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DISCURSO, ESTRUTURA E MATEMATIZAÇÃO COMO QUESTIONAMENTO DA RAZÃO CIENTÍFICA E DA NORMATIVIDADE

No documento O DIREITO COMO CAMPO DE GOZO E O LAÇO SOCIAL (páginas 188-200)

MODELOS TEÓRICOS E DISCURSO NA ARTICULAÇÃO ENTRE O DIREITO E A PSICANÁLISE

5.1 DISCURSO, ESTRUTURA E MATEMATIZAÇÃO COMO QUESTIONAMENTO DA RAZÃO CIENTÍFICA E DA NORMATIVIDADE

O estatuto da razão jurídica é, como vimos, problemático, já que não existe uma solução epistemológica exclusiva. Não existe uma teoria científica englobante ou totalizante, que exclua a cientificidade das demais. A razão jurídica, na contemporaneidade, não se reduz à teoria do conhecimento ou à teoria dos valores. Se se trata de uma razão na ciência ou através da ciência, é justamente porque as teorias científicas não são em si mesmas verdadeiras ou falsas, mas funcionais. Os modelos teóricos no direito não são descritivos ou compreensivos, mas funcionais. A razão jurídica é funcional, ao não se identificar com qualquer teoria científica, já que se situa na diferença-entre-elas. A razão jurídica corresponde, com efeito, a uma estrutura em que a falta, a lacuna — o vazio lhe é constitutivo.

Isso coloca o problema da unidade do direito. Essa questão, aliás, não é válida apenas para o campo jurídico. Ela é também, por exemplo, uma questão do campo da física, o campo científico por excelência. A instituição da física como física matemática faz corte com a imediatidade do empírico, tornando impossível a ciência natural, e , no seu desdobramento — de Galileu aos tempos atuais —, acaba por colocar a questão da diferença entre os modelos teóricos e, pois, da instituição do vazio como vazio real.

A questão da unidade reporta-se assim, em última instância, ao campo da matemática e à sua relação com as ciências. O problema da unidade se articula aos problemas da fundamentação da ciência e da sua formalização matemática. Um problema que se coloca também no campo das ciências ditas humanas, com o recurso crescente à matematização.

A controvérsia sobre a compatibilidade ou a incompatibilidade entre tais ciências humanas e a matemática não é nova. A afirmação da incompatibilidade considera o estatuto dos dois campos aprioristicamente dados e identificados, respectivamente, à dimensão

qualitativa e quantitativa. A defesa da compatibilidade não elimina esta oposição, apenas desqualifica a ciência humana enquanto tal, ou seja, a reduz à ciência natural. Esse modo categórico de apresentar a questão exclui, portanto, a possibilidade de uma abordagem que atenda, ao mesmo tempo, à precisão da matemática e à especificidade dos objetos humanos ou culturais.

O deslocamento desse modo categórico importa um questionamento a respeito da ex- sistência da matemática e das ciências humanas e da relação entre elas. Afinal, que se entende por matemática e qual o estatuto das ciências humanas? Qual a repercussão da existência de matemáticas com diferentes fundamentos? É possível falar em ciência humana quando já não há a Outra ciência natural que a sustenta? A matemática é um campo de garantia do pensamento e de necessidade dedutiva ou um campo de letras que constitui discursivamente um campo científico marcado pela diferença? A questão — questão real —, não surge justamente quando o problema da matematização faz corte entre o sujeito — sujeito dividido — e o Homem, o in-divíduo, que fundamenta as ciências humanas?

Essas questões, que condicionam aquele deslocamento, apontam para um problema funcional, ou seja, a função que a matemática desempenha na relação com as ciências

humanas não é única1. Tem-se em primeiro lugar — especialmente a partir do aumento da

tendência à matematização nas ciências humanas, que ocorre a partir da Segunda Guerra Mundial — uma função instrumental, relativa à análise de resultados de pesquisas ditas empíricas. A matemática é então reduzida ao uso de procedimentos estatísticos, quantitativos e supostamente objetivos, sem a iniciativa de uma elaboração ou reelaboração conceitual e, especialmente, sem indagação quanto ao efeito de letra que, como vimos, é constitutivo da estatística2.

Ora, se a questão não é meramente instrumental, mas discursiva e funcional, é porque ex-siste outra-função, uma função estruturante, que faz a matemática incidir na fundamentação teórica de outros campos, ou seja, na constituição de modelos teóricos3, ainda quando aquela tendência instrumental suponha possível prescindir da mediação discursiva.

1

Cf. BUNGE, Teoria e realidade, 1974, p. 11 et seq. 2

Consultar Capítulo 4, seção 4.1.1. 3

Como diz Bunge (Teoria e realidade, 1974, p. 29), “[...] o termo ‘modelo’ designa uma variedade de conceitos que é preciso distinguir”. N. Machado, em seu Matemática e Realidade (1987, p. 74, grifos do autor) destaca “[...] duas instâncias epistemológicas da palavra modelo [...]”, uma conforme a “[...] ótica dos neo-positivistas do Círculo de Viena [...]”; outra que decorre “[...] de uma concepção da atividade científica como produtora de modelos teóricos explicativos do real, como em Lévy Strauss”. O autor acrescenta que “[...] existe outra acepção do termo modelo, que se relaciona com montagens, autômatos, ou grafos [...]”. (Ibid., p. 74). Não obstante a utilização que faz dos grafos do desejo, Lacan (O seminário - livro 22, inédito, aula de 17.12.74) afirma “[...] repudiar a qualificação de modelo”. Ele, entretanto, não apenas esclarece que o repúdio é “[...] no sentido que se entende, por exemplo, os modelos matemáticos [semânticos] [...]” (Ibid., aula de 17.12.74),

É desse modo que a estrutura é uma categoria primeiramente matemática, que se transpõe para outros campos como a lingüística, a antropologia e as ciências sociais. O estruturalismo, que propõe uma abordagem não intuitiva, mas teórica da estrutura, estende a matematização a outros campos, cujos objetos são os objetos culturais, sociais, enfim, objetos humanos e, em primeiro lugar, a linguagem. Essa matematização estendida se caracteriza por um aspecto destacado por Lacan na sua apreensão do estruturalismo, ou seja, a ruptura com a oposição entre quantitativo e qualitativo: o cerne da matemática já não são as categorias de medição, mas a literalização4.

A leitura estrutural, estruturalista, importa uma distância com relação ao historicismo. Não há uma continuidade, não há uma história contínua. Nem existem noções substanciais anteriores à estrutura, e é por isso que o homem e sua história só têm existência a partir da estrutura, que o constitui. A estrutura é fundante — é o fundamento discursivo do próprio campo em questão, independente de tratar-se de objetos da natureza ou objetos culturais, até porque essa oposição não é apriorística: o objeto é sempre objeto na estrutura; ele não tem existência anterior à estrutura, à ciência.

A idéia de fundação de um campo não é, aliás, nova, como o mostram as discussões que fizemos acerca das teorias de Durkheim, Freud e Kelsen. A estrutura piramidal kelseniana, por exemplo, produz um corte que institui o campo jurídico e instaura os problemas do conteúdo da decisão e do sentido no direito — problemas que não podem ser

como, em outro momento, convida-nos “[...] a desconfiar das propriedades imaginativas daquilo que eu impropriamente chamava ‘modelos’”. (LACAN, apud BAIRRÃO, O impossível sujeito..., 2003, p. 132). Dissociada a concepção de modelo da pretensão de representabilidade e cognição (Cf. BAIRRÃO, O impossível sujeito..., 2003, p. 132), vamos, como veremos, usá-lo na perspectiva da literalização dos discursos e articulado ao registro da pragmática, segundo Ferraz Jr. (Cf., por exemplo, Função social da dogmática jurídica, 1978a e Direito, retórica e comunicação..., 1997), Soulez (Enodamento entre letra e lugar?, 2000, p. 57), Lenk (Razão pragmática..., 1990, p. 107 et seq.) e Granger (Lógica e pragmática da causalidade..., 1989), o que importa uma redefinição da razão científica (como razão a-científica) e uma concepção operacional da matemática (Cf. GRANGER, A Razão, 1985, p. 78; Cf. também D’AMORE, Epistemologia e Didática da Matemática, 2005, p. 26 et seq. e LENK, Razão Pragmática..., 1990, p. 107 et seq.). Para melhor contextualização do assunto, cito Krause (Introdução aos fundamentos..., 2002, p. 7, colchetes do autor): “O uso de um ou outro método, para as finalidades da matemática comum vem de critérios pragmáticos [...] Perceber que podem haver realizações (modelos) que, sob certo ponto de vista, ‘são completamente distintos’ uns dos outros (no sentido de que não são isomorfos), mas que são no entanto descritos pela mesma estrutura axiomática, constituiu avanço em matemática que não pode ser desprezado. Aliás, Bourbaki descreve o nascimento da ‘matemática moderna’ como sendo precisamente a tomada de consciência deste fato. Disse ele: ‘o estudo de teorias não categóricas [que ele chamava de ‘multivalentes’] é o traço mais surpreendente que distingue a matemática moderna da matemática clássica’.” E Lacan (O seminário - livro 20, 1985, p. 65, grifos do autor): “Ajuntemos essas coisas absolutamente heteroclíticas, e nos demos o direito de designar esse ajuntamento por uma letra. É assim que se exprime em seu princípio a teoria dos conjuntos, aquela, por exemplo, que da última vez coloquei com o título de Nicolas Bourbaki [...] os autores — como vocês sabem, eles são múltiplos [...] tomam mesmo o cuidado de dizer que as letras designam ajuntamentos. Aí é que está a timidez deles, e seu erro — as letras constituem os ajuntamentos, as letras são, e não, designam, esses ajuntamentos, elas são tomadas como funcionando como esses ajuntamentos mesmos.”

4

Ver, além da citação de Lacan (O seminário - livro 20, 1985, p. 65), na nota anterior, Milner (A obra clara..., 1996, p. 75).

imediatamente históricos; ao contrário, requerem a mediação de uma estrutura simbólica. Os impasses no discurso kelseniano, o relativismo em que recai, correlato da rigidez de sua estrutura hierárquica, terminam, entretanto, por dar sustentação a construções teóricas comprometidas com a totalização do sentido e inscritas na oposição entre o quantitativo e o qualitativo, que então informa a separação entre ciências naturais e ciências humanas.

Ora, é justamente a ruptura dessas oposições o que interessa a Lacan, e o que vai orientar a sua utilização do estruturalismo e da lingüística na função de instaurar a prevalência do simbólico sobre o imaginário. Se o sujeito é marcado, como vimos, por uma alteridade, esta não se reduz ao outro semelhante, mas diz respeito à instauração de um Outro simbólico, entendido como pura diferença. É a partir daí que Lacan pode, num retorno a Freud, estabelecer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Desse modo, ainda que a abordagem lacaniana ultrapasse os limites do estruturalismo, a utilização deste vai servir para mostrar que o campo psicanalítico é, de um lado, irredutível a qualquer in-consciente histórico, não mediatizado e, de outro, incompatível com a idéia de consciência racional, pressuposta pela psicologia.

A estrutura não tem assim uma dimensão substancial, mas funcional. Ela institui o funcionamento entre seus termos. Ela os institui e os faz funcionar. Um termo não é... anterior à estrutura, que por isso mesmo não pode ser considerada como resultado da soma ou síntese de tais termos. Os termos não são — não têm um conteúdo ou uma essência prévia, nem dispõem de qualidades próprias, sensíveis —, porque eles valem pelo lugar que ocupam na estrutura, segundo as relações diferenciais constituídas na estrutura. Por isso mesmo, o estruturalismo está do lado da ciência moderna, em oposição à física aristotélica5, instituindo as condições para a matematização — matematização significante6.

A linguística importa, com efeito, uma matematização. Esses termos não se recobrem totalmente no discurso lacaniano. Se existe um Lacan que usa a matemática, este não é estritamente lingüístico. A teoria lacaniana não é uma teoria lingüística. Ainda quando se vale do estruturalismo saussureano, Lacan não privilegia uma teoria do signo. Não há, com efeito, correspondência entre significante e significado, justamente porque a leitura lacaniana do estruturalismo saussureano o faz estabelecer a primazia do significante — um elemento “[...]

5

MILNER, A obra clara..., 1996, p. 75. 6

intrinsecamente matemático [...]”7, que, enquanto tal, permite a reelaboração do discurso científico e a instauração do discurso analítico8.

É verdade que também para a lingüística saussureana o significante só vale enquanto tal na relação com outro significante, o que remete à noção de cadeia, cuja estrutura mínima corresponde à notação lacaniana S1 Æ S2. Mas essa notação não pode ser lida estritamente, se

estamos no registro de um estruturalismo deslocado como o é o lacaniano9. Se a noção de

diferença remete ao conceito de valor em Saussure10, Lacan o recupera, através da sua

concepção do ponto de basta, já sem as limitações impostas por uma teoria do signo. O que o valor saussureano permite a Lacan enfatizar é o funcionamento da estrutura — um funcionamento em termos diferenciais. A relação diferencial na formulação lacaniana não se dá, entretanto, apenas entre termos vizinhos, e é isto que permite o deslizamento significante e a emergência do sujeito.

A emergência do sujeito redefine a função da barra do esquema saussureano, que Lacan situa, inicialmente, em termos de resistência à significação e, depois, como inscrição da borda real, por efeito da letra11. A relação significante/significado não é simplesmente sígnica, não faz Um, não tem uma função comunicativa. Se o significante não representa o sujeito... senão para outro significante — ou em termos de Frege, se “[...] ‘o um representa o zero para um outro um’ [...]”12 —, é porque esse sujeito não é Um-nificado, ou, mais precisamente, porque Há Um sujeito, que ex-siste à lingüística, ao se articular discursivamente ao gozo:

‘O significante representa o sujeito para um outro significante’ é uma relação que resume a alienação simbólica, mas os discursos de Lacan introduzem, de algum modo, que o significante representa um gozo para um outro significante [...] Ao representar o gozo o significante o faz faltar, assim como o significante que representa o sujeito o faz faltar também, uma vez que o sujeito permanece ao lado, como conjunto vazio.13

7

MILNER, A obra clara..., 1996, p. 87. 8

A propósito, Lacan (A ciência e a verdade, 1998n, p. 876) se refere à “[...] matemática do significante [...]”, relacionando-a ao discurso científico. Ou como diz Milner (A obra clara..., 1996, p. 86): “O sujeito da ciência matematizada pode e deve ser instituído como sujeito de um significante [...]”

9

Sobre o assunto, consultar, dentre outros, Arrivé (Lingüística e Psicanálise, 1994), Bairrão (O impossível sujeito..., 2003), Milner (A obra clara..., 1996) e Mota (O conceito de estrutura e a..., 1992).

10

Cf. SAUSSURE, Curso de lingüística geral, 1995, p. 128 et seq. 11

Rabinovich (Sexualidad y significante, 1991, p. 85, tradução nossa), reportando-se ao texto lacaniano Radiofonía (2003d), afirma que “[...] a definição da barra se modifica. Se antes era ‘resistente à significação’, agora é ‘uma borda real’. A função topológica da borda entra em jogo aqui unida ao real, quer dizer, novamente ao impossível”.

12

FREGE apud WEBERN, Introduction, 1994, p. 38, tradução nossa. Ou seja, “[...] o zero como a falta do sujeito [...]”. (Ibid., p. 38, tradução nossa).

13

O sujeito é, numa palavra, efeito das leis de linguagem — a metáfora e a metonímia; mas, porque se trata do sujeito do inconsciente na alíngua, essas categorias lingüísticas devem ser redefinidas14.

A metáfora insere-se no registro do recalque originário freudiano, o qual não tem uma função genética, mas estrutural e discursiva. A metáfora, que corresponde a uma substituição significante, permite a inscrição do significante fálico — um significante que, ao veicular uma demanda, ocupa o lugar de S1 — como estruturalmente recalcado, não representativo, e sim performativo, marca na contingência. Esse significante unário não faz Um, senão por efeito de uma operação de basteamento e suturação, que enquanto tal implica a emergência do sujeito, só depois, como sujeito dividido, ex-sistente. S1, portanto, não corresponde, na cadeia significante, senão ao lugar da falta e é simbolizado por “[...] um (-1)

no conjunto dos significantes”15. Ele, enquanto traço do idêntico, funciona como a

representação do não idêntico16. Ele é, ao mesmo tempo — um tempo atual, como vimos —

condicionado e condicionante da ordem simbólica, metafórica, que faz do Outro o lugar do saber (S2), marcado por um vazio que lhe é constitutivo:

S1 é o ponto formal, vazio, sem nenhum conteúdo concreto, ponto de uma decisão suturante que totaliza, de fora, a bateria dos significantes, pondo-lhe um limite como ponto de apoio, que lhe confere a coerência de um saber. S2, para Lacan, é esse saber inscrito e organizado. S1, o significante mestre, toma a si o momento da decisão e confere ao discurso uma dimensão performativa. Ele é um nome vazio, o Nome-do-Pai, que, ao se isolar enquanto S1, faz o gesto de criação que confere a uma dispersão caótica de traços o estatuto de um universo: S2, um saber organizado da bateria dos significantes. Nesse gesto de fundação, os traços não significantes ganham significação, submetidos que estão no campo delimitado.

[...]

Uma vez que se contou Um na ordem do significante, é o primeiro significante que é o significado do sujeito, o falo. Esse significante significa para o sujeito, o contador da história, que ele não pode ser incorporado à cadeia. A falha, a ausência da cadeia, é ele. O zero é ele: é ele que é rejeitado da cadeia para que ela possa subsistir e consistir. Esse significante determina para o sujeito que ele só pode se representar na cadeia. Ele se representa, então, mas a um outro significante, e não a si. A sua representação se faz por uma substituição — uma metáfora, um no lugar do zero [...] O sujeito vem do extra-lógico, do extra-simbólico do real, para ser representado no simbólico. A sua cogitação só se faz ao se abrir o sistema lógico que sustenta o simbólico, para cogitar o real. 17

É nesse contexto que se deve entender a afirmação de Lacan de que não existe metalinguagem e de que, portanto, não é possível a duplicação do traço (S1), porque o que

14

Rabinovich (Sexualidad y significante, 1991, p. 84, tradução nossa), reportando-se ao texto lacaniano Radiofonia (2003d), refere-se à “[...] revisão da metáfora e da metonímia que [...] implica sua articulação com o gozo, ausente na época da ‘Instância da letra’”. Consultar ainda Rabinovich (Modos logicos del amor de transferência, 1992, p. 61).

15

Cf. LACAN, Subversão do sujeito e dialética..., 1998j, p. 833. 16

Cf. MILLER, A sutura..., [19--], p. 221. 17

ex-siste é a “[...] estrutura da repetição como processo de diferenciação do idêntico”18, como modo de gozar. Ora, isso afasta Lacan do estruturalismo19, que supõe uma estratificação20, ou, no caso de Saussure, mais precisamente a idéia de uma estrutura total, definida por um saber lingüístico, que privilegia o estudo da língua e suas relações diferenciais, entendidas como relações internas à estrutura, ao sistema21.

A estrutura em Lacan é, ao contrário, uma estrutura aberta, e não simplesmente em oposição a uma ordem fechada, mas por efeito de um fechamento significante, de uma operação de suturação. Desse modo, há um furo na cadeia sincrônica, e é isso que autoriza a a-parição do sujeito pelo deslizamento metonímico. Ora, se esse deslizamento não é incessante, se não se trata de simples indefinição de significação, é porque a suturação é correlata de um corte metafórico, que implica um enodamento sinthomático e, pois, a não-relação entre o significante e o significado, como efeito da contingência22.

Esse corte metafórico, que inscreve a função real da borda, enquanto função topológica, efeito da letra, é um corte discursivo. Lacan concebe o discurso como laço social. Mas isso deve ser bem entendido: os discursos não totalizam e, portanto, não servem à garantia da idéia de uma coletividade social. Ao contrário, os discursos operam cortes descontínuos e por isso mesmo não se comprometem com aquela função sígnica de comunicação, nem com qualquer linearidade histórica, mas produzem efeitos de gozo, ex-cêntricos à estrutura — uma estrutura marcada por um vazio que a constitui — e implicam o sujeito, enquanto responsável pela de-cisão de positivar a letra que inscreve os discursos e os faz funcionar.

Essa literalização da teoria dos discursos se lê a partir do discurso analítico, que os inscreve, um a um, como diferença. O ato analítico, ato discursivo os enoda a uma ética — a ética do desejo, ética do bem dizer, irredutível ao registro ontológico, ou mesmo ôntico, e incompatível com a oposição entre eticismo e relativismo. Não se trata, com efeito, da instituição de uma multiplicidade caótica, mas da formalização de uma estrutura constitutivamente falha, que se abre ao real por efeito de um ato discursivo.

18

Cf. MILLER, A sutura..., [19--], p. 221, grifo do autor. 19

Também para Luhmann (Sistemas sociales, 1998, p. 255, tradução nossa), “[...] uma opção teórica estruturalista é inaceitável para uma teoria de sistemas auto-referenciais”.

20

Cf. ARRIVÉ, Lingüística e Psicanálise, 1994, p. 120. 21

Cf. SAUSSURE, Curso de lingüística geral, 1995. 22

Cf. LACAN, O seminário - livro 20, 1985, p. 43; 56. Como diz Rabinovich (Modos logicos del amor de transferencia, 1992, p. 61, tradução nossa), “[...] a disjunção da cadeia significante, indicada pela disjunção entre S1 e S2, implica que há um saber, S2, em que os significantes se relacionam em função da contingência [...]”. Por isso, “[...] Lacan assinala que a relação significante-significado deveria ser designada como contingente e não como arbitrária [Saussure]”, o que “[...] exigirá a Lacan [...] pensar em termos de nó a metáfora e a metonímia”. Sobre o enodamento e o sinthoma e demais aspectos do que estamos tratando ver ainda a Introdução desta tese.

Essa estrutura e essa formalização nos permitem retomar o problema durkheimiano — problema moderno — relativo à normatividade jurídica, que contemporaneamente se coloca como o problema dos modelos teóricos no direito. Ou ainda: se o sujeito da ciência moderna — sujeito galileiano, kleperiano, descartiano, kelseniano, durkheimiano — é o sujeito em relação ao qual opera a psicanálise, como afirma Lacan, qual o estatuto do direito e da psicanálise?

A discussão do estatuto da razão jurídica, a partir de uma articulação com o discurso psicanalítico, nos introduz no tema da formalização no direito e, em especial, coloca a pergunta sobre o que se entende por estrutura normativa e qual a sua relação com a matemática. O modo de relacionar normatividade, estrutura, discurso, matemática é, assim, o eixo que vai nos permitir retomar o problema da razão jurídica e da cientificidade no direito:

a) primeiro, analisaremos a concepção de modelo teórico segundo a abordagem clássica da teoria tridimensional do direito;

b) em seguida, retomaremos a discussão dos modelos teóricos no direito, tomando como referência a abordagem de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, o que nos permitirá instaurar a diz-mensão pragmática, real no campo jurídico, através da diferença- entre-modelos, em articulação com a teoria dos discursos de Lacan;

c) a partir daí, situaremos a discussão do estatuto da psicanálise na teoria lacaniana, com o questionamento da oposição entre ciências naturais e ciências humanas, abordando desde a sua concepção de ciência conjectural até o problema da literalização discursiva, enquanto condição pragmática, real da inscrição da ética

No documento O DIREITO COMO CAMPO DE GOZO E O LAÇO SOCIAL (páginas 188-200)