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O QUESTIONAMENTO DO SUJEITO DE DIREITO

1.1 A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO a-SOCIAL

O homem e a sociedade existem na modernidade como problema. O discurso metafísico já não é garantia suficiente. O problema não é de outro mundo, mas deste mundo — um mundo moderno, que faz corte com a tradição. Um mundo de mudança, que precisa ser conhecido, controlado. A psicologia, a sociologia, o direito surgem como uma demanda de constituição científica do homem e da sociedade.

A demanda de cientificidade importa, assim, um corte com o mundo da totalidade e objetividade apriorísticas. O discurso científico, na sua abertura à realidade, ou antes, na sua pretensão de controle da realidade, é condição da constituição do sujeito. E isso porque a pretensão de representação da realidade, de conhecimento da realidade, é estruturalmente falha. A representação não é evidente ou imediata, mas mediatizada, efeito de uma operação discursiva de basteamento1. A ordenação do sistema científico, dos sistemas sociais e, em particular, do sistema jurídico, só se estabelece retroativamente pela ação de um significante2, que se destaca da cadeia de discurso e desde fora constitui e faz funcionar todo campo discursivo como um campo faltante: o significante, ao mesmo tempo em que totaliza, presentifica, positiva uma falta, um vazio estruturante de um campo discursivo. Ele faz ex-sistir o campo discursivo3.

1

LACAN, O seminário - livro 17, 1992, p. 180-181. 2

Ibid., p. 180-181. 3

Cito Lacan (O seminário - livro 16, 2004, p. 172): “[...] é por um ato que colocamos esse Outro, como campo do discurso — isto é, aquilo que cuidamos de afastar toda existência divina — é por um ato puramente arbitrário, esquemático e significante, que o definimos como Um [...] na ordem lógica desse estreitamento no qual tentamos fazer aparecer, nessa totalidade, o a como resto [...] Vamos chamá-lo, como já o chamei mais de uma vez no quadro de a-causa [...]” E ainda: “[…] essa introdução do S1, do significante-mestre, vocês a têm a seu alcance em qualquer discurso — é o que define a sua legibilidade.” (LACAN, O seminário - livro 17, 1992, p. 180).

O sujeito — sujeito da ciência — está implicado nessa ex-sistência. O significante determina, representa, mas não significa o sujeito. O funcionamento do significante provoca a foraclusão do sujeito, mas isso como condição da sua ex-sistência. Desse modo, a pretensão de que minha representação do mundo moderno — liberal, marxista etc. — traduza algo natural é, na verdade, efeito significante. É ideológica, mas não no sentido de um desvio ideológico, já que a representação funciona, produz efeitos de gozo4, constitutivos do discurso social, do discurso jurídico, do discurso científico.

O discurso científico é correlato de uma ilusão ideológica — uma ilusão, uma ficção funcionalmente necessária5. A unidade científica, que se sustenta na suposição de um saber, saber moderno, produzindo o sujeito como sujeito dividido, suposto, é uma unidade autodiferente, constitutivamente falha. O discurso científico não se inscreve assim no registro de uma teoria do conhecimento — que é de novo absoluta e totalizante —, porque ele tem um

estatuto performativo6 e é por isso que a suposta representação da realidade é um ato

discursivo — um ato discursivo fal-h-o7, condição da produção da diferença discursiva. Em um mundo moderno, complexo, de diferentes sistemas sociais, a ciência social não tem, pois, a função de explicar ou compreender a realidade, mas constituí-la. A ciência social importa posições discursivas, que geram efeitos diferenciados. A diferença não se opõe, assim, ao discurso científico, mas lhe é efeito. O discurso científico-social é autodiferente. Um discurso que, enquanto Um, é suposto e produz diferença social, na sociedade. Trata-se não de uma sociedade empírica, mas de uma sociedade mediada pela discursividade, pela

diferença entre posições discursivas8. Uma sociedade complexa, em que a unidade do

discurso científico-social é suposta — se não uma suposição substancial, uma suposição funcional, que permite ao sujeito operar e produzir diferença.

4

ZIZEK, Eles não sabem o que fazem..., 1992, p. 122. 5

Cf. Luhmann (Sociologia do Direito I, 1983b, p. 109, por exemplo, e Legitimação pelo procedimento, 1980, p. 172 et seq.), Ferraz Jr. (Teoria da norma jurídica..., 1978b, p. 174) e Legendre (Jouir du pouvoir..., 1976, especialmente p. 157). Para Lacan (O seminário – livro 7, 1988, p. 22), a verdade se estrutura como ficção. 6

Essa questão discursiva também vale para o campo político-social, como o mostra Zizek (O mais sublime dos histéricos..., 1988, p. 43), ao se reportar ao Seminário 17, de Lacan, e afirmar: “O ‘saber’ burocrático precisa de um ponto unário que ‘basteie’ seu discurso, que o totalize de fora, que tome a si o momento da decisão e confira a esse discurso a dimensão performativa.” A questão do estatuto performativo está também no discurso racional de Habermas, o qual atravessaremos para inscrever o (l)uhmannismo lacaniano.

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O falo tem assim o funcionamento de um significante. Sobre a função fálica e a articulação com a lógica do não-todo lacaniana, ou ainda, com uma lógica deôntica Ics, quer dizer, inconsistente e não trivial, ver Capítulo 8 desta tese.

8

Ou “posições sociais”, na expressão de Bourdieu (Razões práticas..., 1996, p. 18): “Trata-se, portanto, em cada momento de cada sociedade, de um conjunto de posições sociais [...]” — um conjunto constituído por um furo, um vazio, um sintoma que o estrutura. Berthelot (Sociologia, História e Epistemologia, 2005, p. 104), por sua vez, refere-se a um “sistema de posições” ao dar a definição de campo.

O sujeito social, se não é um sujeito associal, é porque é um sujeito a-social: o outro9, a diferença, lhe é constitutiva. Trata-se de um sujeito constituído como alteridade na relação com o Outro. Um sujeito fal-h-o, porque nessa relação com o Outro — estruturalmente furado — ele ex-siste como diferença social, diferença discursiva.

Esse sujeito a-social é o sujeito da psicanálise. Isso não quer dizer que o sujeito na psicanálise é um sujeito social, do campo social, e sim que ele, ao fazer laço social, se constitui como diferença e alteridade, a partir de uma demanda de cientificidade, que faz corte com um discurso totalizante. Não se trata, portanto, de opor a razão ao irracional, a ciência ao acientífico, mas mostrar que através da ciência se produz uma outra-razão, um outro-discurso, um discurso a-científico. Isso na psicanálise, na sociologi-a e na ciência jurídic-a.

A pretensão científica na sociologia, que tem raiz no positivismo do século XIX, coloca, ela mesma, problemas que repercutem no modo de se conceber o homem, a sociedade e o direito. A questão não é mesmo a de escolher entre a sociedade ou o homem, mas indagar da relação homem-sociedade, ou melhor, da relação entre o sujeito e um sistema social10 e, em particular, o sistema jurídico.

Muitos autores observam que a sociologia não prescinde de uma concepção de sujeito, da mesma forma que a psicologia explícita ou implicitamente procura tematizar a relação entre indivíduos, a relação social. Mas não se trata de opor a sociologia à psicologia, ou de postular uma síntese, presente em certas construções e induzida pela expressão psicologia social. A oposição entre psicologia social psicológica e psicologia social sociológica permanece, aliás, na oposição entre positivismo científico e crítica histórico- cultural, ou seja, entre Um-discurso científico — que é então absolutizado e identificado ao

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autre, na notação lacaniana, remete ao objeto a, que, conforme dissemos, constitui o vazio estruturante do campo jurídico, do campo social.

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Rigorosamente, um sistema social, já que o sistema social não existe, ou melhor, ex-siste, assim como ex-siste o conjunto universal estruturado por um vazio, uma falha constitutiva (Lacan, O seminário - livro 16, 2004, p. 75, por exemplo). Os sistemas sociais são constitutivamente falhos, autodiferentes e ex-sistem um-a-um. Reportando-se à teoria de Luhmann, Neves (Entre têmis e leviatã..., 2006, p. 60) refere-se à “[...] delicada questão da construção de sistemas autopoiéticos no interior de sistema autopoiético, de que resulta a noção de sociedade policontextural ou de mundo multicêntrico [a-cêntrico], na medida em que toda diferença transforma-se em ‘centro do mundo’”. Aliás, consoante Luhmann (Sistemas sociales, 1998, p. 181; 183, tradução nossa), “Cada sistema tem que contar em seu ambiente com outros sistemas [...] como qualquer formação nos sistemas sociais, também a formação de sistema no interior do sistema se leva a cabo autocataliticamente, quer dizer, auto-seletivamente. Não pressupõe nenhuma atividade do sistema global, tampouco uma capacidade de ação do sistema global, nem muito menos um plano global. Menos ainda ajuda afirmar que o sistema global se articula ou se divide em sistemas parciais. O sistema global só possibilita a auto-seleção do sistema parcial”. Citando um exemplo tirado de Durkheim, Luhmann (Ibid., p. 183, tradução nossa) conclui: “A unidade [autodiferente] do sistema global tem que encontrar sua expressão de acordo com o modo com que cada um destes sistemas parciais maneja sua relação com o ambiente (que contém os demais), já que nos sistemas diferenciados cada sistema parcial é, ao mesmo tempo, ele mesmo e ambiente de outros.”

discurso positivista — e sua crítica para além do discurso11. Não situa, pois, a crítica na diferença discursiva, na razão científica, na razão jurídica. Nem responde à questão de como situar aquela relação-entre-sujeito-e-um-sistema-social. Quer dizer, não coloca essa relação como questão. Ao contrário, toma-a como não problemática, justamente porque suscetível de transformação e emancipação no futuro — o que pressupõe a (de)negação e, pois, reafirmação, no presente, do discurso científico como discurso positivista; um discurso que não é objetivo e unívoco, senão por efeito de uma suposição. A pretensão de emancipação do sujeito repete, reproduz, pois, o discurso social como discurso estruturalmente fal-h-o, cujo engano é constitutivo da razão científica e da verdade do sujeito.

O discurso social não será tomado aqui como re-presentativo de um objeto específico e perfeitamente determinado — ou seja, a sociedade, em oposição ao indivíduo —, mas como estruturante da relação sujeito-e-um-sistema-social; uma relação impossível, já que a objetivação operada pela ciência — chamemo-la de ciência humana, cultural ou social — não é senão uma objetivação suposta. O projeto de delimitação do objeto, comum à sociologia e à psicologia, desconhece, portanto, o que é da estrutura desse objeto: ele não é suscetível de de-finição, justamente porque ele é um objeto sem-fronteiras, sem-sentido, sem-lei12. E sem-direito... de ser objeto de observação ou compreensão13, porque ele é produzido, na linguagem, no discurso, como outra-coisa14, como diferença radical, que é a-causa do desejo do sujeito15.

Se certos autores do século XIX e início do século XX nos servem de referência16, é justamente porque neles algo escapa à pretensão de fundar a ciência, enquanto ciência absoluta. Algo de ex-cêntrico é constitutivo da teoria desses autores. E, se não se trata de Um-discurso A-científico, é porque do que se trata é de um discurso a-científico, o que faz de seu objeto um objeto problemático: a sociedade, uma sociedade complexa, nem homogênea,

11

Cf., por exemplo, González Rey (Psicologia Social e saúde, 2004, p. 124). 12

Lacan (Le séminaire – livre 23, 1976, aula de 13.4.76, p. 5) refere-se ao real sem lei (consultar também o texto A Ex-sistência de Miller (2002, p. 10), ou como preferimos grafar, sem-lei, já que não se trata de uma falta de lei, mas da ex-sistência da lei, da norma, do direito, como um modo de dizer.

13

Aqui, observação, que se opõe à compreensão, se insere no registro da teoria do conhecimento e pressupõe a distinção entre ciência natural e ciência humana ou cultural. Não corresponde, portanto, ao sentido que tem na autopoiese social de Luhmann, que, como vimos, é compatível com a nossa abordagem.

14

Adiante, retomaremos a questão da Coisa na psicanálise. 15

Trata-se d’a-causa — causa não empírica, mas mediada pelo discurso, discurso analítico — como efeito de um-significante, constitutivo de um campo em que o vazio lhe é constitutivo (Cf. LACAN, O seminário - livro 16, 2004, p. 75; 172). O objeto sem-fronteira, sem-direito é, pois, no direito, por efeito da operação e da letra do jurista; efeito do direito, enquanto campo discursivo, campo simbólico-e-de-gozo e, pois, correlato do discurso jurídico como discurso a-científico, como veremos.

16

Trabalharemos, sobretudo, com Durkheim e Freud, mas pode-se citar também Marx (a quem Lacan atribui a invenção do sintoma social — ver introdução) e Weber (A ‘Objetividade’ do Conhecimento..., 1993, por exemplo).

nem caótica; o sujeito, um sujeito irredutível às categorias da pessoa, do in-divíduo, do Homem — numa palavra, um sujeito social dividido.

Essa divisão do sujeito social (ou a-social) é mediada pelo discurso. Os diversos discursos sociais, ao pretenderem a explicação ou compreensão da sociedade moderna, não conseguem senão marcá-la de modo fal-h-o, como diferença radical. Não se trata, portanto, de insistir em um discurso pretensamente neutro, único, que aponte para a simplificação do espaço social e linearidade da perspectiva histórica, nem, por outro lado, em uma crítica desse discurso, supostamente exterior à própria discursividade. Afinal, não existe metalinguagem (Lacan). Se não se trata de Um-discurso sobre a sociedade é porque do que se trata é de um discurso na sociedade, na relação social, que produz diferença — um discurso social (ou a-social) constitutivo de uma sociedade complexa, cujo espaço é ex-cêntrico e cuja história é uma história sem-sentido, atual.

A referência de Lacan17, no Seminário 17, às “[...] melhores pesquisas ditas

sociológicas [...]”, reportando-as ao discurso do mestre, ou seja, ao funcionamento do “[...] significante-mestre [...] demarcável a partir de uma economia [ou sociedade] mais complexa”, serve, assim, ao deslocamento das abordagens objetivantes e à implicação do sujeito — um sujeito suposto — em seu gozo e em sua ilusão constitutiva, por efeito da sua ligação com o significante-mestre18. Ora, isso importa a inscrição do discurso da análise19 e é, pois, condição da constituição do discurso social, discurso a-social. Não basta, dessa maneira, negar a redução da sociologia à psicologia (inclusive a psicologia social, do social); ao contrário, trata-se de recolocar a questão da relação sujeito-e-um-sistema-social, uma relação impossível, que remete ao próprio questionamento do estatuto do direito.

É nesse contexto, com efeito, que o direito pode se constituir como pretensão normativa na sociedade moderna e, no exercício de sua função social, suscitar, como veremos, uma questão sobre seu estatuto, o estatuto da razão jurídica, na razão jurídica, no discurso jurídico — um discurso a-científico — e produzir a ex-sistência do sujeito como sujeito a-social.

A constituição desse sujeito, como correlato de uma estrutura aberta — aberta por efeito de uma inscrição discursiva, que é condição da diferença discursiva —, é o que

17

Cf. LACAN, O seminário - livro 17, 1992, p. 86. 18

Ibid., p. 86-87. 19

Cito Lacan (Ibid., p. 95): “A formulação do discurso da análise que tentei dar-lhes demarca esse discurso a partir daquilo com que, por toda sorte de rastros, ele já à primeira vista se manifesta aparentado — a saber, o discurso do mestre. Ou melhor, é por estar mascarada a verdade do discurso do mestre que a análise adquire sua importância.”

pretendemos mostrar, a partir dos impasses que surgem do próprio discurso, da própria demanda de cientificidade de Durkheim e Freud.

1.2 O DISCURSO a-CIENTÍFICO DURKHEIMIANO: A COERÇÃO NO LAÇO SOCIAL E A a-

NOMIA JURÍDICA

É comum fazer-se referência ao positivismo de Durkheim, para em seguida defendê- lo ou criticá-lo. Mas não é dessa forma que colocaremos a questão. Não se trata de responder à pretensão durkheimiana de instauração de um discurso científico, enquanto fundador da sociologia, da ciência social.

Isso porque confirmar ou negar o positivismo durkheimiano, dizê-lo apropriado ou não apropriado, não são senão formas de sustentá-lo, de colocá-lo no centro das considerações. Ora, do que se trata é de descentrá-lo, de ler no positivismo durkheimiano, em seu dito, a ex-sistência de um dizer, um modo de dizer, modo de gozo20. Trata-se de mostrar que o projeto científico durkheimiano, pelo modo mesmo com que ele se constitui, pelas regras mesmas de sua constituição, é estrutralmente fal-h-o21. E que essa falha no discurso não significa desvio, exceção ou incorreção da ciência, mas é condição da instauração, assim

como em Freud22, de um novo modo discursivo, um outro-discurso, um discurso marcado

pela alteridade e o vazio que o estruturam — numa palavra, um discurso a-científico.

No prefácio à 1ª edição de As Regras do Método Sociológico, Durkheim23 enuncia de forma aparentemente inequívoca a sua proposta:

20

A propósito, cito Miller (Sobre o discurso da ciência, 2005b, p. 150; 154): “Se somos positivistas, há apenas os ditos. Se somos lacanianos, o dizer é isolável do dito, ‘o dizer se demonstra, e por escapar ao dito’.” E adiante: “Assim como o dizer, o real efetivamente ex-siste aos ditos”, em um campo de gozo. A problemática do gozo será articulada, como veremos, à sociologia jurídica de Durkheim e ao discurso freudiano.

21

Como se depreende do que diz Berthelot (Les règles de la méthode sociologique ou l’instauration..., 1988, p. 14), reportando-se às Regras do Método Sociológico de Durkheim, trata-se de, face a um texto, vislumbrar (ou ler) outros aspectos, para apreender a lógica ou as lógicas a que ele está submetido, acrescentando que o texto durkheimiano traz, ao mesmo tempo, em seu engendramento, a marca da unidade e da contradição (Ibid., p. 10). Aliás, como escreve Costa (Lógica indutiva e probabilidade, 1993, p. 18-19): “[...] a escolha da lógica subjacente a dado contexto se faz, conscientemente ou inconscientemente, por meio de princípios determinados, que são denominados de princípios pragmáticos da razão. Estes princípios mostram que a escolha de uma lógica não é arbitrária nem convencional, mas se baseia em vários parâmetros [...] Por conseguinte, a lógica não se acha determinada a priori [...]” A partir desse mesmo autor, nos reportaremos, especialmente nos Capítulos 4 e 8 desta tese, ao que denominamos lógica Ics — inconsistente e não trivial, constitutiva do campo jurídico, enquanto campo simbólico-e-de-gozo.

22

Ver adiante, seção 1.3. 23

Estender à conduta humana o racionalismo científico é, realmente, nosso principal objetivo, fazendo ver que, se a analisarmos no passado, chegaremos a reduzi-la a relações de causa e efeito; em seguida, uma operação não menos racional a poderá transformar em regras de ação para o futuro. Aquilo que foi chamado de nosso positivismo não é senão conseqüência deste racionalismo.

O que Durkheim24 pretende é, com efeito, fundar a sociologia, enquanto “[...] uma ciência das sociedades [...]”. A invenção do termo, de origem comteana25, não é o problema de Durkheim. Ele não disputa a primazia da designação, mas pretende estabelecer as bases de um discurso propriamente científico para a sociologia. Ele pretende, numa palavra, realizar um corte epistemológico. E para isso rejeita todos os pré-conceitos comprometidos com o discurso vulgar ou metafísico, mesmo a “[...] metafísica positiva de Comte ou Spencer”26.

A sociologia durkheimiana pretende, assim, dar uma resposta racional a um mundo em mudança, um mundo complexo. Um mundo moderno que, se de algum modo nos é próximo, familiar, implica um estranhamento constitutivo, como o sabe Freud27.

A ciência social, ao pretender o conhecimento e controle dessa nova realidade, atribui o estranhamento ao outro, às certezas pré-concebidas e às impressões imediatas, desconhecendo que ele lhe é constitutivo e produz diferença. Esse desconhecimento estrutura o discurso científico e faz do mundo moderno um mundo que, se não é transparente, é suscetível de ser questionado e esclarecido. O sujeito está implicado nesse desconhecimento e na foraclusão que ele importa, ou seja, o sujeito ex-siste como foracluído, o que é condição da produção de um conhecimento supostamente objetivo, seja da realidade natural, seja da realidade social.

Mas, afinal, que é a realidade social e como conhecê-la? À sociologia, enquanto ciência da sociedade, enquanto campo de saber autônomo, cumpre responder a essas questões, ou seja, cumpre estabelecer o método próprio de investigação e a definição de seu objeto. É a partir das escolhas promovidas por Durkheim, através delas, que vai se colocar o delineamento de seu projeto epistemológico, mas ao mesmo tempo os impasses que estruturam o seu discurso.

A regra clássica de tratar o fato social como coisa implica, com efeito, questões que não podem ser reduzidas à discussão sobre o positivismo durkheimiano e sua suposta adesão ao projeto metodológico das ciências naturais. Durkheim é expresso em preconizar a

24

DURKHEIM, As regras do método sociológico, 1990, p. XV. 25

Cf. GIDDENS, Política, Sociologia e Teoria Social..., 1998, p. 170. 26

Cf. DURKHEIM, As regras do método sociológico, 1990, Pref. à 1ª ed., n. 1, p. XVII. 27

referência “[...] aos únicos modelos existentes, ou seja, às ciências já formadas”28. Insiste na necessidade de observação e explicação dos fatos sociais, mas o uso que faz desses e outros enunciados envolve perplexidades que questionam seu suposto positivismo.

O questionamento de que se trata não se reduz, aliás, à oposição entre positivismo e idealismo na obra de Durkheim29, a partir, por exemplo, do confronto entre as noções de fato social e consciência coletiva, o que seria para muitos uma prova da indefinição durkheimiana entre uma direção realista e uma idealista. Os debates sobre o tema são intermináveis. Mas retomar essa discussão é de novo insistir nos modelos — positivistas ou idealistas — já existentes, sem atentar para a trama mesma do discurso do autor — uma trama atual.