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A TEORIA DO SOCIAL PARSONIANA E O SUPER-EGO

CLÍNICA, ÉTICA E JURÍDICA NO LAÇO SOCIAL

2.1 A TEORIA DO SOCIAL PARSONIANA E O SUPER-EGO

A existência de uma sociedade complexa, marcada por atores sociais que agem e interagem, a partir de diferentes posições discursivas, não impede, na concepção de Parsons, a unificação do sistema social, através da instauração de uma comunidade cultural que normatiza as relações subjetivas, ou seja, normatiza a existência do sujeito social, neutralizando o que, como vimos, lhe é radical — a sua ex-sistência.

Essa orientação se insere no projeto parsoniano de estabelecer uma abordagem científica do campo social: ela participa do que o autor chama de sua “[...] disciplina científico-social [...]”, sua “[...] teoria sociológica”1. Se na obra de Parsons, como afirma Luhmann, se observa o “[...] intento [...] por encontrar um denominador comum entre os clássicos da disciplina sociológica [...]”2, no texto The Superego and the Theory of Social Systems, nota-se que o autor procura fundamentar o seu discurso científico a partir do estabelecimento de “[...] relações diretas entre psicanálise e sociologia [...]”3.

Tais relações colocam, entretanto, dificuldades, como observa Parsons, devido às “[...] diferenças históricas de perspectiva e pontos de partida [...]”4 entre os dois campos científicos. De um lado, a psicanálise tende naturalmente a dirigir suas pesquisas — “[...] em comum com outras tradições do pensamento psicológico [...]” — para a investigação da “[...] personalidade do indivíduo [...]”5. De outro, a sociologia tem por objeto o sistema social e, pois, tem se preocupado primeiramente e naturalmente, com o “[...] padrão de comportamento de uma pluralidade de indivíduos [...]”6.

1

Cf. PARSONS, The superego and the…, 1953, p. 13, tradução nossa. 2

LUHMANN, Introducción a la teoría de sistemas, 1996a, p. 31, tradução nossa. 3

Cf. PARSONS, The superego and the…, 1953, p. 13, tradução nossa. 4

Ibid., p. 14, tradução nossa. 5

Ibid., p. 13, tradução nossa. 6

A proposta parsoniana de articulação dos dois campos, e mesmo de unificação teórica7, se explicaria pelo progresso científico8 e por uma crescente convergência entre as abordagens da psicanálise e da sociologia, a partir notadamente das contribuições de Freud e Durkheim. Deste, Parsons enfatiza a temática concernente ao “[...] papel social das normas morais [...]”9. Em relação ao primeiro, interessa-lhe o que chama de “[...] descoberta da internalização dos valores morais [...]”10. Essa descoberta — “[...] um marco crucial no

desenvolvimento das ciências do comportamento humano”11 — se liga ao conceito de

superego, através do qual se torna possível, segundo Parsons, realizar aquela convergência12. A leitura que Parsons faz da formulação desses autores não privilegia o que parece fundamental: os impasses que decorrem do ato discursivo de Freud e Durkheim. Um e outro demandam, como vimos, a solução de problemas éticos e epistemológicos, mas o que interessa não é tanto a resposta — aliás, sempre parcial e problemática em relação a outros aspectos das obras desses autores, como admite o próprio Parsons em várias passagens —, e sim o f-ato de que essa demanda é condição da abertura e diferença discursiva, condição de instauração de outro-discurso, um discurso a-científico, o que faz da idéia parsoniana de síntese, não apenas uma idéia de difícil realização, mas impossível de se dizer e real-izar.

Em Freud, como veremos, isso remete a uma questão clínica que não pode ser neutralizada pela abordagem eminentemente teórica de Parsons. Aliás, uma abordagem expressamente recusada por Durkheim13:

O nosso mal-estar não é, portanto, como parece por vezes crer-se, de ordem intelectual; deve-se a causas mais profundas [outras-causas]. Nós não sofremos, porque não sabemos mais em que noção teórica apoiar a moral que praticamos até aqui; mas porque, em algumas de suas partes, está irremediavelmente abalada e a que nos é necessária está apenas em vias de formação.

[...] Numa palavra, o nosso primeiro dever é atualmente elaborarmo-nos uma moral. Uma tal obra não poderá improvisar-se no silêncio dos gabinetes; não pode senão construir-se a partir de si mesma, pouco a pouco, sob a pressão das causas internas, que a tornam necessária. Mas aquilo para que a reflexão pode e deve servir é para marcar o objetivo que é preciso atingir.

A demanda de uma futuridade moral ou eticamente controlável, que existe — ou ex- siste — em Freud e Durkheim, é, como vimos, problemática14 e está sustentada não em uma

7

PARSONS, The superego and the…, 1953, p. 14. Consultar ainda Rouanet (Teoria crítica e Psicanálise, 1989, p. 85). 8

Cf. ROUANET, Teoria crítica e Psicanálise, 1989, p. 84. 9

Cf. PARSONS, The superego and the… 1953, p. 14, tradução nossa. 10

Ibid., p. 14, tradução nossa. 11

Ibid., p. 14, tradução nossa. 12

Ibid., p. 14. 13

DURKHEIM, A divisão do trabalho social, 1991, p. 207. 14

causa empírica, mas n´a-causa real, ou seja, o mal-estar na cultura e sociedade modernas, que é correlato da alteridade constitutiva do sujeito, como o sabia Freud — um mal-estar que, antes de ser resolvido, é atualizado pelo supereu15. O supereu não se reduz assim a uma noção teórica suscetível de promover a unificação de qualquer sistema científico, mas inscreve, atualiza um impasse do sujeito na relação com o Outro. Um impasse que coloca o sujeito em questão, que questiona seu ser, ou melhor, sua posição-de-ser-para-o-Outro.

Essa questão — questão clínica — não pode ser respondida de um modo racionalista. Não pode ser respondida especialmente com a neutralização da noção mesma que a instaura.

O supereu seduz, coage, mas se o faz é, como veremos, para instaurar a divisão subjetiva, ao contrário do que pensa Parsons. Este, ao promover a vinculação do supereu freudiano à coerção durkheimiana, não o faz, com efeito, senão para neutralizar o caráter problemático que sustenta essas noções. Se a coerção supereuóica, a coerção durkheimiana, está inscrita em uma rede discursiva complexa, se ela é marcada por “[...] uma série de tentativas de interpretação [...]”16, como admite Parsons, isso não o impede de unificar a interpretação — uma interpretação teórica, dirigida a uma moral super-egóica, supostamente comum, unitária, total.

Nesse sentido, Durkheim estaria próximo de Freud em razão da coerção de uma moral comum, ou seja, em razão do insight de que “[...] o indivíduo, como um membro da sociedade, não é totalmente livre para produzir suas próprias decisões morais, mas é, em algum sentido, ‘coagido’, a aceitar as orientações comuns para a sociedade da qual ele é um membro”17.

Parsons, pois, desconhece que em Durkheim o laço social é marcado por uma tensão, própria à divisão do sujeito social, a-social. Se a sociedade é o lugar de fabricação de deuses, isso não autoriza a interpretação parsoniana, mas aponta seu limite, como o mostrou, como o mostra o culto às Revoluções:

Esta aptidão da sociedade para se transformar em divindade, ou para criar deuses, nunca foi mais visível, do que nos primeiros anos da Revolução [Francesa]. Com efeito, naquela época, sob a influência do entusiasmo geral, coisas puramente laicas por natureza foram transformadas pela opinião pública em coisas sagradas: a Pátria, a Liberdade, a Razão. Uma religião tendia a se estabelecer por si mesma, com seu dogma, seus símbolos, seus altares e suas festas. O culto da Razão e do Ser Supremo procurou dar satisfação oficial a estas aspirações espontâneas. É bem verdade que

15

Cf. FREUD, O mal-estar na civilização, 1974h. Essa questão será retomada. 16

Cf. PARSONS, The superego and the…, 1953, p. 15, tradução nossa. 17

esta renovação religiosa teve duração efêmera. O entusiasmo patriótico que a princípio transportava as massas se enfraquecia por si mesmo.18

Esse desconhecimento em relação a Durkheim — que diz a verdade da teoria parsoniana e dos seus limites no tratamento de temas como história e revolução19 — se repete na postura de Parsons no que concerne a Freud e à sua noção de supereu. Os impasses das teorias de Freud e Durkheim não são considerados como constitutivos dos discursos desses autores. Ao contrário, conforme o racionalismo parsoniano, isso não passa de dificuldades. Dificuldades que, se apontam para falhas, estas constituem desvio, erro teórico e, portanto, devem ser superadas: isso é o progresso científico20.

Parsons, para situar seu projeto teórico, científico, precisa, pois, como premissa metodológica, indicar as falhas que localiza na abordagem daqueles autores: falhas, com efeito, primeiramente metodológicas, decorrentes das perspectivas unilaterais que ainda perpassam os discursos freudiano e durkheimiano e dificultam a construção de uma síntese teórica efetiva — ou seja, a construção de um saber-psico-social-unificado.

Se Durkheim não deu o peso devido à questão da personalidade — inclusive o problema do mecanismo psicológico de internalização de valores morais21 —, Freud, por sua vez, falhou ao se concentrar no estudo da “[...] personalidade singular [...]”, não considerando devidamente “[...] as implicações da interação dos indivíduos com outras personalidades para formar um sistema”22.

Ora, a questão freudiana — e durkheimiana — não é a personalidade, nem a interação entre personalidades, mas, como vimos, a constituição de um sujeito que é interação, relação — alteridade constitutiva. Sujeito que, enquanto sujeito do inconsciente, não se opõe, como vimos, à concepção de um sistema, ainda que desloque a idéia de sistema como perfeitamente unificado, totalizante, objetivo — objetivante de toda subjetividade possível.

A teoria de Parsons — que objetiva “[...] o estudo da estrutura e funcionamento da personalidade como um sistema, em relação com outras personalidades; e o estudo do funcionamento do sistema social como um sistema [...]”23 — não faz, pois, senão anular a emergência do sujeito. Ao contrário de Freud e Durkheim, Parsons, a partir do seu saber

18

PARSONS apud ARON, As etapas do pensamento sociológico, 1993, p. 330. 19

Cf. LUHMANN, Introducción a la teoría de sistemas, 1996a, p. 29. 20

Cf. ROUANET, Teoria crítica e Psicanálise, 1989, p. 84. 21

Cf. PARSONS, The superego and the…, 1953 p. 15-16. 22

Ibid., p. 16, grifo do autor, tradução nossa. 23

unificado, faz do sujeito um sujeito que é... objeto de um sistema, suscetível de estabilidade e integração:

Pode-se primeiro mostrar que a interação de duas pessoas tem que ser concebida como uma sendo objeto da outra em dois aspectos primários e em um terceiro aspecto que é, em um sentido, derivado dos dois primeiros. Estes são (1) percepção cognitiva e conceitualização, a resposta para a questão o que o objeto é, e (2) catexia — apego ou aversão —, a resposta para a questão o que o objeto significa em um sentido emocional. O terceiro modo pelo qual uma pessoa se orienta para um objeto é por avaliação — a integração dos sentidos cognitivo e catético do objeto para formar um sistema, incluindo a estabilidade [...]24.

A integração e a estabilidade na sociedade não são garantidas, senão por efeito de uma suposição de que existe uma cultura comum. Essa suposição, que sustenta a ciência e o sistema parsonianos, serve para inscrever uma posição discursiva, que Parsons, entretanto, absolutiza, excluindo-a do laço social, na pretensão de validá-la, legitimá-la como a única teoria social possível. Essa operação discursiva — que se pretende ela mesma fora do discurso — faz do mal-estar uma Cultura; do direito moderno, um normativismo absoluto; da sociedade, uma comunidade, retomando, desse modo, uma tradição que, ao contrário do que pensa Parsons, não é a durkheimiana, mas a tradição do sistema positivo de Comte ou do organicismo de Spencer25.

Esse “[...] determinismo cultural [...]”26, para usar uma expressão utilizada por Habermas na crítica que dirige a Parsons, se baseia em uma lógica que privilegia a hierarquização estrita e a priori das demandas e valores sociais. Os valores da teoria parsoniana tornam-se, pois, valores ou padrões morais; o sistema cultural torna-se um sistema absoluto, super-egóico.

Parsons instaura desse modo um controle social que não responde à diferenciação sistêmica, diferenciação dos discursos sociais, senão de maneira abstrata e supostamente objetiva. Se a modernidade não prescinde de um controle, Parsons funda um controle do controle, um Outro do Outro — um Outro super-egóico, eminentemente teórico. Ele substitui os impasses do direito moderno por um simbolismo de matiz religioso27, ou ainda, substitui o estatuto problemático do sistema jurídico e de suas relações com os demais sistemas, por um

24

PARSONS, The superego and the…, 1953, p.16, grifos do autor, tradução nossa. 25

BUCKLEY, A Sociologia e a moderna..., 1976, p. 31 et seq. 26

Cf. HABERMAS, Teoría de la acción comunicativa, 1987b, v. II, p. 356, tradução nossa. Segundo Habermas (Ibid., p. 356, tradução nossa), tal “[...] determinismo cultural [é] fixado pelo esquema AGIL”. AGIL, ou seja: A = Adaptation/Adaptação; G = Goal-attainmment/Obtenção de fins; I = Integration/Integração; L = Latent Pattern-maintenance/ Manutenção de Estruturas Latentes (Cf. LUHMANN, Introducción a la teoría de sistemas, 1996a, p. 34).

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modelo hierárquico de relações sistêmicas: no lugar da a-nomia — efeito da norma e constitutiva do sujeito a-social —, ele introduz a Norma... objetiva, como suporte do seu projeto científico.

O modo como Parsons apreende o pensamento de Kant — e que o afasta, por exemplo, de autores como Kelsen e Freud — é ilustrativo da fusão dos registros normativo e cognitivo e, mais que isso, fundamento da teoria sociológica parsoniana, em seu conjunto ético e epistemológico. Um conjunto que faz contraponto ao impasse ético-epistemológico moderno: se aceita algumas de suas premissas — durkheimianas, freudianas, kelsenianas — acaba por corrigi-las ou controlá-las, teoricamente.

A teoria sociológica de Parsons se reporta à teoria do conhecimento concebida a partir das categorias transcendentais da filosofia de Kant. Parsons toma a explicação kantiana do conhecimento como modelo da interação entre pessoas, uma relação que obedece, em suma, à estrutura sujeito-objeto28. A esse uso da Crítica da Razão Pura, Parsons acrescenta aspectos das outras duas Críticas kantianas, emprestando a essa associação uma interpretação própria que permite neutralizar o que chama de cetismo de Kant, no que diz respeito à esfera religiosa29.

A referência que Freud faz a Kant — relacionando o supereu ao imperativo categórico kantiano — vai nos permitir situar a problemática do sujeito enquanto tal — uma problemática ética, além de epistemológica. Freud com Kant, através de Kant com Sade

(Lacan30) não corresponde, como veremos, a uma redução desses autores (o freudismo, o

kantismo, o sadismo), nem corresponde à soma ou síntese dos esquemas tradicionais — o cognitivismo, o normativismo, o expressivismo — que certamente se encontra em Parsons, num contexto de passagem da divisão ternária da interação para uma abordagem quadripartida, que pressupõe aquele determinismo cultural31.

Essa proposta parsoniana visa justamente defender-se do caráter problemático do sujeito, na sua relação com o Outro; na sua ex-sistência, marcada por uma alteridade constitutiva, um mal-estar constitutivo. Daí a conclusão, própria à antropologia de Parsons, de que “[...] no nível humano esta mutualidade de interação tem de ser mediada e estabilizada por uma cultura comum [...]” e de que a existência de um sistema de símbolos compartilhados é fundamental ao conhecimento da sociedade humana32.

28

Cf. PARSONS, The superego and the…, 1953,. 29

Cf. HABERMAS, Teoría de la acción comunicativa, 1987b, v. II, p. 362. 30

Cf. LACAN, Kant com Sade, 1998i. 31

Cf. HABERMAS, Teoría de la acción comunicativa, 1987b, v. II, p. 357. 32

O fato de este sistema de símbolos constituir um sistema de linguagem (um sistema que, conforme Parsons, se refere especialmente, ainda que não exclusivamente, à linguagem33) coloca, entretanto, um problema àquela suposta determinação cultural: ele “[...] introduz — admite Parsons — um elemento de extremo potencial de instabilidade no processo de interação humana [...]”34. A resposta parsoniana a esse problema é circular. Ele se reporta aos três modos de orientação da ação para os situar agora com relação ao que chama de “[...] via correta de simbolização [...]”, em uma determinada cultura. Afinal, diz, “[...] as convenções de linguagem têm de ser observadas [...]”, porque são elas que supostamente garantem a “[...] comunicação eficaz”35.

A suposição de um determinismo cultural corresponde, pois, à concepção de uma linguagem identificada à eficácia da comunicação. Trata-se de uma necessidade sistêmica: afinal, a obra de Parsons se fundamenta na “[...] fórmula compacta action is system”36. Essa necessidade sistêmica surge como solução para o problema da contingência tal como articulado pela psicanálise, ou seja, pela teoria psicanalítica37. Uma contingência que, segundo Parsons, se situa na relação do sujeito com o objeto, notadamente quando este é “[...] uma outra pessoa [...]”38.

É aí que existe, propriamente falando, a possibilidade de constituição de um “[...] sistema interativo”39. Ao contrário da relação com os objetos inanimados, a característica marcante desse sistema é, segundo Parsons, a reciprocidade40. Isso coloca, segundo o autor, uma questão não propriamente discursiva, mas cognitiva, no pressuposto de que sendo ego e alter posições relativas, a necessidade sistêmica prescinde de uma unidade intrínseca, baseada na noção de pessoa.

O processo de interação não se dá, com efeito, da forma como a entende a tradição humanista, ou seja, entre pessoas que sejam intrinsecamente tais, e, pois, independentes do sistema em que interagem: ego e alter não são anteriores ao sistema, mas, ao contrário, ocupam lugares definidos pela estrutura social41.

33

PARSONS, The superego and the…, 1953, p. 17. 34

Ibid., p. 17, tradução nossa. 35

Ibid., p. 17, tradução nossa. 36

Cf. LUHMANN, Introducción a la teoría de sistemas, 1996a, p. 31, tradução nossa. 37

Cf. PARSONS, The superego and the…, 1953, p. 17. 38

Ibid. p. 17, tradução nossa. 39

Ibid., p. 17, tradução nossa, grifo do autor. 40

Ibid., p. 17. Reciprocidade, aliás, que é recusada por Lacan já em função daquela alteridade constitutiva do sujeito. Consultar, por exemplo, Kant com Sade (LACAN, 1998i, p. 781), texto que retomaremos adiante. 41

Nesse sentido, pode-se dizer que a sociologia de Parsons localiza a interação como uma necessidade sistêmica, uma necessidade lógica: a interação se dá no sistema social, na estrutura social.

Ora, isso não é, em princípio, diferente do que ocorre em Freud e em Durkheim (e, como veremos, no sistema jurídico kelseniano). O ponto de partida é sempre o mesmo: o controle social e a constituição do sujeito, na relação com o Outro. Persiste, entretanto, uma distância: se nesses autores os problemas da contingência e da diferença se mantêm como questões centrais — com repercussão sobre o estatuto do direito moderno, da ordem normativa moderna —, na teoria sociológica de Parsons essas questões são neutralizadas devido à sua pretensão de definir o sujeito e garantir a identidade social: “A sociedade, antes de que os indivíduos se disponham a atuar, já está integrada pela moral, pelos valores, pelos símbolos normativos [...] sob a forma de sistema”42.

A sociologia parsoniana, se não importa um humanismo pré-freudiano ou pré- durkheimiano, se ultrapassa aquela noção primária da pessoa, ela, ainda assim, anula o que é radical a Freud e a Durkheim, porque faz da relação sujeito-sistema social uma relação normatizada, super-egóica: o sujeito não apenas internaliza os valores morais, mas é

internalizado no sistema43. Um sujeito, pois, que não é mais ex-cêntrico, mas interno,

intrínseco, ainda que por efeito de uma causa que lhe é externa. Se não constitui interioridade, por si ou em si; ele não deixa de ser enquanto garantido pelo sistema social, causado pelo sistema social. A teoria de Parsons ressubstancializa assim a noção de sujeito social; operação que é necessária à instauração de uma unidade sistêmica supostamente não problemática44.

Essa operação semântica, significativa não pode, aliás, se basear imediatamente na relação social; seja porque o sistema interativo é informado por exigências adaptativas e integrativas45, seja porque as posições ou lugares sociais suscetíveis de ocupação pelo sujeito

42

Cf. LUHMANN, Introducción a la teoría de sistemas, 1996a, p. 32, tradução nossa. 43

Ibid., p. 33. 44

Nesse contexto, podemos reproduzir a seguinte afirmação de Luhmann (Sistemas sociales, 1998, p. 15, tradução nossa): “Aqui é onde fracassou a atual teoria sociológica da ação, pois o conceito de ação remete ao homem como ser vivente e como consciência, quer dizer, não se refere a um estado de coisas socialmente constituído. A teoria dos sistemas sociais, por isso, deve transformar-se de teoria da ação em teoria da comunicação [...] e falar de sistemas sociais operativamente clausurados, autopoiéticos.” Ou como diz Campilongo (Política, sistema jurídico e..., 2002, p. 134, n. 141): “[...] Luhmann discute o esquema de Parsons a partir da sua reelaboração da teoria dos sistemas. Para Luhmann, é possível retomar a teoria da ação desde que se deixe de lado o ‘sujeito’ e se veja a própria ação como ‘relação recursiva de auto-observação’: ‘o agir é determinado por si mesmo’.”

45

— ego ou alter — são variados: “[...] cada ator individual é envolvido em uma pluralidade de tais relacionamentos interativos [...]”46.

A unidade do sistema deve, pois, ser reportada ao próprio ator social, definido como “[...] o sistema organizado de todos os status e papéis a ele referíveis [...]”47. Um ator social, um sujeito social objetivo que, para os propósitos da análise científica dos sistemas sociais, deve ser entendido como independente da sua situação atual na sociedade: ele é para ser tratado como “[...] uma unidade de ordem mais alta que o [...] status-papel”48. Se o sujeito persiste como relação — situado em uma relação —, esta é primeiramente uma relação unificada no nível do ator individual, quer dizer, de sua ação e, mais objetivamente, no nível

dos valores coletivos49. A relação do sujeito ao Outro — relação super-egóica — é, com

efeito, unificada, substancializada, coletivizada, normatizada50.

Agora, a teoria sociológica de Parsons pode ser apreendida em seu conjunto:

É neste contexto que a significação central dos padrões morais na cultura comum de