• Nenhum resultado encontrado

O DIREITO COMO CAMPO DE GOZO E O LAÇO SOCIAL

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2019

Share "O DIREITO COMO CAMPO DE GOZO E O LAÇO SOCIAL"

Copied!
405
0
0

Texto

(1)

WALTER RODRIGUES FILHO

O DIREITO COMO CAMPO DE GOZO

E O LAÇO SOCIAL

Direito, Pragmática e o Discurso Psicanalítico: uma crítica

na

razão jurídica

São Paulo

(2)

O DIREITO COMO CAMPO DE GOZO

E O LAÇO SOCIAL

Direito, Pragmática e o Discurso Psicanalítico: uma crítica

na

razão jurídica

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito (Filosofia do Direito), sob a orientação do Prof. Doutor Tércio Sampaio Ferraz Júnior.

São Paulo

(3)

O DIREITO COMO CAMPO DE GOZO

E O LAÇO SOCIAL

Direito, Pragmática e o Discurso Psicanalítico: uma crítica

na

razão jurídica

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito (Filosofia do Direito), sob a orientação do Prof. Doutor Tércio Sampaio Ferraz Júnior.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________

____________________________________________

____________________________________________

____________________________________________

(4)

Agradeço a meus familiares e amigos e, em especial, ao pai e amigo Walter Rodrigues (in memoriam), a quem dedico esta tese.

Ao Professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior, pela gentileza do tratamento e pelo ensino e orientação que incitam à pesquisa e à invenção, apresento aqui mais uma vez os meus agradecimentos.

Agradeço também ao Professor Paulo de Barros Carvalho, por sua presença marcante, em diferentes momentos e situações, no curso da minha trajetória acadêmica.

A Pedro Lino, Jurista, e a Ana Virgínia Santiago, Psicanalista, agradeço pela interlocução iniciada antes do mestrado.

Agradeço ainda às instituições e grupos de que participo ou participei, por propiciarem experiências discursivas fundamentais à indagação e à pesquisa.

Agradeço aos alunos dos cursos que ministrei, por participarem dos percursos e encruzilhadas que enlaçam pesquisa e transmissão.

Ao finalizar esses agradecimentos, quero fazer duas referências muito especiais:

A Samira Chalhub (in memoriam), Professora e Psicanalista, que integrou a Banca de Mestrado para exame da Dissertação que apresentei ao Programa de Direito da PUC/SP e em cujos Seminários de Semiótica Psicanalítica, no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/SP, fui apresentado decisivamente à pesquisa interdisciplinar na articulação dos campos acadêmico e psicanalítico.

(5)

A tese indaga sobre o estatuto do direito contemporâneo, articulando o discurso jurídico ao psicanalítico, nas perspectivas freudiana e lacaniana. As transformações que ocorrem no direito desde a modernidade colocam problemas éticos e epistemológicos e questionam a sua unidade, legitimidade e fundamento. A abordagem do tema envolve assim a problemática do tempo. Não se trata, entretanto, de um tempo contínuo, e sim de um corte com o esquema temporal passado-presente-futuro. Trata-se de um tempo atual: ele é efeito de um ato discursivo, o ato de operar e dizer o direito, em um campo de gozo. As diferentes perspectivas

e posições discursivas constitutivas da práxis jurídica são determinantes de efeitos ex-cêntricos, de sem-sentido, efeitos de poder. Nesse contexto, procedeu-se à análise de

discurso, ou seja, à leitura das diferentes posições discursivas do sujeito da ciência do direito, constituindo o campo jurídico em torno de um vazio que o estrutura e é condição de seu funcionamento social. A pretensão de cientificidade instaura a diferença discursiva, diferentes modos de dizer o direito, em suma, instaura o discurso jurídico como discurso a-científico (trata-se, a partir do objeto a da notação lacaniana, de um discurso em que a alteridade e o vazio lhe são constitutivos). A psicanálise (que opera em relação ao sujeito da ciência e inscreve o discurso como laço social, na articulação entre significante e gozo) não foi usada assim em uma função metadiscursiva, o que permitiu articulá-la à pragmática. Isso implicou não uma crítica do direito, e sim uma crítica na razão jurídica, já que os diferentes discursos jurídicos são constitutivos da razão jurídica e da verdade do sujeito. Eles determinam, em ato, um modo de dizer o direito, produzindo conseqüências sociais, econômicas, políticas, que implicam o sujeito, pelas suas ações e decisões (ainda quando ele se coloca na posição de objeto — o que é condição da mudança de posição subjetiva, segundo as premissas do ato analítico). Nesse contexto, realizou-se o deslocamento das oposições tradicionais, como ciência natural e ciência humana, sistema fechado e sistema aberto. A unidade do sistema jurídico, entendido como sistema autopoiético, decorre de suas operações e, pois, das posições discursivas do sujeito de direito, uma a uma. Um sistema jurídico constitutivamente a -nômico, não por falta de lei ou de norma, mas por efeito da norma e dos modos discursivos de dizer e operar o direito. Diante disso, enfatizou-se no contexto da ética do bem-dizer e do (l)uhmannismo lacaniano (na articulação entre Luhmann e Lacan), a ex-sistência do sujeito de direito e sua responsabilidade pelo ato de cidadani-a, ou seja, pelo ato de dizer e ler os atos no campo do direito, posicionando-se perante as estratégias e efeitos de poder que constituem o discurso jurídico. A legitimidade e fundamento do direito não se situam assim no âmbito da filosofia do direito, mas se inscrevem no funcionamento da democraci-a. A filosofia jurídic-a

(6)

The scope of this thesis is to investigate about the contemporary law statute,articulating law and the psychoanalitic speeches in Freud and Lacan perspectives. Transformations that have been happenning in law since modernity, have inscribed ethical and epistemological problems that question its unity, legitimity and foundation. The theme is approached focusing the time

problem. It’s not about, however, a linear time, in a yesterday-today-tomorrow paradigm. It’s about present time (in portuguese, ‘tempo atual’): it’s made of a discursive action, which is the action of how to operate and to say law, in a jouissance field.

The different perspectives and discursive positions that constitute the juridical praxis determine the ex-centric effects,of no-sense, power effects. The speech is, in this context, analysed, which means that the different discursive positions of the subject of law science are read, constituting the juridical field around an emptiness that structures it and that is a condition for its social function. The pretentious scientism establishes different discourses, different ways of saying law; summarizing, it establishes the juridical speech as an un -scientific (in portuguese, ‘a-científico’) (it is about from object a of the lacanian notation, of a speech in which the alterity and the emptiness are constitutive). The psychoanalysis (that operates related to the subject of the science and inscribes the speech as a social bond, in the articulation between signifier and jouissance) was not used in a metaspeech function, which allowed it to be articulated to the pragmatics. It implied not in a criticism of the law, but a criticism in the juridical reason, considering that the different juridical speeches are constitutive of the juridicalreasonand of the truth of the subject that determines, in action, the way of saying law, producing social, economics and political consequences, that imply the subject, either for its actions and decisions (even when the subject places itself in a position of object - which is the condition of the subjective position changing, according to the analitical action premisses). In this context, a displacement of the traditional opositions, like humanities and natural science, closed system and open system was made. The unity of the juridical system, understood as an autopoietic system that is originated from its operations and, then, from the discoursives positions of the subject of law, one by one. A juridical system constitutively a-nomic, not because there would be lack of laws or norms, but for the effect of the norms and the discoursive ways of saying and operating law. Before that, the context of the well-saying ethics and of the lacanian (l)uhmannism (in an articulation between Luhmann and Lacan thoughts) was emphasized, and also the ex-sistence of the subject of law and its responsability for the act of citizen-ship (in portuguese, cidadani-a), which means, for the act of saying and reading the acts in law field, adopting a position before the strategies and effects of power that constitute the juridical speech. The legitimacy and foundation of law are not situated in traditional law philosophy, but they are inscribed in the functioning of democrac-y

(in portuguese, democraci-a). The juridic-a-lphilosophy is not opposed to knowing about law science, considering that it ex-sists in the act of operating law, inscribed in the not-knowing,

(7)
(8)

INTRODUÇÃO 9

CAPÍTULO 1

O ENLACE ENTRE OS CAMPOS SOCIAL E PSICANALÍTICO: A INSCRIÇÃO DO DISCURSO a-CIENTÍFICO E O QUESTIONAMENTO DO SUJEITO DE DIREITO

30

1.1 A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO a-SOCIAL 30

1.2 O DISCURSO a-CIENTÍFICO DURKHEIMIANO: A COERÇÃO NO LAÇO SOCIAL E A a-NOMIA JURÍDICA

35 1.3 O DISCURSO a-CIENTÍFICO DE FREUD: O PROBLEMA DA CAUSA E A

ALTERIDADE CONSTITUTIVA DO SUJEITO NO LAÇO SOCIAL

51

CAPÍTULO 2

O SUPEREU E O DISCURSO a-CIENTÍFICO: UMA QUESTÃO CLÍNICA, ÉTICA E JURÍDICANO LAÇO SOCIAL

69

2.1 A TEORIA DO SOCIAL PARSONIANA E O SUPER-EGO 69

2.2 SUPEREU FREUDIANO, MAL-ESTAR E A RESPONSABILIDADE DO SUJEITO COMO QUESTIONAMENTO DA RAZÃO JURÍDICA NO LAÇO SOCIAL

79 2.2.1 O supereu como constitutivo da a-nomia e do mal-estar do sujeito a-social 80 2.2.2 Juízo freudiano e ficção jurídica: um sujeito sem-causa e sem-culpa 86 2.2.3 a-Voz do supereu como condição de uma lógica deôntica sem-origem e

sem-fundamentono laço social

92

CAPÍTULO 3

O DISCURSO PSICANALÍTICO E O LAÇO SOCIAL ATRAVÉS DE KELSEN 103 3.1 KELSEN SOBRE FREUD: OS LIMITES DA LEITURA KELSENIANA DA TEORIA DE

GRUPO DE FREUD

103 3.2 A DIMENSÃO DISCURSIVA DA TEORIA DE GRUPO FREUDIANA:

O PROBLEMA DA IDENTIFICAÇÃO E O LAÇO SOCIAL

111 3.3 DIREITO E PODER: A EX-SISTÊNCIA DA CARTA CONSTITUCIONAL E A

VIOLÊNCIA SIMBÓLICA COMO VIOLÊNCIA REAL

122 3.4 O IMPERATIVO JURÍDICO COMO CONDIÇÃO DO DISCURSO a-CIENTÍFICO 128

3.4.1 Colocação do problema 129

3.4.2 Jhering e o imperativo edipiano 130

3.4.3 Kelsen freudiano: a teoria pura do direito como via de gozo e do discurso a-científico 135

CAPÍTULO 4

O POSITIVISMO JURÍDICO COMO ATO DISCURSIVO E CONDIÇÃO DA CRÍTICA NA RAZÃO JURÍDICA

147 4.1 DUAS VERTENTES DO POSITIVISMO JURÍDICO E UM CAMPO DISCURSIVO 147 4.1.1 O positivismo legal: a foraclusão do sujeito da ciência do direito e o f-ato da codificação

como operação jurídica

(9)

4.1.2 O positivismo científico: a foraclusão do sujeito e o direito sem-fundamento 162

4.2 A CRÍTICA DO DIREITO 166

4.3 A CRÍTICA NA RAZÃO JURÍDICA E O DISPOSITIVO ANALÍTICO: A INSCRIÇÃO DO DISCURSO a-CIENTÍFICO NO CAMPO DO DIREITO

171

CAPÍTULO 5

MODELOS TEÓRICOS E DISCURSO NA ARTICULAÇÃO ENTRE O DIREITO E A PSICANÁLISE

187 5.1 DISCURSO, ESTRUTURA E MATEMATIZAÇÃO COMO QUESTIONAMENTO

DA RAZÃO CIENTÍFICA E DA NORMATIVIDADE

187 5.2 A QUESTÃO DOS MODELOS E A TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO 194 5.3 MODELOS JURÍDICOS, PRAGMÁTICA E O DISCURSO PSICANALÍTICO 200 5.4 O ESTATUTO ÉTICO E a-CIENTÍFICO DA LITERALIZAÇÃO DISCURSIVA NA

PSICANÁLISE

222

CAPÍTULO 6

CRÍTICA NA RAZÃO CIENTÍFICA: O CAMPO DA CIÊNCIANA ATUALIDADE 239

6.1 O CAMPO a-CIENTÍFICO ATRAVÉS DA EPISTEMOLOGIA CONTEMPORÂNEA 239 6.2 O CORPO DA CIÊNCIA: alíngua, ÉTICA DO BEM-DIZER E A INSCRIÇÃO DA

FILOSOFIA CIENTÍFIC-a

264

CAPÍTULO 7

A FILOSOFIA DO DIREITO E O (L)UHMANNISMO LACANIANO 273

7.1 A FILOSOFIA DO DIREITO COMO QUESTÃO 273

7.2 A FUNÇÃO DA FILOSOFIA JURÍDIC-a: INSCRIÇÃO DO NÃO-SABER E EX-SISTÊNCIA DOS DIREITOS HUMANOS

285

CAPÍTULO 8

Há Um CAMPO JURÍDICO 292

8.1 HÁ UM... 292

8.1.1 A questão do Um na Psicanálise 292

8.1.2 Há Um na Psicanálise: sua dimensão clínica e lógica 298

8.2 ... CAMPO JURÍDICO 309

8.2.1 A questão da ordem jurídica contemporânea 309 8.2.2 Princípio do discurso e Direito em Habermas e a questão do gozo 316 8.2.3 Há Um Direito no laço social: unidade, legitimidade e fundamento do Direito na

perspectiva do (l)uhmannismo lacaniano

328

CONCLUSÃO 341

REFERÊNCIAS 355

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 382

(10)

INTRODUÇÃO

A tese indaga a respeito do estatuto do direito contemporâneo, diante das mudanças que ocorrem desde a modernidade, articulando os discursos jurídico e psicanalítico.

O campo do direito, marcado por diferentes perspectivas, suscita problemas éticos e epistemológicos, que são aqui analisados em relação à dimensão do tempo. Não se trata, entretanto, de um tempo cronológico ou contínuo. Não se trata de postular a evolução ou involução da modernidade jurídica, como se o estatuto do direito fosse previamente determinado, por efeito de um corte cronológico com o passado e tivesse um sentido preestabelecido, que servisse ao controle do futuro. O corte de que se trata é justamente o corte com a linearidade do esquema temporal passado-presente-futuro, que se dá no ato de operar e dizer o direito. Um ato discursivo, que faz do tempo um tempo atual1, real2 e produz efeitos de sem-sentido3, ex-cêntricos, em um campo de gozo4.

Propõe-se, então, a articulação entre o campo do direito — no qual se inscrevem e se enlaçam as diferentes perspectivas ou posições discursivas constitutivas da práxis jurídica e

1

Como diz Lacan (O seminário,- livro 10, 2005, p. 38): “[...] não há nada senão o que é atual.” Atual, no sentido forte do termo, implica a mediação de um ato discursivo, pelo qual o sujeito se faz responsável, sendo irredutível ao esquema linear passado-presente-futuro. A concepção de história, que está implicada no termo, com as suas repercussões, pode ser apreendida também a partir da microfísica do poder de Foucault (Microfísica do poder, 1986) e da pragmática de Luhmann (Sociologia do Direito I, 1983b; Sistemas sociales, 1998), como se poderá notar do desdobramento das nossas análises. Observamos ainda que é a partir daí que se faz possível, ou melhor, atual, situar as seguintes questões colocadas por Cabas (O sujeito no discurso analítico..., 2006, p. 4-5), ao se reportar ao “[...] estatuto do ‘sujeito’ na teoria e na doutrina analítica [...]”: 1. “[...] Em que medida a subversão do sujeito é congruente e em que medida resulta compatível com as elaborações da filosofia contemporânea – a saber: filosofia política, historiografia ou filosofia do direito? [...]”; 2. “[...] em que medida é solidário e em que medida se distancia da noção de ‘sujeito’ que surge nas concepções contemporâneas – como são as construções de Foucault [e de Luhmann] ou as desconstruções de Derrida, para citarmos, apenas, dois exemplos?”

2

Para aludir ao Real lacaniano. 3

Não se trata, como veremos, de mero sem sentido, o que significaria uma oposição ou (de)negação do sentido, reafirmando-o.

4

(11)

determinantes de efeitos ex-cêntricos5 —, e o discurso psicanalítico, nas perspectivas freudiana e lacaniana. O uso que se faz aqui da obra de Freud se dá em conexão com o discurso lacaniano, sem que de qualquer modo se pressuponha a existência de uma interpretação autêntica. Aliás, supor que existe uma interpretação autêntica é supor a existência de um tempo linear, o que não é compatível com a orientação deste trabalho6.

A referência ao discurso lacaniano exige, por sua vez, uma especificação. Não se enfatizará a função simbólica e seu suporte, o nome do pai, enquanto significante que funda e legitima o sistema significante e baliza a experiência psicanalítica entendida como experiência intersubjetiva, na qual o desejo do sujeito se faz reconhecer7. Não se trata de insistir na possibilidade de reconhecimento e simbolização do desejo. Nem, por outro lado, se trata de denunciar uma suposta crise ou dissolução da metáfora paterna8 – já que esta dissolução se sustenta na possibilidade mesma de uma função simbólica capaz de ordenação do gozo, então imaginarizado.

5

A noção de campo, como a de discurso, é operatória em razão de suas funções estruturante, analítica e interdisciplinar. É desse modo, e não apenas descritivamente, que deve ser entendida a referência, por exemplo, a “[...] campo literário, artístico, jurídico ou científico [...]”, feita por Bourdieu (Os usos sociais da ciência..., 2004, p. 20, grifo do autor; sobre o campo jurídico, ver especialmente: O poder simbólico, 1989, p. 209 e seq.), ou a campo escolar, campo da saúde ou campo político, conforme Berthelot (Sociologia, História e Epistemologia, 2005, p. 104), no capítulo Abordagem Sociológica da Noção de Campo. Para este último autor, que propõe uma “[...] ‘analítica do social’[...]” (Ibid., p. 105, grifo do autor), “[...] o conceito de campo permite pensar de forma determinada o modo de estruturação dos fenômenos sociais e dar conta dos seus efeitos” (Ibid., p. 104), podendo ser definido como “[...] o modo de estruturação, historicamente determinado, de uma prática [...]” (Ibid., p. 104); entendemos historicamente, no sentido referido na nota 1. Ou seja: “Um campo apresenta-se como um sistema de posições organizado em torno do que está em jogo na realização da prática: jogos de poder, de reconhecimento, de retribuição [...]” (Ibid., p. 104, grifo do autor). O autor acrescenta que “Um efeito de campo é um fenômeno que [...] contraria a visão superficial, ‘legalista’, que o campo dá muitas vezes de si próprio” (Ibid., p. 104, grifo do autor); visão legalista, aliás, que não deixa de produzir efeitos constitutivos do campo.

6

E também não é compatível com as tendências atuais no campo da tradução, como o mostram os tradutores da obra de Freud, da nova edição brasileira de 2004, no comentário que fazem sobre os critérios que foram adotados: “Portanto, a tradução precisa levar em conta as condições de sua recepção, tendo que integrar em suas decisões critérios estilísticos, semânticos, teorizações psicanalíticas pós-freudianas e os diversos usos do texto de Freud na atualidade, em um balanceamento que varia caso a caso e sempre passível de polêmica.” (HANS; SUSEMIHL; SALSANO, Os critérios de tradução adotados, 2004, p. 36, grifo dos autores). É nesse contexto que se deve situar o retorno a Freud, realizado por Lacan. Esse movimento discursivo de voltar a é definido por Foucault (O que é um autor? apud ERIBON, A dependência do sujeito..., 1996, p. 149), com a concordância de Lacan, do seguinte modo: “Por ‘volta a [...]’ o que se deve entender? Creio que se pode assim designar um movimento que tem sua especificidade própria, e que caracteriza justamente as instaurações de discursividades [...] o reexame dos textos de Freud modifica a própria psicanálise, e o reexame dos de Marx, o marxismo.” Sobre o comentário de Lacan, em que manifesta a sua concordância, no debate posterior à exposição de Foucault, consultar Eribon (Ibid.).

7

Cf. LACAN, Função e campo..., 1998e, p. 279; 281 e O seminário - livro 5, 1999, p. 155-157. 8

(12)

Ora, se o desejo do homem é o desejo do Outro, isso não autoriza postular o seu reconhecimento e simbolização. Lacan9:

O desejo do Outro não me reconhece [...] Na verdade, ele não me reconhece nem me desconhece. Isso seria fácil demais, eu sempre poderia sair daí pela luta e pela violência. Ele me questiona, interroga-me na raiz mesma de meu próprio desejo como a, como causa desse desejo, e não como objeto.

Não se trata de tomar o Outro como um Outro sujeito, ou de qualquer modo como uma instância superior, garante das relações intersubjetivas, mas como uma alteridade radical, um lugar em que se inscreve o vazio que o estrutura e constitui o sujeito: um vazio, uma “[...] hiância que separa desejo e gozo”10. E é por isso que o gozo não se inscreve como uma mera exceção, que se desvia e ao mesmo tempo possibilita a ordenação com base ou fundamento no que é... racional, mas como um excesso, algo a-mais, constitutivo de outra-razão e

outro-discurso, que, por efeito de um corte11, faz ex-sistir o sujeito “[...] em uma exclusão interna a seu objeto”12, objeto a.

A letra, na sua função topológica de borda real, inscreve esse discurso, ao produzir um buraco no saber13. Trata-se de um discurso real, discurso com conseqüências14, que produz efeitos de gozo, efeitos de sem-sentido, ex-cêntricos — numa palavra, um discurso... que produz diferença. Isso modifica a relação do campo psicanalítico com a linguagem, redefinindo o estatuto de afirmações lacanianas como o inconsciente é estruturado como uma linguagem ou aquelas a respeito da prevalência do significante, porque agora o significante se articula ao gozo15, fazendo do campo psicanalítico um campo d’alíngua, campo não-todo, contingente16, que ex-siste no uso discursivo17, ou seja, em ato. Se não se prescinde do

9

Cf. LACAN, O seminário, livro 10, 2005, p. 169. 10

LACAN, Introdução aos Nomes-do-Pai, 2005b, p. 85. 11

Como diz Lacan (O seminário, livro 10, 2005, p. 275): “O pequeno a se faz assim”, ou seja, “[...] quando se produz o corte [...] Depois do corte, resta algo comparável à banda de Moebius, que não tem imagem especular” (Ibid., p. 110), já que tal banda é determinante de um efeito topológico, segundo o qual “[...] uma formiga que passeie em seu exterior passa sem nenhuma dificuldade para o interior” (Ibid., p. 112). Assim, “O que está em pauta agora, para nós, é saber onde se insere esse objeto como separado, a que domínio ligá-lo – não na oposição interior-exterior, da qual vocês percebem aqui toda a sua insuficiência, mas na referência ao Outro [...]” (Ibid., p. 275).

12

LACAN, Do ‘Trieb’ de Freud..., 1998m, p. 875. 13

LACAN, Lituraterra, 1986b, p. 23. 14

LACAN, O seminário, livro 16, 2004, p. 27 por exemplo. Quanto ao problema das conseqüências, no campo do direito, ver nota infra.

15

LACAN, O seminário - livro 20, 1985, p. 36 e O seminário - livro 17, 1992, p. 44 e 169. Por isso, como diz Juranville (Lacan e a Filosofia, 1987, p. 11): “[...] o significante de Lacan é ‘o que é significante’, lugar de uma verdade e de um gozo — e do real.”

16

(13)

simbólico, modaliza-se a sua função: o simbólico funciona como meio de gozo e se dirige ao real18, subsistindo “como ex-sistência do dizer”19. O campo de gozo é, pois, ele mesmo um campo simbólico-e-de-gozo20.

Nesse contexto, a função da própria psicanálise e de sua práxis se modaliza. Já no Seminário 1, Lacan21 nota que a razão psicanalítica, desde Freud, não visa à objetivação, mas à verdade do sujeito. Trata-se, na práxis psicanalítica, de “[...] uma conquista da verdade pela via do engano [...]”22 e é desse modo que ela inscreve a “[...] topologia [...] do gozo, [que] é a topologia do sujeito”23, ou seja, há um fora constitutivo do dentro e de seu funcionamento, por efeito da letra, que faz ex-sistir o sujeito24. A práxis psicanalítica não é, pois, redutível às oposições tradicionais25, como aquelas entre racional e irracional, prazer e desprazer (desde o mais além do princípio do prazer freudiano), normal e patológico, interior e exterior, inclusão e exclusão, sistema fechado e sistema aberto, ciência natural e ciência humana. Aliás, mesmo a pretensão lacaniana de fazer da psicanálise uma ciência conjectural, a partir dos referenciais da teoria dos jogos e do estruturalismo, é, afinal, deslocada, como se observa da seguinte citação: “[...] [é] importante promover, antes de mais nada, e como um fato a ser distinguido da questão de saber se a psicanálise é uma ciência (se seu campo é científico), exatamente o fato de que sua práxis não implica outro sujeito senão o da ciência.”26.

17

Cf. LACAN, La troisième, 2006b, p. 7; LACAN, A terceira, 1986a, p. 28. Lacan (Televisão, 2003f, p. 517) diz ainda: “Não baseio essa idéia de discurso na ex-sistência do inconsciente. É o inconsciente que situo a partir dela – por ele só ex-sistir a um discurso.” Ou como afirma Juranville (Lacan e a Filosofia, 1987, p. 11): “Dizer que o inconsciente existe é dizer que existe uma verdade que só podemos experimentar ‘fora do mundo’, no gozo.”

18

LACAN, O seminário - livro 20, 1985, p. 128. 19

Ibid., p. 161. Ver também LACAN, O seminário - livro 17, 1992, p. 74. 20

“Eu lhes disse, em síntese, que não existe falta no real, que a falta só é apreensível por intermédio do simbólico.” (LACAN, O seminário - livro 10, 2005, p. 147).

21

LACAN, O seminário - livro 1, 1979, p. 31. 22

LACAN, Introdução aos Nomes-do-Pai, 2005b, p. 87. 23

LACAN, O seminário - livro 16, 2004, p. 106. 24

LACAN, O seminário - livro 20, 1985, p. 65. Pode-se dizer, consoante Lacan (O seminário - livro 16, 2004, p. 71), que o que estamos tratando “[...] demonstra não que o sujeito não esteja absolutamente incluído no campo do Outro, mas que o que pode ser o ponto onde ele se significa como sujeito é um ponto digamos ‘exterior’ ao Outro, exterior ao universo do discurso”.

25

Cf. LACAN, O seminário - livro 10, 2005, p. 110; 112; 275 (ver nota supra). Por isso, conforme Lacan (O aturdito, 2003e, p. 485, grifo nosso): “A topologia não foi ‘feita para nos guiar’ na estrutura. Ela é a estrutura – como retroação da ordem de cadeia em que consiste a linguagem. A estrutura é o asférico encerrado na articulação linguageira, na medida em que nele se apreende um efeito de sujeito [...] Assim, o corte, o corte instaurado pela topologia (ao fazê-lo fechado por direito, note-se de uma vez por todas, pelo menos em meu uso) é o dito da linguagem, porém não mais esquecendo seu dizer.” A superação das oposições tradicionais vale também para o campo jurídico, como veremos.

26

(14)

A práxis psicanalítica, ao operar em relação ao sujeito da ciência, constitui-se como uma ética. Não uma ética humanista ou meramente terapêutica, mas uma ética do desejo, ética do bem-dizer: ela inscreve o impossível27 de se dizer, no dizer – um dizer que se situa como ex-sistência na relação ao dito28, interpelando o sujeito frente a seu desejo e sua verdade29.

Trata-se, pois, de “[...] uma ética com conseqüências clínicas”30 — ela é a-causa do desejo do sujeito, sujeito falante. E ainda conseqüências de ordem lógic-a — já que ela é condição de uma lógica Ics, quer dizer, inconsistente e não trivial31 —, conseqüências de ordem polític-a — ela é condição da cidadani-a —, enfim, conseqüências de ordem epistemológic-a — ela inscreve o discurso a-científico32, já que “[...] do discurso científico, de sua instauração mesma [...] vem o seguinte, que o significante se coloca como não tendo nenhuma relação com o significado.”33.

27

Impossível, que aponta para o real lacaniano, não é redutível ao im-possível, nem ao in-cognoscível. Ele importa a inscrição no discurso de uma impossibilidade ou um vazio, que lhe é constitutivo. E é desse modo que o não existe relação sexual — afinal ela não faz Um — implica a ex-sistência de uma relação impossível, na diferença (já que se existe um, esse um é autodiferente). Para a articulação disso com a lógica lacaniana do não-todo e suas modalidades, com a lógica deôntica Ics, quer dizer, inconsistente e não trivial e com o (l)uhmannismo lacaniano, consultar sobretudo o Capítulo 8 desta tese.

28

LACAN, O aturdito, 2003e, p. 451; 487. 29

“Para o analista [...] é o dizer que faz a verdade do dito.” (MELMAN, Sobre a verdade, 1991, p. 155). 30

SAFATLE, O ato para além da lei: Kant com Sade..., 2003, p. 226, grifo do autor. 31

Isso vale inclusive para a lógica deôntica, como veremos. Sobre o tema e a articulação com aspectos da lógica paraconsistente de Costa — em trabalhos com Puga (Sobre a lógica deôntica não-clássica, 1987a; Lógica deôntica e Direito, 1987b), Vernengo (Sobre algunas lógicas paraclásicas..., 1996) e Puga e Vernengo (Lógicas normativas, moral y Derecho, 1991) —, remetemos especialmente aos Capítulos 4 e 8 desta Tese. 32

Faz-se, nesta e em outras expressões, referência ao objeto a lacaniano, que, como diz Lacan (O seminário - livro 11, 1990, p. 251), é, na relação subjetiva, equivalente ao que chama corpo da ciência, o que faz o sujeito responsável pelas operações científicas de simbolização (Cf. FREIRE, Por que os planetas não falam?, 1997, p. 129-130), ou seja, o simbólico funciona como via de gozo. Como diz M.C. Vidal (Um quarto de volta, 1996, p. 92): “O objeto a, construído por Lacan, ex-siste ao discurso da ciência, e, dessa ex-sistência, causa o inconsciente” e o desejo do sujeito. Nesse contexto, o objeto a será tomado como um vazio estruturante do campo jurídico em expressões como a-científico, a-nomia etc. E é por isso que o campo ou discurso a -científico é irredutível à oposição entre -científico e não -científico (a-científico) ou entre “‘ciência pura’” e “‘ciência escrava’” — a qual o conceito de campo questiona, consoante Bourdieu (Os usos sociais da ciência..., 2004, p. 21), já que ele ex-siste, como veremos, através dos discursos da ciência do direito, determinando o que Luhmann (Sistemas sociales, 1998, p. 392, tradução nossa), ao tratar da racionalidade dos sistemas auto-referenciais, chama de “[...] visão acêntrica [a-cêntrica] do mundo das ciências atuais”. Por outro lado, o uso que fazemos do termo “a-científico” é diferente do que se dá no livro de Dor (A-cientificidade da Psicanálise, 1993, por exemplo, p. 14), que, aliás, tem por título original L’A-Scientificité de la Psychanalyse.

33

(15)

Essa ética com conseqüências constitui uma ética no discurso, entendido como um modo de realização do laço social34. A ética com conseqüências se real-iza no funcionamento discursivo, através de diferentes discursos e posições discursivas35, posições de gozo36 e de poder37. Ela inscreve a literalização da teoria dos discursos, marcada pela contingência, e produz um corte com a linearidade histórica38, fazendo ex-sistir o discurso psicanalítico como

34

“[...] um discurso é aquilo que determina uma forma de liame [laço] social.” (LACAN, O seminário - livro 20, 1985, p. 110). Aliás, o f-ato de a psicanálise “[...] ultrapassar a pura e simples antinomia sociedade-indivíduo [...]” (LACAN, O seminário – livro 7, 1988, p. 132), enfatizado pelas noções lacanianas de discurso e de gozo, deve ser reportado a Freud (Ibid.).

35

Isso que, como veremos, vale também para o discurso jurídico, remete à seguinte afirmação de Lacan (Da Psicanálise em suas relações..., 2003c, p. 350): “[...] é tão-somente pelos outros discursos que o real vem a flutuar. Não nos detenhamos na magia da palavra ‘real’. Guardemos em mente que, para o psicanalista, os outros discursos fazem parte da realidade.”

36

Portanto, se “O matema do discurso escreve uma lógica coletiva”, isso implica que “A categoria de discurso em Lacan não faz laço entre os sujeitos: um discurso não liga um sujeito a um outro. Um discurso é a maneira como o sujeito se situa em relação ao seu ser [a], é uma regulação do gozo”. (SOUEIX, O discurso do capitalista, 1997, p. 40). Uma regulação, uma distribuição jurídic-a do gozo, como veremos. Observo que a referência ao texto de Soueix não significa seguir os desdobramentos de suas análises, que se realizam na perspectiva do discurso do capitalista. Ora, tal discurso privilegia uma abordagem realista como pano de fundo para a crítica da sociedade dita pós-moderna ou de consumo e veiculação de orientações normativas. Desse modo, se o discurso do capitalista corresponde a um enunciado do autor (Lacan), não corresponde à sua enunciação e autoria, ou seja, ao modo de dizer implicado na ética discursiva lacaniana, que se articula aos quatro discursos. A esse respeito, consultar o comentário de Goldenberg (Prefácio, 1997a, p.15), sobre as divergências em torno do discurso do capitalista e o posicionamento de Pierre Bruno em relação ao trabalho de Soueix.

37

Essa questão foucaultiana e luhmanniana é também constitutiva do discurso lacaniano. Afinal, como diz Lacan (apud ROUDINESCO, Jacques Lacan: esboço de uma vida..., 1994, p. 286): “[...] que outra coisa jamais estudei... senão as motivações e os modos do poder?” Como já observamos, “Se o problema da subjetividade se situa na relação entre [...] Um e outro (a), ou ainda entre a Razão e o outro da Razão, não importa se este outro da Razão se chama sexualidade, loucura ou poder. Nesses termos, em Foucault ou em Lacan [ou em Luhmann] os modos da subjetividade são os modos do poder: o sujeito a-sexuado lacaniano é ele mesmo sujeito a-político”. (RODRIGUES FILHO, amorte política: Ma-chi-a-vel?, 1998). Melman (La politique du psychanalyste, 2006, p. 1, tradução nossa), por sua vez, ressalta a importância do saber — ou não-saber — do psicanalista sobre o funcionamento, ou seja, “[...] os mecanismos do poder [...] [que] ele experimenta na sua própria instituição [...]”.

38

(16)

um discurso que instaura “[...] um laço social purgado de qualquer necessidade de grupo”39 — um laço social sem-fundamento40.

Isso remete às posições impossíveis, desde Freud: não apenas à posição do analista, mas também às posições do educador e do governante — esses supostos condutores de grupo. Lacan acrescenta a posição do cientista41. Esta tese trata do impossível da posição do cientista e do operador do direito, impossível da posição do jurista42.

É nesse contexto que se propõe articular os campos jurídico e psicanalítico.

A articulação entre direito e psicanálise apresenta, aliás, várias tendências43. Muitas representam desdobramentos dos debates precursores da psicanálise com outros campos, em especial a filosofia e as ciências humanas. Tais debates apontam ora para uma vertente psicologizante, ora para uma ênfase na leitura sociológica, repercutindo sobretudo na sua versão crítica, seja a partir da abordagem marxista, seja a partir dos trabalhos de autores ligados à Escola de Frankfurt44.

Essa orientação crítica observa-se ainda em articulações que partem da perspectiva lacaniana e, diante da crise de paradigmas45, propõem uma interpretação crítica do direito

autor?, afirma: “[...] uma tal análise poderia contribuir para que se reavaliassem os privilégios do sujeito (autor) em seu papel de fundador originário do discurso, permitindo analisá-lo como uma função complexa do próprio discurso. O ‘autor’, que não precede às obras, é antes um certo princípio funcional através do qual delimita-se, exclui-se ou seleciona-se a circulação dos discursos.”

39

LACAN, O aturdito, 2003e, p. 475. 40

Isso situa o que Lacan (O seminário - livro 20, 1985) diz acerca do fundamento do discurso psicanalítico em nota supra. Trata-se de um fundamento... sem-fundamento, já que ele ex-siste no discurso, na diferença discursiva, no funcionamento discursivo e é, pois, irredutível a qualquer questão apriorística sobre a existência ou não de um fundamento substancial, último, garantido pelo Outro ou pelo Direito.

41

Cf. LACAN, O triunfo da religião, 2005c, p. 57; 61. Sobre as posições impossíveis como correlatas dos quatro discursos, consultar Lacan (O seminário - livro 17, 1992, p. 158) e Quinet (Psicose e laço social, 2006, p. 29). 42

Não se trata assim de fazer oposição estanque entre a ciência do direito e a função de julgar ou decidir. Primeiro porque as expectativas cognitivas e normativas não são estanques, mas, como afirma Luhmann (Sistemas sociales, 1998, p. 293, tradução nossa): “[...] estão juntas e inclusive se mesclam.” (Ver também GUERRA FILHO, Autopoiese do Direito na..., 1997, p. 65). Segundo, devido ao caráter criptonormativo da dogmática jurídica e à relação desta e da cência do direito com a arquitetônica de modelos, conforme Ferraz Jr. (Função social da dogmática jurídica, 1978a, p. 88; 124 e A Ciência do Direito, 1980, p. 107-108) ou ainda, porque “[...] o direito não é apenas um discurso sobre normas, mas é, ele próprio, normativo”, havendo ademais “[...] correlação funcional [...]” entre os “[...] diferentes modos discursivos [...]”, que, portanto, não são estanques (FERRAZ JR., Direito, retórica e comunicação..., 1997, p. 68; 52; 48, respectivamente, grifo do autor). Terceiro, porque, como diz Atienza (As razões do Direito..., 2000, p. 20), se existe “[...] diferença [...] entre os dois processos de argumentação [...]”, já que “[...] enquanto os órgãos aplicadores têm de resolver casos concretos [...] o dogmático do Direito se ocupa de casos abstratos [...] parece claro que a distinção não pode sempre (ou talvez quase nunca) ser feita de forma muito taxativa”.

43

WOLKMER, Introdução ao pensamento jurídico crítico, 2001, p. 119 et seq. 44

Consultar, dentre outros, Teoria Crítica e Psicanálise, de Rouanet (1989), e ainda Fausto (Dialética e Psicanálise, 2003) e Sève (Psicanálise e materialismo histórico, 1990). Para uma abordagem da matéria, por um psicanalista, consultar C. Garcia (Haveria ainda lugar para Freud?, 1982).

45

(17)

comoalternativa à tradição dogmática46, concluindo, ora no sentido da impossibilidade de se dar conta da totalidade do objeto de investigação47, ora no sentido de um outro tipo de simbolização e legalidade que limite os vínculos imaginários e prescinda das garantias ilusórias, esvaziando o gozo do Outro48.

Esta tese não importa uma crítica do direito, senão uma crítica no discurso jurídico, na

razão jurídica49. A psicanálise não tem aqui, pois, uma função interpretante, capaz de introduzir, com base em suas formulações teórico-práticas, uma orientação alternativa ao direito. Do que se trata é de usar os discursos freudiano e lacaniano como operadores de leitura, para ler o direito como um campo de gozo... e mostrar que o campo jurídico pode ser estruturado ao modo do campo psicanalítico e de sua ética discursiva. É desse modo radical, com efeito, que se tomará a afirmação lacaniana de que “[...] não há discurso — e não apenas o analítico — que não seja do gozo, pelo menos quando dele se espera o trabalho da verdade”50.

46

Cf. Wolkmer (Introdução ao pensamento jurídico crítico, 2001, p. 121 et seq.), que se reporta, dentre outros, a Jeannine N. Philippi e Agostinho Marques Neto. Cito a seguinte afirmação deste último autor: “A concepção de direito alternativo está animada de uma profunda convicção de insuficiência do Direito Positivo. Recusa-se a admitir que o Direito seja só isso. Por outro lado, pressupõe uma implicação teórica e política do sujeito [...] uma vigilância crítica [...] evitando a mera militância dissociada de uma fundamentação teórica, que acaba conduzindo a uma visão maniqueísta das relações entre os direitos alternativo e oficial, como se o primeiro tivesse de ser, necessariamente, a negação do segundo. O direito alternativo não está, portanto, de modo algum, preservado de ser ele próprio dogmatizado, afirmado como verdade absoluta que se põe acima de qualquer discussão.” Acrescenta que “[...] entre conhecimento rigoroso e conhecimento absoluto há uma distância abissal”. (MARQUES NETO, Sobre a crise dos paradigmas jurídicos..., 1998, p. 97; 99). Para contextualizar, cito ainda Maia (Autopoiese versus prática procedimental..., 2000, p. 57) que, após se reportar à autopoiese social de Luhmann e vincular a alopoiese jurídica a procedimentos extra-dogmáticos, equivalendo-a ao direito alternativo, afirma: “[...] [o] procedimento extra-dogmático [...] pode surgir tanto de uma realidade extra-estatal quanto de práticas intra-estatais [...] [daí] uma diferença substancial com a teoria de Cláudio Souto, que coloca o direito alternativo como sendo sempre desviante da ordem oficial.” Sobre os limites do direito alternativo e da crítica jurídica (ou seja, crítica do direito), na perspectiva da autopoiese social de Luhmann (que, como veremos, pode ser articulada à psicanálise lacaniana e à crítica na razão jurídica), consultar Campilongo (Política, sistema jurídico e... 2002, p. 107 et seq).

47

Cf. MARQUES NETO, Sobre a crise dos paradigmas jurídicos..., 1998, p. 99. 48

Cf. WOLKMER, Introdução ao pensamento jurídico crítico, 2001, p. 121 et seq.; PHILIPPI, A Lei - uma abordagem..., 2001, p. vi, 27-28; 421.

49

A razão de que se trata é razão discursiva (Cf. LACAN, O seminário - livro 20, 1985, p. 26). Como diz Costa (Ensaio sobre os fundamentos da lógica, 1980, p. 2): “A palavra ‘razão’ possui diversos significados.” Destacamos aqui o que o autor entende como o “[...] conjunto dos princípios gerais, reguladores do pensamento discursivo”. (Ibid., p.2). Inserido no nosso contexto, tal concepção de razão aponta para um conjunto ou sistema jurídico estruturado em torno de um furo ou vazio, devido inclusive à incompatibilidade dos seus princípios ou premissas de decisão, no sentido da pragmática de Ferraz Jr. (Direito, retórica e comunicação..., 1997, p. 42 et seq.). Aliás, o próprio Costa (Ensaio sobre os fundamentos da lógica, 1980, p. 42) reporta-se aos “[...] princípios que regulam a razão [...]” como “[...] princípios pragmáticos [...]”, enquanto “[...] as leis da contradição, da identidade e do tertium non datur, conforme suas formulações comuns, enquadrar-se-iam entre as leis sintáticas ou semânticas”. Nesse contexto da razão pragmática, pode-se dizer com Campilongo (Política, sistema jurídico e..., 2002, p. 113) que “A relevância da crítica jurídica, paradoxalmente, está em ser periférica no interior do sistema jurídico”. O autor acrescenta: “[...] Luhmann não reserva um papel secundário ou subordinado à periferia dos sistemas operacionalmente diferenciados. Ao contrário, a autopoiesis do sistema jurídico depende dessa diferenciação interna ao sistema.” (Ibid., p. 114). 50

(18)

Ora, a crítica na razão jurídica visa à verdade do sujeito, ou seja: o sujeito de direito está implicado nos fundamentos e conseqüências de sua posição no discurso; entendido, nos termos de Ferraz Jr., como uma discussão fundamentante51. A crítica na razão jurídica não se opõe, por isso mesmo, ao discurso tradicional ou ao discurso crítico — aliás, uma oposição ou (de)negação que os reafirma, colocando-os efetivamente52 como centrais —, mas se real-iza

através deles. Os diferentes discursos jurídicos — no momento mesmo em que buscam a

fundamentação e o consenso, na situação comunicativa discursiva53 — inscrevem, com efeito, modos de dizer o direito54, modos de gozo, inscrevem posições discursivas, que constituem a verdade do sujeito55 e fazem do campo do direito um campo não-todo, estruturalmente furado56. O furo, pois, não está lá, como uma falta do todo, à espera de (não) ser preenchida (senão enquanto a suposição dessa falta importa uma posição discursiva), mas está aí, em ato, no ato de operar o direito.

Se o mundo contemporâneo e os fenômenos da globalização repercutem no campo jurídico e em seus conceitos, como o conceito de norma57, o que se quer mostrar é que o campo jurídico é estruturalmente anômico. Trata-se de uma anomia que se escreve (ou

51

Ferraz Jr. (Direito, retórica e comunicação..., 1997, p. 29-30; 48-49, grifo do autor) define o “[...] discurso enquanto discussão fundamentante [...] entendida como discussão racional [...] ligada à perspectiva pragmática do discurso como ação lingüística dirigida a outrem e que envolve a idéia de situação comunicativa” e é por isso que “O mútuo entendimento não é uma espécie de axioma da discussão, mas uma tarefa [...] não é um ‘dado’ [...] não é nem exterior nem anterior ao próprio discurso, mas ocorre no exercício do discurso”. O autor acrescenta que “A palavra ‘racional’ é extremamente equívoca [...]” e “[...] é preciso dizer que a racionalidade é concebida aqui situacionalmente. Uma concepção situacional da racionalidade significa que ela é captada dentro da situação comunicativa [discursiva]”, ou seja, “[...] os termos racional, irracional, verdadeiro, falso são conquistados na situação comunicativa, dentro e não fora do discurso ou anteriormente a ele”. (Ibid., p. 30; 11, respectivamente, grifos do autor). Conforme ainda o autor: “Todo discurso é racional se é fundamentável, e essa fundamentação repousa em condições que a própria discussão estabelece [...]” Assim, “A prevalência de uma ou outra regra, o que determina, então, a estrutura discursiva, depende da situação comunicativa”. (Ibid., 1997, p. 31; 34, respectivamente).

52

Essa noção de efetividade pode ser articulada ao discurso psicanalítico e à pragmática jurídica. Em relação a esta, ver Ferraz Jr. (Teoria da norma jurídica..., 1978b, p. 114; 119-120). A propósito do tema, ver também nosso A Rede de Assistência à Saúde como Rede Microfísica de Poder: Análise de uma Micro-sociedade (RODRIGUES FILHO, 2005), que enfatiza as questões da efetividade e do controle social.

53

Ferraz Jr. (Direito, retórica e comunicação..., 1997, p. 57) afirma o seguinte, quando trata do discurso jurídico e situação comunicativa, no capítulo sobre os caracteres gerais do discurso jurídico: “A situação comunicativa discursiva não deve ser entendida como uma relação de partes físicas, seres humanos biologicamente concebidos e sinais, mas de ações e resultados de ações (acontecimentos), não tendo uma estrutura à parte do seu funcionamento.”

54

Ferraz Jr. (Ibid., p. 47-48; 52) reporta-se a modos do discurso, cujo traço comum “[...] deve ser procurado no seu caráter de discussão fundamentante”, enquanto correlacionados. “Essa correlação, por sua vez, está ligada à perspectiva pragmática do discurso [...]” e deve ser entendida como “[...] correlação funcional [...]”.

55

Isso pode ser reportado ao que Foucault (La verdad y las formas jurídicas, 1980, p. 17, tradução nossa) diz sobre a práxis jurídica, na situação discursiva, e sua relação com a verdade do sujeito, ou nos seus termos: “As práticas judiciais [...] modificadas sem cessar ao largo da história — creio que são algumas das formas empregadas por nossa sociedade para definir tipos de subjetividade, formas de saber e, em conseqüência, relações entre o homem e a verdade que merecem ser estudadas.”

56

A propósito, pode-se reportar ao vazio, à abertura estruturante da “[...] arquitetônica de modelos” na dogmática jurídica (Cf. FERRAZ JR., Função social da dogmática jurídica, 1978a, p. 124).

57

(19)

inscreve) a-nomia. Ela não é o resultado da falta, insuficiência ou ilegitimidade da lei, mas efeito da lei, efeito da norma e dos modos discursivos de operar e dizer no campo do direito, que têm então uma diz-mensão significante.

Desse modo, o sistema jurídico, enquanto sistema autopoiético, não é entendido aqui como um conjunto de indivíduos, normas ou instituições58, preexistente à operação jurídica, mas como efeito discursivo e performativo59 da ação de um significante, uma comunicação-significante60, que retroativamente, só depois61 e desde fora, o faz ex-istir como um sistema diferenciado62. Trata-se de um sistema constitutivamente sintomático, no sentido de que o

58

Cito Antunes (Prefácio, 1993, p. xxi) sobre a teoria de Luhmann: “[...] Luhmann, este autor defende que as unidades básicas do sistema jurídico não são as normas legais (como sustentam os juristas) nem as organizações (como defendem os sociólogos), mas sim comunicações.”

59

Cf. AUSTIN, Quando dizer é fazer, 1990. Sobre a relação da teoria de Austin com a psicanálise, consultar Dor (Introdução à leitura de Lacan..., 1989, p. 116 et seq.); e, para a relação com a pragmática, consultar Ferraz Jr. (Teoria da norma jurídica..., 1978b, p. 3-4) e Oliveira (Reviravolta lingüístico-pragmática..., 1996).

60

Observo que Luhmann (Introducción a la teoría de sistemas, 1996a, p. 62, tradução nossa) se vale de Saussure para introduzir o tema da “[...] mudança de perspectiva em relação a teorias sociais, que trabalham com o conceito de diferença [...]”, e não obstante isso funda a sua teoria em uma descontinuidade com a lingüística, como ocorre com a teoria lacaniana. É nesse contexto que se deve entender a afirmação, que Luhmann (Ibid., p. 93, tradução nossa) reporta a Saussure, segundo a qual “[...] a comunicação produz suas próprias diferenças que não requerem, para explicar-se, de outros âmbitos da realidade como o físico, químico, orgânico [e psicológico]”. A descontinuidade em relação à lingüística, Luhmann (Ibid., p. 67, grifo do autor, tradução nossa) a realiza, por exemplo, a partir da matemática de Spencer Brown, a qual pode ser articulada à sociologia — não pelo seu conteúdo, mas pelas suas conseqüências e seu método —, permitindo afirmar que “[...] o sistema se pode caracterizar como uma forma com a implicação de que dita forma está composta por dois lados sistema/ambiente” (consultar também sobre a “Fundamentação lógico-matemática da racionalidade sistêmica”, GUERRA FILHO, Autopoiese do Direito na..., 1997, especialmente p. 48 et seq.). Como ainda diz Luhmann (Sistemas sociales, 1998, p. 14, tradução nossa): “[...] um sistema é a diferença entre o sistema e o ambiente, distinção que o próprio sistema introduz e na qual ele mesmo reaparece como parte da distinção.” Desse modo, “[...] se anulam as possibilidades descritivas da lógica clássica bivalente e a teoria do conhecimento que a sustenta” (Ibid., p.14, tradução nossa), já que, como na física de Einstein, “[...] a observação do mundo com ajuda da distinção entre sistema e ambiente depende da posição do observador” (Ibid., p. 14, tradução nossa). Essas formulações de Luhmann podem ser reportadas ao uso que Lacan (O seminário - livro 16, 2004, p. 129, grifo do autor) faz da matemática, para inscrever “[...] um ponto de partida, situado entre o a e o 1”, o qual remete ao S1 como “[...] significante auto-referente que encarna a função performativa da fala”. (ZIZEK, Eles não sabem o que fazem...,1992, p. 69).

61

O só depois (après coup) lacaniano se reporta ao conceito freudiano de nachträglich, redefinindo as concepções de tempo e causa, como veremos no Capítulo 1, seção 1.3.

62

(20)

“[...] sintoma [...] se articula por representar o retorno da verdade como tal na falha de um saber”63, ao se articualr a um efeito de letra64, na sua função de litoral entre o gozo e o saber65. Ou seja, no sintoma está implicado um modo de gozo — já que “[...] o sintoma é o que há de mais real”66. Ele produz o mal-estar na cultura67, no laço social... e no direito — um mal-estar que os constitui. O sintoma social é, com efeito, estruturante do sistema jurídico68 e é por isso que o campo sistêmico, “[...] o campo de saber comporta uma falha”, por efeito de “[...] uma operação [...] um movimento de retorno”69, que o estrutura.

Nesse contexto, a unidade do sistema jurídico não é uma ilusão... porque ele se estrutura e funciona como uma ilusão, uma ficção funcionalmente necessária70. Ora, se isso determina a alienação e a foraclusão do sujeito — sujeito de direito, sujeito da ciência do direito —, é, a um só tempo, condição de sua ex-sistência. A ciência do direito, mesmo na perspectiva da dogmática tradicional ou positivista, não é, portanto, um fenômeno objetivo, separá-lo das operações às quais ele está referido, em vez de estabelecer uma série de propriedades que caracterizariam, a priori, a estrutura do objeto”. Assim, “O discurso não tem uma estrutura, ele a adquire [...] ele é uma operação, mais precisamente, uma operação estruturante”. (FERRAZ JR., Direito, retórica e comunicação..., 1997, p. 34, grifo do autor).

63

Cf. LACAN, Do sujeito enfim em questão, 1998d, p. 234. Lacan (Ibid., p. 234-235) acrescenta: “Não se trata do problema clássico do erro, mas de uma manifestação concreta a ser ‘clinicamente’ apreciada, onde se revela, não uma falha de representação, mas uma verdade de uma referência diferente daquilo, representação ou não, pelo qual ela vem perturbar a boa ordem...Nesse sentido, podemos dizer que essa dimensão, mesmo não sendo explicitada, é altamente diferenciada na crítica de Marx.”

64

Cf. MILLER, Los signos del goce, 1998, capítulo El Lenguage y el Discurso, p. 299. 65

Cf. LACAN, Lituraterra, 1986b, p. 23. 66

LACAN, O triunfo da religião, 2005c, p. 66. 67

Ibid., p. 66. 68

Como diz Askofaré (O sintoma social, 1997, p. 182, grifo do autor): “A tese de Lacan [...]” é de que “[...] não há senão um único sintoma social [...]”, do mesmo modo que o tempo atual, a que nos referimos, como corte da linearidade do esquema temporal passado-presente-futuro, constitui um tempo único. Assim, o sintoma social não corresponde ao que postula “[...] uma vã psicologia [que] opõe o individual e o coletivo ou o subjetivo e o social” (Ibid., p. 182), ou seja, ele não corresponde a um sintoma ou a qualquer fenômeno social que se possa inscrever em uma psicopatologia social (Ibid.). E é por isso mesmo que o sintoma social não importa aqui um desvio que se possa eliminar, mas, ao contrário, é estruturante, podendo ser aproximado do recalque originário (Cf. debate entre Daniel Vives e Sidi Askofaré, no Apêndice, em GOLDENBERG, Discussão geral - Apêndice, 1997b, p. 280; 282-283). Para uma estruturação do campo da saúde e, em particular, do campo da psicologia da saúde (com impacto nas psicologias social, jurídica e política), de um modo compatível com a concepção lacaniana de sintoma social, consultar nosso A Rede de Assistência à Saúde como Rede Microfísica do Poder: Análise de uma Micro-sociedade (RODRIGUES FILHO, 2005), em que se adota a metodologia da análise de discurso, articulando as teorias de Foucault e Lacan, retomando, noutro contexto, abordagem da nossa Dissertação de Mestrado (RODRIGUES FILHO, A lei e o sujeito de direito..., 1996).

69

Cf. NAVEAU, Marx e o retorno da verdade no saber, 1997, p. 155. Segundo Quinet (Psicose e laço social, 2006, p. 24): “O campo que nos interessa é um campo operatório [...]” e é desse modo que se pode falar de “[...] operação no campo do gozo [...]”. (Ibid., p. 25). Nesse contexto, oefeito de auto-referência, que inscreve o vazio, pode ser articulado ao que diz Cesarotto (O eu é o sintoma..., 1995, p. 101-102), reportando-se às “[...] formulações topológicas [...]” lacanianas: “A partir da década de 70, o estudo exaustivo das vicissitudes da amarração borromeana dos três registros permitiu uma nova definição do sintoma: o efeito do simbólico no real. Isto deveria ser visto como uma inscrição, ou seja, um traço indelével que voltaria sempre ao mesmo lugar. Situando os dois registros aludidos numa relação de extimidade [...]”

70

(21)

mas radicalmente subjetivo — no qual o sujeito está implicado. A razão jurídica se faz assim razão psicanalítica.

Isso permite estabelecer a direção metodológica desta tese, como análise de discurso, como leitura das posições discursivas do sujeito de direito — sujeito da ciência do direito. Nessa perspectiva, o positivismo jurídico não é... irracional, mas importa um modo de dizer, um modo de gozo, constitutivo da razão jurídica, do discurso jurídico, um discurso

a-científico. Afinal, no seu engano, aí está a verdade do sujeito, em ato. Ou seja, se o positivismo importa um efeito ideológico, este não tem o estatuto de um desvio, um desvio

sintomático (conforme o sentido que sintoma tem para a psicologia e a medicina), já que ele funciona, produz efeitos de sem-sentido, ex-cêntricos, constituindo o campo jurídico como um campo de gozo. Não se trata assim de criticar ou superar o positivismo jurídico — já que isso supõe uma posição para além do discurso, metadiscursiva —, mas operar, segundo as premissas do ato analítico (Lacan), para modalizar a posição de gozo do sujeito. Trata-se de uma modalização funcional, em que o sujeito — sujeito de direito, sujeito da ciência do direito — se implica e se faz responsável71 pelo modo de operar no campo jurídico e fazê-lo funcionar72.

A questão, portanto, não está no positivismo mesmo, mas no modo categórico com que o sujeito se vincula a ele ou a qualquer um outro discurso e se faz objeto. Ora, se o sujeito, marcado pelo significante, é constitutivamente alienado, dividido, cindido, por efeito de um ato de de-cisão, é também aí que ocorre sua a-parição73, como condição de sua

71

A questão da responsabilidade, na articulação entre psicanálise e direito, é enfatizada por C. Garcia (Lacan e companhia, 2003, p. 322 et seq.) e, na articulação com o mundo contemporâneo, por Forbes e Ferraz Jr., segundo os referenciais da psicanálise e do direito (Cf. FORBES, REALE JR., FERRAZ JR., A invenção do futuro..., 2005, p. 81; 101, respectivamente).

72

Não seguiremos, portanto, a orientação de Teubner (O Direito como sistema autopoiético, 1993, p. 67; 68-69), no que este considera “[...] a autopoiesis um processo gradativo [...]”, como resultado do “[...] aumento cumulativo de relações circulares [...]” ou de “[...] evoluções sócio-culturais ‘cegas’ [...]”. Também não concordamos que a teoria de Luhmann corresponde a uma “[...] visão de autopoiesis como um conceito ‘rígido e inflexível’”. (Ibid., p. 66; consultar ainda p. 71). A propósito, remetemos à discussão de Luhmann (Sociologia do Direito II, 1985, p. 27) sobre o que chama de “[...] programação decisória”, implicando que a “[...] definção do problema é realizada por processos decisórios e é testada também por decisões” e à seguinte afirmação, que aponta implicitamente para a questão da modalização nos sistemas autopoiéticos: “[...] o sistema não é uma função de transformação que transforme sempre da mesma maneira ‘inputs’ em ‘outputs’, nem ainda no caso de que o sistema se estruture a si mesmo por meio de programas condicionais.” (LUHMANN, El derecho de la sociedad, [200-], p. 353, tradução e grifo nosso). A questão da modalização dos sistemas autopoiéticos (que reportamos ao tema lacaniano e luhmanniano da posição — posição discursiva, posição do sujeito; um sujeito autodiferente, que ex-siste como alteridade constitutiva) pode ser colocada ainda a partir da seguinte afirmação de Luhmann (Sistemas sociales, 1998, p. 33, tradução e grifos nossos): “[...] o realmente importante que acontece nele [sistema], inclusive a mesmidade (Selbst), tem que ser introduzida por diferenciação”, no sentido de que “[...] a diferenciação dos sistemas só pode levar-se a cabo mediante auto-referência [...]”.

73

(22)

emergência enquanto tal, enquanto sujeito (na posição de sujeito) e, pois, condição da democraci-a; da constituição do Outro, do direito como um campo estruturalmente furado.

O ato de de-cisão é um ato discursivo; ato real74, ato pragmático, segundo a autopoiese social — afinal, o discurso constitui o laço social. A articulação que se faz aqui entre a psicanálise e a pragmática pode ser reportada às seguintes afirmações de Luhmann:

Para a sociologia é muito mais relevante pensar nas disposições de Marx e Freud já que eles pretendem introduzir na teoria uma pretensão terapêutica, um processo de cura do ponto cego da observação [...]75.

[...] Na teoria freudiana encontramos os mesmos traços [da teoria de Marx], mas referidos aos processos de consciência: o inconsciente designa o ponto cego da consciência [...]76.

[...] Dito de outro modo: a sociedade moderna está sustentada em uma permanente observação da observação, como expressão da circulação do ponto cego, e isto não é senão a expressão do estabelecimento da recursividade autopoiética da observação de segunda ordem77.

Mais:

[...] não se observa a pessoa enquanto tal, senão a forma com que esta observa [...] A observação de segunda ordem não é o emprego de uma lógica formal abstrata, senão o esforço para observar aquilo que o observador não pode ver, por razões de posição78.

Ainda:

A observação de segunda ordem põe de manifesto a existência de um ponto cego, como característica específica da modernidade, mas, ao mesmo tempo, o surgimento da consciência do impossível de resolver com visibilidade esse ponto de cegueira79.

74

Para situar isso no contexto do que dissemos acima, cito Lacan (O seminário - livro 16, 2004, p. 26; 172, respectivamente): “[...] estrutura, eu já disse isso, deve ser tomado[a] no sentido do que é o mais real, o próprio real. E quando [...] eu desenhava, manipulava mesmo, alguns desses esquemas com os quais se ilustra o que se chama de topologia, eu já sublinhava que ali não se tratava de nenhuma metáfora [...] A estrutura é, então, real. Isso se determina por convergência para uma impossibilidade [...] porque visa [...] à causa do próprio discurso [...]” – trata-se d’“[...] a-causa [...]” discursiva. Cito ainda Pommier (O desenlace de uma análise, 2003, p. 25): “[...] o termo ‘Real’ não qualifica simplesmente o que as palavras não conseguem nomear, mas também o que as palavras produzem [...] Apenas nesse sentido, retroativamente ao uso do significante, o Real já estava lá. Não se trata do que precederia o surgimento do homem e da linguagem: este Real é o dos cientistas e dos filósofos idealistas e nominalistas, para quem o mundo é, em última instância, incognoscível. Não há Real inacessível, senão porque está separado do mundo, exilado do mundo, por toda a espessura da língua.”

75

LUHMANN, Introducción a la teoría de sistemas, 1996a, p. 128, grifo do autor, tradução nossa. Deve-se frisar que, consoante Luhmann (Ibid., p. 117-118, tradução nossa), “O observador (o sistema) não está colocado acima da realidade [...] ele mesmo se constitui no momento em que constitui os enlaces da operação [...] A unidade portanto do ato de observar só se realiza no sistema no paradoxo de que para manifestar a unidade o sistema deve pôr uma diferença [...] Mas esta unidade, para a observação, sempre resulta pressuposta como um ponto cego [...]”

76

Ibid., p. 128, grifo do autor, tradução nossa. 77

Ibid., p. 129, grifo do autor, tradução nossa. 78

Ibid., p. 126, tradução nossa. 79

(23)

Se esse impossível pragmático, real, requer observação e leitura, é porque é constitutivo de uma outra-razão, uma razão discursiva: “[...] no discurso analítico, só se trata disto, do que se lê [...]”, ou seja, “A letra, [que] lê-se, como uma carta”80. Uma razão complexa e a-cêntrica81, irredutível a qualquer relativismo pós-moderno82, já que este se mantém no registro semântico, conteudístico, no pressuposto da possibilidade de simbolização e ordenação substancial do campo jurídico. Por isso mesmo, não é o caso de denunciar a crise ou dissolução do direito83 (o que implica a demanda de sua reconstrução, independente e anterior ao seu funcionamento), mas de inscrever a diz-solução do direito,

no funcionamento do direito84, fazendo ex-sistir a-pós-modernidade. Ora, desse modo

a-pós-modernidade não existe como um fenômeno cronologicamente posterior à modernidade (e que então indica o seu sucesso ou insucesso, na suposição de um padrão apriorístico de funcionamento do direito), já que a-pós-terioridade de que se trata, só depois, é discursiva85 e implica um efeito atual, real; implica efeitos ex-cêntricos no ato de pôr o direito — uma positivação86 que se inscreve desde a modernidade, na modernidade, no ato moderno de

80

LACAN, O seminário - livro 20, 1985, p. 39. Em francês, lettre se refere a letra ou a carta. A partir daí é que nos reportaremos à carta constitucional.

81

Em Sistemas Sociales, no capítulo Autorreferencia y Racionalidad, Luhmann (1998, p. 392, tradução nossa) se refere “[...] à visão acêntrica [a-cêntrica] do mundo das ciências atuais”. A propósito, consultar também o que Luhmann trata sobre complexidade, por exemplo, em Introducción a la Teoría de Sistemas (1996a, lección 7, especialmente p. 143 e 148), em Sociologia del Rischio (1996b, p. 229 et seq.), onde articula o tema com a questão do risco no campo científico e em Sociologia do Direito I (1983b, p. 45 et seq.).

82

Cf. ZIZEK, O mais sublime dos histéricos..., 1988, p. 61, n. 2. Por sua vez, Nafarrate (Nota a la versión..., 1998, p. 23), ao se reportar à teoria de Luhmann, diz que a “[...] pluralidade de observações [...] não conduz à afirmação de que anything goes [...]”, já que “[...] as observações conduzem a um processo auto-referencial de enlace [...]”. Sobre direito e pós-modernidade, ver Bittar (O Direito na pós-modernidade, 2005) e Guerra Filho (Autopoiese do Direito na..., 1997). Consultar ainda Campilongo (O Direito na sociedade complexa, 2000, p. 115 et seq.), onde o tema aparece articulado especialmente à questão da globalização, Barroso (Fundamentos teóricos e filosóficos..., 2003), que articula o tema com o direito constitucional e a teoria crítica, Canotilho (Civilização do Direito Constitucional..., 2001), que discute os direitos fundamentais no contexto do discurso jurídico pós-moderno, Morrison (Filosofia do Direito..., 2006), que insere o tema no contexto da filosofia do direito, e Souza Santos (Pela mão de Alice..., 2000), que aborda o tema na interface entre os campos jurídico, social e político.

83

Aliás, segundo Luhmann (El derecho de la sociedad, [200-], p. 415, tradução nossa), a “[...] comunicação controvertida [...]”, que existe no sistema jurídico, não pode ser entendida como “[...] defeito [...], senão como conseqüência da função e codificação do sistema”.

84

Consultar ainda nossa dissertação de mestrado (RODRIGUES FILHO, A lei e o sujeito de direito..., 1996), onde tratamos da diz-solução do direito público moderno.

85

Ou como dissemos na Dissertação de Mestrado (RODRIGUES FILHO, A lei e o sujeito de direito..., 1996, p. 37, grifos do autor): “Não se trata da evolução ou involução da modernidade, que supõe a insistência na idéia de centro e na continuidade do Mesmo – continuidade do sentido moderno. A questão, pois, não é cronológica, mas lógica [-a] ou epistemológica [-a]. Se não se trata da (de)negação [...] da modernidade, é porque do que se trata é da descontinuidade do sentido moderno. Trata-se, pois, primeiro do sentido moderno [...]... e a-pós, quer dizer, depois – só de pois – de um deslocamento [...]”

86

Referências

Documentos relacionados

13 de Fevereiro; (ii) ou a entidades residentes em território português sujeitas a um regime especial de tributação. Não são igualmente dedutíveis para efeitos de

A tabela a seguir resume as frequências em que os pacientes apresentaram pelo menos uma reação adversa não solicitada, foi registrada dentro de 28 dias após a vacinação de

Desse modo, os programas de transferência condicionada de renda ao estabelecerem o acesso a direitos sociais básicos como condicionalidades para a garantia do direito à uma renda

O score de Framingham que estima o risco absoluto de um indivíduo desenvolver em dez anos DAC primária, clinicamente manifesta, utiliza variáveis clínicas e laboratoriais

Além disso, a realização de um estudo capaz de determinar a prevalência do RVU nas HN de graus mais leves contribuiria para que atenção suficiente fosse dada

No caso dos dispositivos para testes de rastreio do sangue (à excepção dos testes de HBsAg e anti-HBc), todas as amostras verdadeiras positivas devem ser identificadas como

Como já afirmamos, o acompanhamento realizado pelas tutorias é nosso cartão de visitas, nossa atividade em que o objeto social do Gauss se manifesta de forma mais

 Quem não consegue obter o acordo do outro cônjuge e não pode Quem não consegue obter o acordo do outro cônjuge e não pode. invocar nenhuma violação dos deveres conjugais