós-graduação.

A política das universidades estaduais do Rio de Janeiro, criada pelo Projeto de Lei nº 694/2011, também utiliza o argumento da justiça social ao sustentar que a criação de cotas na pós-graduação tem por objetivo garantir aos recém-formados carentes o acesso ao mercado de trabalho, visto que o ensino superior não é suficiente para a qualificação profis- sional e os cursos de aperfeiçoamento técnico-profissionais (especiali- zações) oferecidos pelas universidades públicas possuem valores ele- vados. O texto da lei também afirma que a medida tem por finalidade assegurar gratuitamente aos graduados o “aprimoramento, qualificação

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e a especialização profissional”, desde que carentes e preenchidos os demais requisitos legais (RIO DE JANEIRO, 2014).

Além da reparação e da justiça social, foram encontrados programas que utilizam o argumento da diversidade. Segundo a Portaria Normati- va nº 13 emitida pelo Ministério da Educação, as ações afirmativas para negros, indígenas e pessoas com deficiência têm por objetivo ampliar a diversidade étnica e cultural do corpo discente (BRASIL, 2016b). A di- versidade étnica também é um dos argumentos utilizados pela Univer- sidade do Estado da Bahia (UNEB) e pela Universidade Federal de Goiás (UFG), instituições que aprovaram políticas afirmativas para todos os seus cursos de pós-graduação.

Em comparação com os outros argumentos utilizados para a justifi- cação das ações afirmativas, a diversidade tem grande aceitação por conceber as ações afirmativas de uma perspectiva utilitarista – voltada para o bem comum – e não de uma perspectiva de compensação de injustiças passadas (SABBAGH, 2007, p. 43). A justificação das ações afir- mativas com base na diversidade leva em consideração os benefícios que um corpo estudantil mais diversificado traz à educação superior (FERES JÚNIOR, 2006, p. 53-54) e é bastante utilizada, especialmente nos Estados Unidos em decorrência das decisões da Suprema Corte (HO- CHSCHILD, 1998; BOWEN, BOK, LOURY, 2000; ORFIELD; KURLAENDER, 2001; KENNEDY, 2015). Michael Sandel (2009) considera que a lógica da diversidade é um argumento em nome do bem comum, porquanto um corpo discente racialmente misto oferece uma maior gama de perspec- tivas em comparação com um corpo discente homogêneo em termos de raça, etnia e classe.

Todavia, ao invocar a promoção da diversidade, a questão de se merecer tratamento diferenciado em razão de injustiças passadas deixa de ter importância (WARIKOO, 2016), não sendo necessário mensurar e com- provar os danos causados aos beneficiários da ação afirmativa, o que dilui a ideia de reparação (FERES JÚNIOR, 2006, p. 54). Ademais, Feres Júnior (2006) ressalta que a diversidade trabalha, de certa forma, contra o argumento da justiça social, visto que a questão da desigualdade e da discriminação no presente é diluída pela valorização da diferença em termos de cultura e etnia, conceitos estes mais vagos e de difícil ope- racionalização. Vale ressaltar, ainda, que o argumento da diver sidade

TABELA 1: Argumentos apresentados pelas universidades e programas de pós-graduação

Reparação Justiça social Diversidade

Reparação de práticas históricas contra a

exclusão e opressão de índios e negros Baixo número de discentes e docentes negros e indígenas

Concepção pragmática. Diversidade de perspectivas e pontos de vista. Corpo estudantil mais diversificado traz benefícios para a experiência educacional em geral. Engloba diversidade geográfica, de gênero, religiosa, étnica-racial, socioeconômica, etc.

Insuficiência das ações para graduação na compensação integral das desigualdades raciais

Necessidade de reduzir as desigualdades

raciais Concepção essencialista. Diversidade cultural. Correlação entre raça e cultura.

Ampliação do acesso ao mercado de trabalho Inclusão social de grupos socialmente desfavorecidos

Igualdade de oportunidades para acesso e permanência

assume uma correlação entre raça e cultura bastante essencialista, como se pretos e pardos possuíssem uma cultura específica e bastante diferenciada daquela dos brancos brasileiros em geral (SILVA, 2006, p. 148; LAMONT et al., 2016, p. 146-149).

Assim, a partir das informações constantes dos documentos oficiais9 dos programas de pós-graduação e das universidades que criaram ações afir- mativas voltadas para esse nível educacional, nota-se que os argumen- tos utilizados para justificar a adoção de tais medidas se encaixam nas categorias de justificação mencionadas acima e podem ser distribuídos conforme a Tabela 1:

Fonte: Elaboração da autora.

Um dos principais pontos de discussão acerca das ações afirmativas é a denominação das políticas como “cotas”. Essa modalidade de políti- ca, também conhecida como sistema de reserva de vagas, corresponde à destinação de uma parcela das vagas a estudantes pertencentes a certos grupos sociais e/ou étnico-raciais. Todavia, nem todos os programas ado- tam cotas.

Entre as 41 políticas para pós-graduação encontradas, 73,17% aplicam ex- clusivamente o sistema de cotas, enquanto outros programas (a) oferecem

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GRÁFICO 2: Número de iniciativas de acordo com a modalidade adotada (N=41)

0 5 3 3 2 2 1 10 15 20 25 30 35 30 Cota

Cota + Vagas adicionais Vagas adicionais Cota + Processo seletivo separado Vagas adicionais + Processo seletivo separado Processo seletivo separado

certo número de vagas adicionais destinadas exclusivamente para pes- soas pertencentes a determinados grupos; (b) estabelecem cotas para um determinado grupo e vagas adicionais para outros grupos de beneficiá- rios; ou (c) criam vagas adicionais para determinados grupos, os quais são submetidos a processos seletivos separados e com regras distintas.

Fonte: Elaboração da autora.

É importante salientar que os processos seletivos para pós-graduação possuem fases e características distintas do acesso aos cursos de gradu- ação, que é feito mediante a realização de provas de conhecimento geral como os vestibulares e do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) com base no currículo obrigatório do ensino fundamental e médio estabele- cido pelo Ministério da Educação (MEC). Por garantir o anonimato dos candidatos, o vestibular e o Enem são considerados métodos de seleção impessoais em comparação a outras formas de seleção que envolvem comitês de seleção, entrevistas e cartas de recomendação, entre outros. Já nos processos seletivos para pós-graduação não há unificação de cri- térios de seleção, sendo comum haver não apenas a realização de provas de conhecimento específico como também testes de proficiência de idio- mas, além de entrevistas com possíveis orientadores e/ou com bancas de avaliação e da apresentação de cartas de recomendação, entre outros. A definição dos critérios de seleção aplicáveis aos programas de pós-gradu- ação fica a cargo das instituições de ensino superior e, frequentemente, de cada programa de pós-graduação. Dessa forma, os critérios de seleção frequentemente variam dentro de uma mesma universidade.

Nota-se que, na maioria dos programas de pós-graduação que adotaram ações afirmativas, a reserva de vagas não exclui as fases tradicionais do processo de admissão dos candidatos. Entretanto, se as ações afirmati- vas têm por objetivo final incluir indivíduos de grupos desfavorecidos na pós-graduação, alguns desses procedimentos tradicionais têm alto po- tencial de exclusão, que afeta diretamente a efetividade das medidas. Por exemplo, estudantes em situação de hipossuficiência econômica ou in- dígenas são frequentemente eliminados nas primeiras fases dos proces- sos seletivos em razão da exigência de idiomas. Santos (2010) aborda tal questão ao discorrer sobre o processo de criação da área de concentração em direitos humanos pela Faculdade de Direito da USP e da aplicação das cotas. No processo seletivo do programa, a prova de língua estrangei- ra é eliminatória na primeira fase. O autor exemplifica que no primeiro processo seletivo após a criação da área e das cotas, 61 estudantes se candidataram para as vagas reservadas, mas apenas quatro obtiveram aprovação na prova de idiomas. Tal cenário resultou no questionamento do processo seletivo perante o Ministério Público do Estado de São Paulo e a abertura de um inquérito civil, no qual a Promotoria recomendou a redução da nota para aprovação na prova de proficiência em língua es- trangeira (nota 7) como forma de permitir o preenchimento das vagas di- recionadas. Questiona-se, assim, se especificidades do processo seletivo para pós-graduação foram e estão sendo levadas em consideração pelos programas de pós-graduação e pelas universidades quando da formula- ção da política.

A redução da nota para aprovação em etapas do processo seletivo foi uma das medidas adotadas pelo PPGAS-MN da UFRJ. A proposta de ação afirmativa elaborada pelo coletivo de alunos explicitava que os candidatos deixavam de ingressar no programa por dois motivos: (a) o candidato era aprovado com nota superior a 7 (sete) nas três primeiras fases eliminatórias, mas não obtinha classificação suficiente para ser admitido; ou (b) o candidato não obtinha a nota mínima, 7 (sete), para aprovação em qualquer uma das fases e era reprovado na seleção. Em vista disso, a proposta ressaltava que as barreiras ao acesso de negros no programa não seriam removidas apenas com a criação do adicional de vagas, sendo necessário adotar outras medidas, tais como a redução da nota de corte.

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A Política de Acesso Afirmativo foi aprovada pelo colegiado do PPGAS-MN em reunião de coordenação realizada em 8 de novembro de 2012 (UFRJ, 2012). Nos termos da Resolução nº 6/2012, o programa passou a adotar duas linhas de ação afirmativa a partir da seleção para mestrado e dou- torado realizada em 2013 (com início em 2014): uma para candidatos in- dígenas e outra para candidatos negros. A política para os candidatos indígenas consiste na criação de vagas adicionais reservadas (cujo nú- mero será estipulado conforme a demanda),10 bem como na realização de um processo seletivo com fases diferentes do processo tradicional, no qual os estudantes pertencentes a esse grupo não precisarão passar pelas fases da prova escrita, da prova oral e da tradução de textos em lín- gua estrangeira. No caso dos candidatos negros, a resolução determina que o programa terá, anualmente, um adicional de vagas de, no mínimo, 20% do total de vagas oferecido a cada ano. Os candidatos autodeclara- dos negros que optarem pela ação afirmativa passarão por todas as fases do processo seletivo, mas terão nota de corte 5 (cinco) em todas as fases do processo.

Além da redução das notas de corte para aprovação em fases, tais como a prova de proficiência em línguas estrangeiras, há programas que esta- belecem um prazo maior para que os cotistas comprovem a proficiência11 ou estabelecem que a prova seja apenas classificatória e não eliminató- ria, permitindo a realização de um novo teste após um certo lapso tem- poral, bem como há aqueles que preveem o oferecimento de cursos de idiomas instrumentais para os alunos optantes pelas ações afirmativas que não obtiverem nota suficiente na prova (UNB, 2016) e os que isentam estudantes da prova de línguas estrangeiras, especialmente os indíge- nas.12 Ademais, há programas que estabelecem que os alunos ingressan- tes beneficiados pelas ações afirmativas deverão ter prioridade na obten- ção das bolsas de estudo disponíveis, de modo a permitir não apenas o acesso desses estudantes, como também sua permanência (UNB, 2016; UFSC, 2016).

Nota-se que alguns programas buscaram criar políticas que levassem em consideração as características específicas dos grupos beneficiários e tor- nassem o processo seletivo mais inclusivo. Todavia, conforme ressaltado acima, na maioria das iniciativas analisadas os alunos beneficiados pe- las políticas afirmativas são submetidos às mesmas provas e critérios de

admissão dos alunos regulares, fato este que pode impactar o potencial inclusivo dessas medidas.

Entretanto, a redução de notas ou a isenção de fases do processo seletivo pode esbarrar na discussão sobre mérito e sobre excelência acadêmica. Em 7 de setembro de 2013, o jornal O Estado de S. Paulo publicou editorial criticando tais políticas sob o argumento de que a reserva de vagas em cursos de pós-graduação relativiza o princípio da competência (mérito) e resultará na perda de eficiência da pós-graduação (O ESTADO DE S. PAULO, 2013). Ou seja, na visão do jornal, as cotas permitem o ingresso de pes- soas não qualificadas em razão de um abrandamento ou relativização do critério do mérito.

Tal argumento tem como base a ideia de que o merecimento (mérito) dos candidatos é aferido por seu desempenho nos exames de seleção, de modo que um candidato merecedor de determinada vaga em uma pós-graduação seria aquele que obtém as maiores notas. No entanto, os processos seletivos para cursos de pós-graduação não são objetivos e impessoais com os da graduação, sendo conhecidos por um sistema de preferências (CARVALHO, 2003). Maher e Tetreault (2007) sustentam que a excelência não é tanto uma marca de qualidade como uma marca de privilégio, visto que as elites que controlam as normas da academia usam seu poder para manter novos grupos fora desse ambiente por meio de sutis barreiras à entrada. Lani Guinier (2015) também argumenta que as discussões sobre ações afirmativas deveriam endereçar a injustiça do sistema de mérito, já que o sucesso acadêmico de um indivíduo é alta- mente dependente da sua raça e status socioeconômico e a elite não re- conhece que privilégios são transmitidos de forma hereditária e que suas conquistas não são dependentes exclusivamente do mérito individual. Portanto, a alteração dos processos seletivos da pós-graduação para pos- sibilitar o ingresso de grupos historicamente excluídos passa também por uma revisão do conceito de mérito e pelo reconhecimento de que as seleções não são puramente objetivas e impessoais.

Outro aspecto importante das políticas afirmativas dos programas de pós-graduação é a definição de beneficiários. Diferentemente do que

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