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A CRÍTICA DO DIREITO

No documento O DIREITO COMO CAMPO DE GOZO E O LAÇO SOCIAL (páginas 167-188)

O POSITIVISMO JURÍDICO COMO ATO DISCURSIVO E CONDIÇÃO DA CRÍTICA NA RAZÃO JURÍDICA

4.2 A CRÍTICA DO DIREITO

A crítica do direito, enquanto direito identificado ao direito positivista, pode ser reportada, em primeiro lugar, à Jurisprudência dos Interesses, que resulta de uma virada

metodológica de Jhering em direção a uma “[...] abordagem pragmático-utilitária”60,

representando uma oposição à primeira etapa de sua produção teórica, que se insere na Jurisprudência dos Conceitos. Tal crítica não implica, entretanto, justamente porque se trata

58

Cf. WIEACKER, História do Direito privado moderno, 1993, p. 492; WILHELM, Metodologia giuridica nel secolo XIX, 1974, especialmente p. 161 et seq.

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Em relação ao dispositivo analítico, que discutiremos adiante, remetemos essa afirmação a Villalba (Seminário sobre o cálculo do gozo, 2005).

60

de uma oposição, em abandonar a ilusão na perfeição científica — uma ilusão funcionalmente necessária, constitutiva da razão jurídica. É por isso que na Jurisprudência dos Interesses, “[...] o sistema não perde o seu caráter de totalidade fechada e perfeita, embora perca em parte a sua qualidade lógico-abstrata”61.

Kelsen, por sua vez, desconhece que os impasses da ciência tradicional são estruturantes do campo do direito e por isso, como vimos, a critica e a (de)nega. Vamos situar essa questão a partir de sua crítica às teorias de direito subjetivo62, enquanto teorias essencialmente privatistas63 (próprias à idéia de um sistema total, supostamente capaz de uma significação (e)unívoca). Elas supõem, consoante Kelsen, a distinção ideológica entre direito público e direito privado, desvinculando o sujeito de direito do campo que o institui — o normativo.

Ora, o sujeito de direito não é psicologicamente autônomo ou independente, nem pode ser tomado como uma realidade ética ou empírica preexistente. O direito subjetivo não se fundamenta psicológica ou eticamente, nem corresponde a um interesse previamente existente que deve então ser reconhecido e protegido. O sujeito de direito não tem uma existência própria, prévia, porque ele existe enquanto sujeito normativo, é constituído na relação normativa, simbólica. Ele não é subjetivo, no sentido de individual — de um indivíduo essencialmente livre, inclusive na regulação de seus interesses —, porque o sujeito de que se trata não tem uma existência anterior à norma que o institui. Nesse sentido, o poder que lhe é conferido não corresponde à posse de um poder enquanto realidade independente ou autônoma — psicológica, empírica ou eticamente garantida —, mas corresponde radicalmente a um poder normativo.

Mas então, a relação entre direito subjetivo e direito objetivo deve ser recolocada. O direito objetivo não reconhece, mas constitui normativamente o direito subjetivo: sua aplicação não tem a garantia de qualquer conteúdo a ser re-conhecido.

O direito não pode assim ser reduzido a um sistema logicamente fechado, nos termos do positivismo legal ou científico. Ele não é suscetível de aplicação, ou seja: a decisão jurídica não decorre imediatamente da lei ou da vontade psicológica do legislador, nem é suficiente a mediação de conceitos jurídicos sintéticos, desdobrados dedutivamente, segundo

61

Cf. FERRAZ JR., Introdução ao estudo do Direito..., 1988, p. 81. Ao tratar dos limites do direito alternativo e da crítica jurídica (ou seja, crítica do direito), Campilongo (Política, sistema jurídico e..., 2002, p. 113) refere- se às “[...] críticas de Luhmann às interpretações que contrapõem ‘jurisprudência dos interesses’ e ‘jurisprudência dos conceitos’ (ou, na linguagem de Faria, ‘direito denúncia’ e ‘direito sistema’) como se fossem dois universos antagônicos”.

62

Para o que segue consultar especialmente Kelsen (Teoria pura do Direito, 1984, p. 184 et seq.). Consultar ainda o que vimos a respeito da teoria kelseniana no Capítulo 3, seção 3.4.2.

63

os princípios da lógica formal, na pressuposição de uma base ontológica e uma concepção substancial de sujeito de direito.

Isso recoloca o problema da interpretação, que opõe Kelsen ao que ele chama de teoria tradicional:

A idéia, subjacente à teoria tradicional da interpretação, de que a determinação do acto jurídico a pôr, não realizada pela norma jurídica aplicanda, poderia ser obtida através de qualquer conhecimento do Direito preexistente, é uma auto-ilusão contraditória, pois vai contra o pressuposto da possibilidade de uma interpretação.64

A interpretação não produz uma determinação perfeita do conteúdo — ela não é plenamente vinculante, não garante o conhecimento total. Ao contrário do que supõe o positivismo legal ou científico, não há uma solução correta que exclua outras, mas, consoante Kelsen, uma pluralidade de possibilidades na aplicação do direito.

A teoria kelseniana da interpretação jurídica supõe a fixação cognoscitiva de uma moldura concernente ao direito a ser aplicado, mas isso não elimina a indeterminação. Não faz da interpretação uma descrição porque, para além da fixação da moldura, a indicação da solução para o caso concreto importará sempre uma escolha entre diferentes significações possíveis, importando uma indeterminação que, segundo Kelsen, já não é problema estritamente científico, mas uma questão de política do direito.

A distinção kelseniana entre interpretação autêntica e interpretação não autêntica não é, aliás, essencialista. Não significa que aquela é capaz de atingir o verdadeiro direito a ser aplicado, através dos métodos jurídicos disponíveis. Afinal, não há uma técnica ou método jurídico absolutamente racional, capaz de uma apreensão correta do direito positivo.

Interpretação autêntica, portanto, não indica senão que o responsável por ela é um órgão jurídico, ocupa um lugar simbólico, juridicamente instituído65, capaz de produção normativa e, pois, de criar direito. Uma criação, uma construção jurídica, aqui no sentido de que não é simplesmente científica, objetiva, mas implica a decisão de quem é normativamente autorizado. Não se trata, pois, conforme Kelsen, de um puro ato de conhecimento, porque constitui também um ato de vontade, ao contrário do que concebe a teoria tradicional, cujo dogmatismo supõe que “[...] através de uma pura actividade de intelecção, pudesse realizar-se, entre as possibilidades que se apresentam, uma escolha que

64

KELSEN, Teoria pura do Direito, 1984, p. 469. Para o que segue ver p. 463 et seq. 65

correspondesse ao Direito Positivo, uma escolha correcta (justa) no sentido do Direito Positivo”66.

Essa crítica kelseniana não é, entretanto, suficiente à redefinição da dogmática jurídica e da razão no direito, pelos seguintes aspectos que destaco:

a) o positivismo normativo, que pressupõe uma razão universal, não desloca o ideal de cientificidade próprio ao positivismo legal ou científico, mas o (de)nega, como o mostra o uso de oposições como ato de conhecimento e ato de vontade, ciência do direito e política do direito;

b) a noção de interpretação autêntica serve para situar a prevalência do normativo, ou seja, do simbólico, enquanto inscrição de lugares juridicamente institucionalizados, mas a indeterminação e relativismo interpretativo que acarreta — opostos ao determinismo da teoria tradicional, o que de novo representa uma de(negação) — não permitem colocar o problema da ex-sistência do sujeito, nem o problema da constituição do direito como discurso a-científico, senão através de um ato analítico, discursivo: o ato de ler a teoria jurídica kelseniana e inscrevê-la como via de gozo.

Ora, por isso mesmo, não se trata de responder ao positivismo normativo kelseniano e aos impasses que ele suscita com uma teoria da cultura universalizante, a qual promove a objetivação do sujeito, a partir de uma concepção sintética e axiologicamente uniforme, e faz da teoria do conhecimento uma teoria dos valores culturalmente orientada, que supostamente ordena a realidade e garante a unidade de sentido e interpretação jurídica, neutralizando a diferença entre pontos de vista e posições discursivas67. Nem se trata de proceder, perante a teoria kelseniana, que supõe, como vimos, o funcionamento de um direito e de um Estado liberal, a uma crítica ideológica de orientação marxista, como se fosse possível uma crítica e um lugar da boa consciência exteriores ao próprio funcionamento do sistema jurídico. As experiências histórico-sociais mostram que a pretensão de realização desse discurso marxista não faz senão inscrevê-lo efetivamente como via de gozo, ou seja: mostram que o direito

66

KELSEN, Teoria pura do Direito, 1984, p. 467. 67

O limite desse objetivismo cultural é situado por Weber (A ‘objetividade’ do conhecimento..., 1993, p. 131), para quem “[...] todo conhecimento da realidade cultural é sempre um conhecimento subordinado a pontos de vista [...]” ou ao que chama de “[...] tomada de posição [...]”.

marxista não tem por efeito senão a (de)negação... e reprodução da razão positivista, razão de estado68.

Aliás, essa razão de estado também se reproduz, se repete, a partir do funcionalismo estrutural, no momento mesmo em que este se pretende reformista ou modernizante, em suma, crítico. A propósito, cito Luhmann:

As mudanças geradas na sociedade resultantes do desenlace da Segunda Guerra Mundial fizeram surgir a confiança na possibilidade de mutações radicais na estrutura da sociedade moderna. Acreditou-se que todos os países do mundo, com vistas a ter a paz preservada, poderiam alcançar um suficiente grau de desenvolvimento. Uma vez situadas as estruturas nos sistemas, estas poderiam reformar-se, de modo a se cumprir com a ordem da modernização: que planificação seria necessária para lograr que todas as sociedades do globo terrestre chegassem a alcançar metas preestabelecidas? O funcionalismo estrutural se aliou, então, em muitos casos, à planificação de cima, ao controle, e o conceito de sistema se converteu em um instrumento de racionalização e reforçamento das estruturas de domínio.69

As alternativas de crítica do direito que acompanhamos mostram, como se pode depreender do que diz Luhmann, que a crítica (e todo saber que a sustenta70) não pode se transferir à práxis, senão através daqueles efeitos de reprodução71 e de gozo, determinantes do fazer do sujeito, tanto mais quanto este se coloca na posição de objeto.

O f-ato de se ler o sujeito como objeto, ou melhor, na posição de objeto, é condição para que se opere a mudança de sua posição, ou seja, para que ele se inscreva como sujeito, na posição de sujeito. Essa leitura requer a mediação de outra-razão, que faça ex-sistir a crítica como crítica na razão jurídica72.

68

Cf. WEBER, Economía y sociedad I, 1974, p. 646. 69

LUHMANN, Introducción a la teoría de sistemas, 1996a, lição 1, Funcionalixmo estructural/Parsons, p. 29, grifo do autor, tradução nossa.

70

Nesse sentido, podemos dizer com Forbes (Da palavra ao gesto do analista, 1999, p. 118) que “[...] criticar é a vocação básica da filosofia”.

71

LUHMANN, Introducción a la teoría de sistemas, 1996a, lição 1, Funcionalixmo estructural/Parsons, p. 29-30. 72

Afinal, como diz Teubner (O Direito como sistema autopoiético, 1993, p. 13-15, grifos do autor): “[...] os ‘críticos do direito’ não são portadores de uma crítica suficientemente radical: com efeito, a redescoberta da indeterminação, a desmistificação ideológica da dogmática jurídica, enfim, todas as tentativas de desalojamento (‘debunking’), desmontagem (‘trashing’) e desmistificação (‘demystifying’) da doutrina e do discurso jurídicos raiam apenas o limiar da superestrutura do fenômeno da auto-referência jurídica sem, contudo, atingir o coração do paradoxo fundamental do direito [ou antes de paradoxo, a questão de que ex- siste um impossível de se dizer, no dizer, pelo qual o sujeito se faz responsável] [...] o carácter paradoxal do direito é intrinsecamente inerente ao próprio direito, mais do que (como pretendem os ‘novos’ críticos) o resultado da instrumentalização política da doutrina jurídica ou o reflexo da configuração histórica concreta dos seus ‘dogmas’ [...] Por conseguinte, e contrariamente às esperanças dos novos críticos, a descoberta de contradições e paradoxos não pode conduzir a uma ‘des-construção’ do Direito mas, quando muito, a uma ‘re- construção’ dos seus fundamentos [...]”

Ora, isso quer dizer que as teorias jurídicas não são teorias irracionais, determinantes do relavismo pós-moderno73, mas teorias constitutivas da razão jurídica — uma razão que se estrutura como ficção. Elas se inscrevem no campo do direito, enquanto campo discursivo, campo-simbólico-e-de-gozo, fazendo do discurso jurídico um discurso a-científico. É isso que veremos a seguir, a partir da concepção de sujeito na psicanálise e da inscrição do sujeito da ciência do direito no dispositivo analítico — afinal, a clínica do Real se constitui como uma clínica de discurso, uma clínica no laço social.

4.3 A CRÍTICA NA RAZÃO JURÍDICA E O DISPOSITIVO ANALÍTICO: A INSCRIÇÃO DO

DISCURSO a-CIENTÍFICO NO CAMPO DO DIREITO

O sujeito na psicanálise, enquanto sujeito dividido, não é um sujeito puro ou sintético. Ele não é uma identidade que tem origem e unidade nele mesmo. Na psicanálise, como vimos, do que se trata é de identificação. O sujeito é constituído desde fora. Se isso não o torna um ser alienado, é porque ele se faz alienado no Outro, uma alienação que lhe é constitutiva: afinal, o inconsciente é o discurso do Outro.

Lacan, desde a sua formulação do estádio do espelho, concebe o nascimento do eu na relação com o outro: esse outro, na sua função de espelho, função de primeiro grande Outro, é fundante do eu. Lacan, no início do seu ensino, associa essa origem especular do eu a uma causa orgânica: a criança, biologicamente imatura, dependente de cuidados alheios para sobreviver, incapaz em sua articulação motora, se constitui como eu — eu ideal — a partir de uma identificação imaginária.

A imagem especular permite à criança antecipar a unidade, vê-la realizada no Outro. O sujeito se situa como constitutivamente alienado em uma relação imaginária. Há aí uma prevalência da visão sobre os demais sentidos, que já faz corte com as metáforas filosóficas sobre o conhecimento. A questão concernente à experiência do estádio do espelho não é, com efeito, simplesmente cognitiva, porque ela implica uma “[...] assunção jubilatória [...]”74. Não se trata apenas de um ato de conhecimento — de conhecer a unidade própria ou do outro —, mas de um ato de amor constituinte: eu me constituo através da imagem do outro, por causa

73

Como vimos na Introdução, a crítica na razão jurídica não é uma crítica pós-moderna, porque ela ex-siste, só depois, n’a-pós-modernidade.

74

da imagem do outro, um outro que produz júbilo, a quem amo e para quem eu sou conforme a sua imagem — imagem de potência, inteireza, beleza, segurança, liberdade, ou seja, tudo o que lhe falta e que permite a representação de mim como um corpo unificado.

O júbilo, o amor me constitui como objeto para esse outro, a Mãe, que, entretanto, deseja para além de mim, é faltante. Eu, por amor, me faço objeto do desejo do Outro — o falo, significação do meu ser, que me torna supostamente completo, ao supostamente garantir a completude do Outro, tamponar a falta do Outro.

Eu sou, eu existo em função desse Amor e dos significantes que o Outro me dirige e aos quais me identifico ao fazê-los atributos, meus atributos, atributos essenciais. A marca do Outro, a primeira marca (S1), se petrifica na significação fálica. A partir daí, posso, narcisicamente, ver a realidade em correspondência com o eu. A relação com o meu semelhante, o conflito com o meu semelhante é feito um conflito essencial, que só se resolve segundo uma exclusão: ou um ou outro, o que em termos pulsionais corresponde à alternativa comer-ser comido, cagar-ser cagado, ver-ser visto. Isso faz do amor o correlato da agressão e da violência: amor e violência são constitutivos do narcisismo e da alienação imaginária que me constitui como eu, eu ideal.

A relação com o outro, relação de exclusão não é, entretanto, simplesmente dual, porque ela é mediada por um ponto de vista ideal — o ideal do eu — situado no campo do Outro, ao qual me identifico. A identificação a esse ponto, ponto de onde me vejo amável, é o sustentáculo da alienação narcísica, e a partir de onde o sujeito se faz objeto, objeto fálico, reduzido a uma imagem. A identificação imaginária já não é constituinte, mas constituída pela identificação simbólica e dessa operação se produz um resto constitutivo do sujeito: o objeto a, objeto pulsional, escópico — o olhar75.

Esse olhar que causa o sujeito — uma causa real, irredutível à realidade de qualquer causa orgânica ou psicológica — vem cobrir a falta imaginária, fálica, no momento mesmo em que produz um furo na imagem especular:

75

Cito Lacan (O seminário - livro 11, 1990, p. 253; 257, grifos do autor), que se reporta a uma temática tratada no Capítulo 3, supra: “A identificação em questão não é – e Freud articula isso com muita finura, eu lhes rogo reportarem-se aos dois capítulos... em Psicologia Coletiva e Análise do Eu, um se chama A Identificação e o outro Estado Amoroso e Hipnose – a identificação em questão não é a identificação especular, imediata. Ela é seu suporte. Ela suporta a perspectiva escolhida pelo sujeito no campo do Outro, de onde a identificação especular pode ser vista sob aspecto satisfatório. O ponto do ideal do eu é o de onde o sujeito se verá, como se diz, como visto pelo outro – o que lhe permitirá suportar-se numa situação dual para eles satisfatória do ponto de vista do amor.” E adiante: “Há um mais-além para essa identificação, e esse mais-além se define pela distância do objeto a minúsculo ao I maiúsculo idealizante da identificação [...] o objeto a pode ser idêntico ao olhar [...] o olhar do hipnotizador”, numa referência a Freud. Consultar ainda Zizek (Eles não sabem o que fazem..., 1992, p. 104 et seq.).

Existe um resto [...] e isso quer dizer que, desde agora, em tudo que é referência ao imaginário, o falo virá sob a forma de uma falta, de um -ϕ... o falo aparece em menos, aparece como um branco [uma lacuna]. O falo é sem dúvida uma reserva operatória, mas não somente que não é representada ao nível do imaginário mas que é cercada [delimitada] e para dizer a palavra, cortada [separada, apartada] da imagem especular.76

Ainda Lacan:

[...] o falo, ou seja, a imagem do pênis, é negativizado em seu lugar na imagem especular. É isso que predestina o falo a dar corpo ao gozo, na dialética do desejo.77

É a partir daí que se pode inscrever o positivismo jurídico no campo do direito, enquanto campo simbólico-e-de-gozo, e questioná-lo na sua função, não simplesmente cognitiva, mas discursiva. Tal questionamento, como dissemos, não importa simplesmente (de)negar o positivismo jurídico — já que ex-siste aí um modo de gozo, que implica o sujeito. Aliás, se o jurista se faz objeto do desejo do Outro, se (pensa que) é o falo, é porque o positivismo jurídico importa uma operação de apagamento, foraclusão do sujeito, que ao mesmo tempo é condição da sua emergência, como sujeito dividido; condição de acesso ao campo do desejo, atravessado pelo gozo, e, pois, de corte com o registro da angústia, que Lacan associa à falta da falta78. O sujeito, ao articular uma significação supostamente (e)unívoca, como resposta a um mundo moderno contingente, complexo, veicula a sua verdade, ainda que não o saiba, e instaura a falta como estruturante da função fálica.

A representação da sociedade e do Estado modernos, postulada pelo positivismo jurídico, longe de constituir uma evidência, é correlata do corte metafórico que a positivação jurídica realiza e que funciona como condição do próprio discurso científico. O positivismo jurídico é, assim, condicionado, constituído, e não ele mesmo constitutivo da discursividade jurídica. A operação científica no direito é, numa palavra, mediatizada pelo campo jurídico, um campo simbólico-e-de-gozo, em que a falta lhe é constitutiva.

Não se trata aqui de uma falta, lacuna entendida como mera im-perfeição sistêmica, mas de uma falta que é efeito mesmo do sistema jurídico, efeito da norma jurídica. E é por isso que “[...] se de repente vier, vier a faltar toda norma, quer dizer o que faz a falta, pois a norma é correlativa da idéia de falta, se de repente não falta, e creiam-me, tentem aplicar isso a bastantes coisas, é nesse momento que começa a angústia”79. A norma que barra a angústia

76

LACAN, O seminário - livro 10, 1997, p. 46-47. Consultar ainda Lacan (O seminário - livro 10, 2005, p. 49). 77

LACAN, Subversão do sujeito e dialética..., 1998j, p. 836. 78

LACAN, O seminário - livro 10, 1997, p. 50. Consultar ainda Lacan (O seminário - livro 10, 2005, p. 52). 79

em sua tentação de tornar presente o objeto do desejo80 — esse objeto desde sempre perdido, outro, que é, propriamente, a-causa do desejo —, é constitutivamente faltante

Desse modo, a representação do direito como código, como conjunto de normas dotado de completude e coerência, segundo os princípios liberais, é ela mesma responsável pela instauração do vazio no campo jurídico, e isso porque ela não se constitui como uma representação imediatamente racional; ao contrário, ela é efeito de uma razão jurídica constitutivamente enganada e, enquanto tal, depende da mediação significante.

A representação não se fixa, pois, senão pela ação do significante-mestre, em uma operação de basteamento, que produz retroativamente a articulação entre os significantes81. Um mesmo conjunto de significantes (liberdade, Estado, Constituição, direito, sociedade, povo) pode, portanto, ensejar diferentes representações82. Se, por exemplo, essa cadeia for suplementada por um significante-mestre como socialismo, a determinação retroativa da significação dos demais significantes será diferente do caso de o significante-mestre for sistema legal ou sistema jurídico-formal.

O signifcante-mestre funciona assim como um significante excedente que constitui o

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