• Nenhum resultado encontrado

Historiadora, pesquisadora de relações raciais e de gênero, consultora da Petrobras para as políticas de diversidade

No documento Revista Sinais Sociais / Sesc (páginas 47-52)

e equidade de gênero entre 2006 e 2016. Diretora da

Associação do Centro de Estudos Afro-Asiáticos e

consultora de empresas para políticas e programas

de diversidade e inclusão. Doutoranda do Programa de

Pós-Graduação em História Comparada do IFCS/UFRJ.

47

Resumo

O presente artigo traça a evolução histórica das ações afirmativas no Brasil tanto no âmbito do debate público quanto do desenvolvimento institucional com o intuito de introduzir a questão atual das ações afirmativas étnico-raciais no mercado de trabalho. Para tal, recons- trói a história de discriminação sofrida pelos afrodescendentes no país desde o momento imediatamente posterior à abolição da escra- vidão. Em seguida, examina o surgimento das demandas por igualda- de de oportunidades advindas do movimento negro no contexto da redemocratização e seu desenvolvimento até os dias de hoje, quando políticas de ação afirmativa étnico-racial estão sendo implantadas no mercado de trabalho, em consequência da aprovação da Lei nº 12.990/2014. Por fim, examina o caso concreto da aplicação de reser- va de vagas na contratação de funcionários da Petrobras, revelando os meandros de aplicação dessa política de inclusão, inclusive no que toca à questão da identificação racial.

Palavras-chave: Política imigratória. Discriminação racial. Ações afirmativas. Mercado de trabalho. Lei nº 12.990/2014.

Abstract

This article gives a historical retrospective of the patterns of discrimination against Afro-descendants in the Brazilian labor market and, at the same time, analyzes affirmative actions as a policy to address such discrimination. In this context, the article examines the Law 12.990/2014, which

established affirmative action for the entry of workers into the federal public administration. More specifically, the article explores the adoption of this new legislation at Petróleo Brasileiro (Petrobras) – an oil and gas company controlled by the federal government.

Keywords: Immigration policy. Racial discrimination. Affirmative action. Labor market. Law nº 12.990/2014.

Nos últimos quinze anos, a sociedade brasileira viveu intenso debate so- bre políticas de ação afirmativas destinadas à população afro-brasileira. Nessa trajetória foi possível apreciar os detalhes e o histórico de dis- criminações e desigualdades que permeiam as relações raciais no país. É inegável constatar os avanços obtidos nesse terreno – como, por exem- plo, a definição, aprovação e implementação de políticas públicas e le- gislações especialmente destinadas a corrigir o perfil de desigualdade e, dessa forma, contribuir para a superação das situações de discrimina- ção racial. Entre as medidas adotadas destaca-se, por exemplo, a Lei nº 12.990/2014, que destina 20% das vagas nos concursos públicos da admi- nistração pública direta e indireta aos afrodescendentes. Essa legislação sinaliza à sociedade brasileira o papel do Estado como indutor de me- didas efetivas para assegurar a representação dos afrodescendentes na condição de gestores públicos.

Além da Lei nº 12.990/2014 é possível citar outras legislações e programas como exemplos de ações afirmativas, porque propõem medidas desti- nadas à superação de situações de desigualdades e discriminações que afetam, particularmente, o conjunto da população afro-brasileira, como é o caso da Lei nº 10.639/2003, que institui o currículo de história e cultura afro-brasileira na rede de ensino, o Programa Universidade para Todos (PROUNI), formalizado na Lei nº 11.096/2005, o Estatuto da Igualdade Ra- cial, aprovado sob a Lei nº 12.288/2010, e a Lei nº 12.711/2012, que institui cotas para afrodescendentes nas universidades federais e instituições federais de ensino técnico.

Do ponto de vista institucional, esses avanços não devem ser subesti- mados, ainda mais quando considerado o fato de ter-se legislado sobre como enfrentar situações de desigualdade e discriminação racial com longo histórico no país. Em que pese um conjunto variado de resistências a essas medidas advindas de alguns setores e atores sociais, é impossível negar o ambiente de enraizamento público desse debate, forçando posi- cionamentos institucionais e a tomada de decisão destinada a assegu- rar os princípios de não discriminação e igualdade de oportunidade aos afro-brasileiros. Nesse trajeto registra-se como um marco também, em 2012, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que julgou a consti-

49

Wania Sant’Anna

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v. 12 n. 34 | p. 45-83 | set./dez. 2018 tucionalidade das cotas étnico/raciais para ingresso de alunos no ensino superior.

Em seu voto de relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fun- damental 186 (ADPF 186), movida pelo Partido dos Democratas (DEM) contra a política de cotas adotada pela Universidade de Brasília (UnB) com base em critério étnico/racial, o ministro Ricardo Lewandowski dei- xou claro que a Constituição brasileira autoriza o Estado a empreender medidas tanto universalistas quanto ações afirmativas no intuito de su- perar desigualdades decorrentes de situações históricas particulares. O ministro ainda declara:

Para as sociedades contemporâneas que passaram pela experiência da escravidão, repressão e preconceito, ensejadora de uma percepção de- preciativa de raça com relação aos grupos tradicionalmente subjuga- dos, a garantia jurídica de uma igualdade meramente formal sublima as diferenças entre as pessoas, contribuindo para perpetuar as desigualda- des de fato existentes entre elas.

De fato, o reduzido número de negros e pardos que exercem cargos ou funções de relevo em nossa sociedade, seja na esfera pública, seja na pri- vada, resulta da discriminação histórica que as sucessivas gerações de pessoas pertencentes a esses grupos têm sofrido, ainda que na maior parte das vezes de forma camuflada ou implícita (BRASIL, 2014, p. 66-67).

Como complementa Lewandowski:

Os programas de ação afirmativa em sociedades em que isso ocorre, en- tre as quais a nossa, são uma forma de compensar essa discriminação, culturalmente arraigada, não raro, praticada de forma inconsciente e à sombra de um Estado complacente (BRASL, 2014, p. 67).

Ou seja, o voto do relator pela constitucionalidade, seguido de forma unânime pelos demais ministros do STF, reconheceu o histórico de dis- criminações vivido por afro-brasileiros ao longo de gerações, em distin- tas esferas da realização humana, apontou a responsabilidade do Estado na perpetuação desse quadro de desigualdade e, finalmente, demonstrou que o princípio de igualdade de oportunidades não era efetivamente ob- servado em relação a esse segmento da população brasileira.1

O ministro Lewandowski também não se prendeu à costumeira polêmica sobre quem é ou quem não é “preto”, “pardo”, “negro”, “afrodescendente” ou “afro-brasileiro”. Em sua decisão houve reconhecimento da legalidade

das formas de identificação étnico/racial adotadas na UnB, reiterando que essas poderiam, sim, combinar autoidentificação e heteroidentifica- ção por terceiros, desde que esses procedimentos “jamais deixem de res- peitar a dignidade pessoal dos candidatos” (BRASIL, 2014, p. 86). A ADPF do DEM atacava particularmente a adoção de comissão de verificação por parte da UnB, e a decisão do ministro não foi silente a respeito desse tema.

Em tese, a decisão unânime do STF deveria sustentar várias recomen- dações expressas no Estatuto da Igualdade Racial (EIR), de 2010.2 E isso porque, embora o EIR tenha consagrado em seu Art. 4º, parágrafo único, a possibilidade de empreender “programas de ação afirmativa para repa- rar distorções e desigualdade sociais e demais práticas discriminatórias adotadas contra a população negra” (BRASIL, 2010), o posicionamento da corte, apoiado na Constituição, reforça a premissa de que as desigualda- des étnico/raciais podem e devem ser enfrentadas com medidas efetivas de correção que vão muito além do âmbito do ingresso na universidade, é claro, pois as situações de competição por postos de trabalho e serviços em uma sociedade capitalista são muitas, e o preconceito e a discrimina- ção racial incide potencialmente em todas elas.

Formalmente, essa decisão com os fundamentos e os argumentos ex- pressos no voto do ministro Lewandowski tem muitas implicações na definição de políticas de ação afirmativa no mercado de trabalho e, em especial, na implementação da Lei nº 12.990/2014. Isso porque as institui- ções que, por força da lei, são instadas a aplicá-la deveriam tomar essa decisão como parâmetro para a definição de processos de gestão de sua efetivação. No Brasil, são inúmeros os exemplos de decisões proferidas pelo STF que impactam e definem arranjos e procedimentos que devem ser adotados por empregadores em relação à força de trabalho. Susten- tando esse argumento, recorremos, por exemplo, a Vojvodic (2012) que aponta a tendência do direito constitucional de “concretizar o trabalho iniciado pelo legislador” e ressalta o mérito das cortes em afinar a aplica- bilidade de uma determinada legislação. Nas palavras da autora,

[...] a construção de regras jurídicas pelo legislador envolve um mecanis- mo de generalização que permite que ela seja aplicada a diversas situa- ções. [...] A tarefa de individualização da previsão legal, no entanto, não se limita à aplicação individual de uma regra às partes que eventualmente

51

Wania Sant’Anna

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v. 12 n. 34 | p. 45-83 | set./dez. 2018

se encontram em conflito. Pelo contrário, no momento em que fixa uma interpretação de determinada norma a um caso concreto, a ação do juiz revela-se mais abrangente (VOJVODIC, 2012, p. 20).

O argumento central de Vojvodic nessa apreciação é que, no que tan- ge aos princípios constitucionais, o Judiciário e, em especial, o tribunal constitucional, atua com um mandato complementar criando, legitima- mente, “sub-regras”, “condicionamentos”, “regulamento de princípios”, “cujos efeitos extrapolam a resolução de um caso individual já que res- trições feitas a direitos fundamentais devem ser aplicadas igualmente a todas as situações semelhantes” (VOJVODIC, 2012, p. 21).

Assim, não há justificativa para uma conduta diferenciada, e de contes- tação, quando essa corte legisla sobre medidas inclusivas de participação da população afrodescendente em razão de seu histórico de discrimi- nação e participação subalternizada em esferas pública e privada. Co- locando dessa forma, na próxima sessão deste artigo retomamos fatos do passado que, ao nosso juízo, justificam a adoção de políticas de ação afirmativa no mercado de trabalho como uma das estratégias possíveis à superação das desigualdades e discriminações étnico/raciais nos am- bientes e relações de trabalho.3 Sustentamos que rever esse passado de formação das relações de trabalho no Brasil pós-escravidão tem caráter relevante na formação de uma opinião pública favorável às políticas de ação afirmativa e reposiciona o debate sobre quem, efetivamente, deve ser alvo de seus benefícios à luz de uma justiça redistributiva.

O Brasil possui um longo histórico de interdição do acesso dos afro-bra- sileiros aos postos de trabalho. Da perspectiva de transição do sujeito ne- gro em sua condição escrava à condição de sujeito livre, talvez pudésse- mos considerar que essa interdição seja aquela que mais explicitamente orientou a condição de subordinação dessa parcela da população brasi- leira. Refiro-me aqui ao momento de transição do trabalho escravo para o trabalho livre, intermediada pela política de imigração europeia vigente no Brasil entre o final do século XIX e início do século XX. Nesse período, a orientação de substituição da mão de obra escrava pela mão de obra

Quando preferências se transformam em desigualdades:

No documento Revista Sinais Sociais / Sesc (páginas 47-52)