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Dinâmicas coloniais e pós-coloniais: os casos de Reis Ventura, Guilhermina de Azeredo e Castro Soromenho

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Academic year: 2021

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Susana Maria Araújo Gonçalves Magalhães Pimenta

Dinâmicas coloniais e pós-coloniais

Os casos de Reis Ventura, Guilhermina de Azeredo e Castro Soromenho

Tese de Doutoramento em Ciências da Cultura

Orientação:

Professora Doutora Orquídea Ribeiro

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

Vila Real, 2016

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Susana Maria Araújo Gonçalves Magalhães Pimenta

Dinâmicas coloniais e pós-coloniais

Os casos de Reis Ventura, Guilhermina de Azeredo e Castro Soromenho

Tese de Doutoramento em Ciências da Cultura

Orientação:

Professora Doutora Orquídea Ribeiro

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

Vila Real, 2016

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Tese elaborada ao abrigo do artigo 29.º do Decreto-Lei nº 74/2006, de 24 de março, com alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.º 107/2008, de 25 de junho, e de 230/2009, de 14 de setembro, vista à obtenção do grau de Doutor em Ciências da Cultura na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro sob orientação da Prof. Dra. Orquídea Ribeiro.

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ÍNDICE GERAL

RESUMO ... V ABSTRACT ... VI AGRADECIMENTOS ... VII

INTRODUÇÃO ... 1

PARTE 1: ENQUADRAMENTO CONCEPTUAL E TEÓRICO ... 5

Capítulo 1: Perspetiva de investigação – estudos culturais e estudos pós-coloniais ... 6

1.1. Estudos culturais: linhas gerais ... 7

1.2. O estudos pós-coloniais ... 12

1.3. Portugal: que pós-colonialismo(s)/pós-colonialidade? ... 22

1.3.1. As vozes do silêncio e do esquecimento ... 25

PARTE 2: CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS ... 27

Capítulo 1: Problemática ... 28

Capítulo 2: Fontes e corpus, objetivos, metodologia de investigação e limites ... 34

2.1. Fontes e corpus... 34

2.2. Objetivos... 35

2.3. Metodologia ... 35

2.4. Limites ... 36

PARTE 3: CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-CULTURAL ... 39

Capítulo 1: Do conceito de cultura ao conceito de cultura no contexto do “Império Colonial Português” ... 40

1.1. O contexto histórico-cultural: O Estado Novo e a questão colonial ... 44

1.2. O Estado Novo e o império colonial português ... 47

1.3. A questão colonial e o Acto colonial ... 50

1.4. A missão civilizadora do “bom povo português” e a “política de integração” ... 53

Capítulo 2: Cultura e império: a construção da imagem do Império ... 57

2.1. O lusotropicalismo: o mito do século XX ... 60

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2.3. A negritude como contestação à hegemonia cultural ... 73

PARTE 4: SUBJETIVIDADES DO AQUÉM E DO ALÉM-MAR ... 79

Capítulo 1: Principais contributos para o estudo do corpus – o estado atual da questão ... 80

Capítulo 2: Subjetividades do aquém e além-mar: da colonialidade à pós-colonialidade ... 97

Capítulo 3: Reis Ventura – legitimação da ideologia colonialista e lusotropicalista ... 104

3.1. Representação da mestiçagem em Reis Ventura ... 125

3.1.2. A exotização e erotização da mulher mestiça ... 127

Capítulo 4: Guilhermina de Azeredo – visão feminina da (des)ilusão colonial ... 130

4.1. A visão feminina da “alma sofredora” do/a negro/negra ... 131

4.2. Brancos e negros: utopia ou distopia colonial? ... 133

4.3. A condição feminina: a mulher branca e a mulher preta ... 138

Capítulo 5: Castro Soromenho – o dissidente do lusotropicalismo ... 147

5.1. Terra Morta e o(s) “outro(s)” ... 150

5.2. A Viragem no Império: a situação feminina e a morte na cultura popular... 157

5.3. A Chaga, a chaga (sempre) viva do império: do branco ao mulato ... 162

Capítulo 6: Da trilogia de Camaxilo: marcas da pós-colonialidade ... 169

CONCLUSÃO ... 175

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 180

ANEXOS ... 192

Anexo 1: Castro Soromenho (fotografia) ... 193

Anexo 2: Castro Soromenho: funcionário da administração colonial (circunscrição de Saurimo) . 194 Anexo 3: Relatório de Censura de Terra Morta, de Castro Soromenho, 1945 ... 195

Anexo 4: Circuito social de Castro Soromenho (arquivo fotográfico) ... 196

Anexo 5: C.S.: Carta a António Ferro ... 200

Anexo 6: “A população de Luanda também manifesta a sua emoção pelos acontecimentos da Índia” ... 204

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RESUMO

Se se considerar a literatura colonial parte integrante da cultura da sociedade colonial e um dos veículos possíveis para a compreensão do pensamento, do imaginário e das relações socioculturais, julga-se que as obras de Reis Ventura, Guilhermina de Azeredo e Castro Soromenho permitem indagar sobre as dinâmicas coloniais (sob a égide do lusotropicalismo) e sobre a pós-colonialidade, enquanto conceito analítico do império colonial português.

Na perspetiva dos estudos pós-coloniais, a revisitação das narrativas coloniais dos anos 30-60 do século XX permite compreender os silêncios, os silenciamentos, as ocultações e as omissões referentes à colonização portuguesa, que se fizeram sentir no pós-queda do império colonial e no pós-independência dos territórios colonizados, nomeadamente de Angola. Tratando a ficção colonial como “literatura documental” da época, esta investigação pretende apresentar as dinâmicas coloniais e pós-coloniais, privilegiando a dinâmica observável através da(s) representação(ões) das relações dicotómicas branco/preto, mas também branco/branco, preto/preto, branco/mestiço, preto/mestiço, homem branco/mulher preta, mulher branca/homem preto, representadas nas obras de autores do período colonial, Reis Ventura, Guilhermina de Azeredo e Castro Soromenho. Indaga-se, assim, sobre as colonialidades existentes entre a narrativa ficcional e o discurso oficial da história do império veiculada, definido como propagandístico e lusotropical.

A análise da cultura do império e da produção cultural que daí advém, nomeadamente a narrativa ficcional colonial e a teoria do lusotropicalismo que lhe dá suporte, permitem refletir sobre os conceitos “colonialidade” e “pós-colonialidade”, enquanto marcos cronológicos e marcos epistemológicos. Assim, identifica-se a existência de sujeitos pós-coloniais, que acabam por ultrapassar as fronteiras da “colonialidade”, situando-se numa pós-colonialidade definida como um tempo intersticial entre o início e o fim do colonial. Castro Soromenho, ao questionar, problematizar e denunciar a situação colonial, afigura-se, pelo percurso ideológico e pela representação da situação colonial na obra, um crítico pós-colonial.

Palavras-chave: Castro Soromenho. Reis Ventura. Guilhermina de Azeredo. Colonialidade. Pós-colonialidade.

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ABSTRACT

If colonial literature is considered part of the culture of colonial society and one of the possible vehicles for understanding ways of thinking, imagination and sociocultural relations, the works of Reis Ventura, Guilhermina de Azeredo and Castro Soromenho allow an inquiry into colonial dynamics (under the aegis of Lusotropicalism) and postcoloniality as an analytical concept of the Portuguese colonial empire.

From the perspective of postcolonial studies, revisiting colonial narratives of the 1930s-1960s provides insight into the silences, the silencings, the concealments and the omissions relating to Portuguese colonization, which were felt in the post-fall of the colonial empire and post-independence of colonized territories, namely Angola. Treating colonial fiction as “documentary literature” of the time, this research aims to present the colonial and postcolonial dynamics, privileging the observable dynamics through the representation(s) of white/black dichotomous relations, but also white/white, black/black, white/mestizo, black/mestizo, white man/black woman, white woman/black man, represented in the works of authors from the colonial period, namely Reis Ventura, Guilhermina de Azeredo and Castro Soromenho. It questions, thus, the existing colonialities between fictional narratives and the official discourse of the conveyed history of the empire, defined as propagandistic and Lusotropical.

The analysis of the culture and cultural production of the empire that arises from this, namely the colonial fictional narrative and the Lusotropicalism theory that supports it, allow to reflect on the concepts of “Colonialism” and “Postcolonialism” as chronological landmarks and epistemological frameworks. Thus, the existence of post-colonial subjects, who eventually exceed the boundaries of “Colonialism”, is identified, standing in a Postcoloniality defined as an interstitial time between the beginning and the end of the colonial era. Castro Soromenho, while questioning, discussing and denouncing the colonial situation, appears, due to the ideological route and the representation of the colonial situation in his work, to be a postcolonial critic.

Keywords: Castro Soromenho | Reis Ventura | Guilhermina de Azeredo | Angola | Coloniality | Postcoloniality.

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AGRADECIMENTOS

As circunstâncias pessoais e profissionais em que foi elaborada esta tese nem sempre ofereceram o conforto emocional e motivacional que, numa situação ideal, um trabalho desta envergadura exige. No entanto, houve quem sempre estivesse do meu lado e a quem expresso o meu sincero agradecimento e carinho.

À minha orientadora, Prof.ª Doutora Orquídea Ribeiro, é dirigida a minha maior gratidão, pelo acompanhamento irrepreensível, pelas partilhas e por todas a palavras de estímulo e de amizade que proferiu ao longo deste longo processo;

Ao Prof. Doutor Fernando Moreira, que acompanha o meu percurso académico, nesta Universidade, há 20 anos, expresso a minha gratidão e a minha amizade que sempre terá;

À Alina Sousa Vaz, que tão bem conhece o caminho, agradeço o incentivo constante para a alcançar a meta;

À Prof.ª Doutora Daniela Fonseca, agradeço ter tornado a reta final menos penosa; Ao Nuno, a quem agradeço a paciência;

Ao meu filho Rodrigo, a quem devo tudo e peço perdão pelos momentos de ausência; Às minhas filhas, Rafaela e Rita, que em boa hora nasceram para me dar o conforto que me faltava;

À minha família, em especial à minha Mãe, à Célia, ao Zeca, à Teresa e ao meu querido sobrinho Francisco, agradeço a compreensão, o apoio e a espera. Estou de volta.

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A alma de uma época está em todos os seus poetas e filósofos e em nenhum.

(Fernando Pessoa, in Textos de Crítica e de Intervenção, 1912) (…) por mais que nos lavemos, não há água que chegue para nos limparmos do passado.

(Mia Couto, in Vinte e Zinco, 1999) Num Universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez. (Pepetela, in Mayombe, 2013)

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Introdução

A análise da cultura de uma determinada sociedade através de uma literatura documental pode reconstituir práticas culturais que, geralmente, são menorizadas pela História. Pretende-se que a literatura interaja com a História, pois estima-se que pode contribuir “para colocar sob suspeita os outros discursos narrativos e corrigir o perigo de uma ‘história única’” (Ribeiro 2013: 519). A História, enquanto organização e registo da memória (individual ou coletiva), que por sua vez, incide sobre ideias e imagens, ou seja, sobre representações, constrói o imaginário coletivo que, segundo oDicionário Universal da Língua Portuguesa (2000), se define por um conjunto de ideias e sentimentos que estão profundamente enraizados na maneira de ser e de pensar num extenso número de pessoas e que lhes serve de denominador comum.

O presente trabalho, que se intitula Dinâmicas coloniais e pós-coloniais: Os casos de Reis Ventura, Guilhermina de Azeredo e Castro Soromenho, pretende alargar o âmbito dos estudos pós-coloniais, na medida em que se verifica (ainda) uma “ausência” nos estudos de escritores coloniais, como Reis Ventura e Guilhermina de Azeredo, e de escritores coloniais que acabam por ultrapassar as fronteiras da “colonialidade”, como é o caso particular de Castro Soromenho. Esta “ausência”, justificada pela classificação cronológica e ideológica dos autores, cria um vazio no entendimento da colonização portuguesa ou do pensamento colonial e dos seus efeitos que ressoam (ainda) na atualidade. Suspeita-se que este facto seja uma estratégia de omissão, como forma de embaciar o “lado negativo” (se é que existe o positivo) da ação colonizadora do “bom povo português”.

Partindo do universo soromenho, e pelo facto de não se poder “escolher ou ‘desescolher’ o passado” cultural ou biográfico (Bhabha 2007: 29), levantaram-se as seguintes interrogações: sendo um autor premiado três vezes pelo “Concurso de Literatura Colonial”, da Agência Geral das Colónias, por que razão terá sido Terra Morta censurada em 1945? Por que foi o autor condenado ao exílio? Por que razão aquelas obras se afastaram dos pressupostos estabelecidos pela “cultura colonial”, regida pela ideia do lusotropicalismo? Por que razão o autor é considerado pela crítica ora angolano ora português? Encetar a construção de um percurso biográfico afigurou-se uma das respostas mais imediatas: filho de pai português e de mãe cabo-verdiana, branco, funcionário da administração colonial, doze anos de vivência em Angola, exila-se em França, parte para

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Apesar de surgir da estrutura da colonização portuguesa, Castro Soromenho é nomeado, quase por unanimidade dos críticos, a integrar o cânone angolano.

Depois de um interregno de leituras “sobre África” de vários anos após a Revolução dos Cravos e da Independência das ex-colónias, só a partir dos anos oitenta, com maior enfâse nos anos noventa, é que emergem as literaturas denominadas “pós-coloniais”, designação resultante do tempo cronológico que encerra, com autores como António Lobo Antunes ou Lídia Jorge, e ainda, na academia portuguesa, elaboram-se análises culturais, literárias, sociais ou históricas distanciadas da perspetiva eurocêntrica, ou seja, sem ignorar a visão da pós-colónia. Uma das leituras críticas que marcam a autonomia do ex-colonizado é a demarcação da literatura africana e da constituição de um corpus que delimita o cânone, neste caso o cânone angolano.

Hoje em dia, apesar de nascido nas teias da colonização portuguesa, Soromenho é o precursor aplaudido da literatura africana. Ventura e Azeredo, vivenciando a mesma situação colonial, com os percursos trilhados em muito semelhantes, perecem em “nenhures”, constituindo desde logo uma “ausência” ou uma “omissão” de uma “sensibilidade”, não “silenciada”, mas que se prefere manter “calada” nas reflexões em torno do colonialismo português.

Numa perspetiva comparatista, propõe-se ao longo desta investigação, (re)situar Reis Ventura, Guilhermina de Azeredo e Castro Soromenho à luz dos estudos pós-coloniais que, de forma genérica, pretendem estimular e equilibrar o debate em torno do passado colonial, propiciando uma reflexão fundamentada “sobre o que somos e o que queremos ser” (Sanches 2011: 13).

Este estudo indicia a existência uma “cultura do império” com uma dinâmica que gira em torno da teoria do lusotropicalismo, sendo a literatura colonial o canal para a sua divulgação e expansão. Assim, é objetivo deste trabalho analisar a dimensão imperial e lusotropical na representação da categorização da “raça” (branco, preto, mestiço) do corpus selecionado, inferindo sobre os conceitos de “colonialidade” e “pós-colonialidade”.

Numa primeira parte, em Enquadramento conceptual e teórico, apresenta-se a perspetiva de investigação, alinhada com os pressupostos dos estudos culturais e dos estudos pós-coloniais, para numa segunda parte, Considerações metodológicas, indicar a problemática que incitou este percurso de investigação, apontando as fontes, delimitando o corpus, definindo objetivos, metodologias, limites e constrangimentos.

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Como já foi referido, parte-se da hipótese de haver uma “cultura do império” com uma dinâmica cultural, que deve ser contextualizada. Assim, a terceira parte, Contextualização histórico-cultural, é consagrada ao enquadramento histórico-cultural, delimitado pelos anos 30 aos anos 60 do século XX, época em que a política cultural e a política colonial ganham maior relevo nas práticas culturais, a fim de se contruir uma imagem lusotropical do império. É com base na teoria do lusotropicalismo de Gilberto Freyre que, sobretudo a partir dos anos 50, a literatura colonial ganha um caráter propagandístico do “mundo que o português criou”, considerado pluricontinental e “multirracial”. Assim, nesta parte, intenta-se demonstrar a construção de uma “cultura do império” particular para legitimar a colonização portuguesa em África. Deste contexto emergem narrativas ficcionais que espelham a ação portuguesa por terras africanas, em particular de Angola, que se propõe analisar na quarta parte, em Subjetividades do aquém e do além-mar. A sequência utilizada – Reis Ventura, Guilhermina de Azeredo e Castro Soromenho – é intencional e já reveladora do resultado da investigação: trata-se de um corpus representativo do pensamento colonial, anticolonial e pós-colonial avant la lettre, ou seja, exemplificativo da dinâmica da colonialidade e da pós-colonialidade na (des)mistificação do império colonial português.

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Capítulo 1: Perspetiva de investigação – estudos culturais e estudos pós-coloniais Ao decidir investigar sobre Castro Soromenho, numa perspetiva comparativa com Reis Ventura e Guilhermina de Azeredo, na época compreendida entre 1933-1968, surgiu a necessidade de esclarecer um emaranhado de conceitos, pelo caráter eclético do objeto de estudo em análise. De facto, a leitura crítica do corpus é, no âmbito deste trabalho, ancorada nos estudos pós-coloniais (enquanto ramificação dos estudos culturais em termos gerais), que questiona a cultura do império colonial português, ou seja, as práticas culturais “feitas ou moldadas” para o império, especificamente na produção cultural criada no âmbito da literatura colonial. Esta, sendo um género literário que gera ainda controvérsia, é usada como elemento de legitimação e representação da ideologia da colonização portuguesa em Angola, sustentada em parte, e sobretudo dos anos 50, pela teoria do lusotropicalismo. Para o efeito, estreita-se aqui a ligação já existente entre História e Literatura, pois “ambas abordam temas comuns sob diferentes perspectivas, utilizam formas aproximadas para se concretizarem – a escrita em suas variadas dimensões” (Camilotti e Naxara 2009: 17). Evocando Alfredo Bosi e Michelet, as autoras de História e Literatura: fontes literárias na produção historiográfica recente no Brasil (2009) referem que a Literatura subsidia a História “pela sua condição de repositório de gestos, gostos, afetos, sentimentos, para a confeção de um perfil ou de perfis” (Camilotti e Naxara 2009: 27). Em última instância, por um lado, o literário é considerado como fonte pelo historiador, “tendo em vista a reconstituição do que é identificado pelo nome de História, como algo que o antecede”, embora, por outro, “o literário é tomado como substrato para o escrutínio de percepções, representações, figurações, por meio das quais se busca os movimentos de instituição de imaginários e da própria temporalidade enquanto tal” (2009: 28). Julga-se que, para uma leitura do corpus, a segunda perspetiva cumpre melhor os pressupostos.

Um trabalho científico desta envergadura obriga a situar disciplinarmente a perspetiva de investigação. Ora, se não se enquadra nem nos estudos literários, nem nos estudos historiográficos, julga-se que os estudos culturais, por não configurarem uma disciplina, possam oferecer à pesquisa um campo onde várias disciplinas atuam e se complementam. Numa perspetiva geral, os estudos culturais1, enquanto área

1 “Os estudos culturais não configuram uma ‘disciplina’, mas uma área onde diferentes disciplinas

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transdisciplinar de temas tidos como minoritários, intervalares ou ambíguos, e em particular os estudos pós-coloniais, configuram a base metodológica adotada para encetar um diálogo entre as narrativas coloniais selecionadas e o seu contexto sociocultural e histórico e indagar sobre as dinâmicas coloniais e pós-coloniais nelas representadas.

A estrutura deste capítulo passa por apresentar os estudos culturais, onde se inserem, a par dos estudos subalternos, os estudos pós-coloniais. De seguida, intenta-se uma revisão do conceito “pós-colonial”, focando o trio fundador da teoria pós-colonial – Said, Spivak e Bhabha –, para no final particularizar com o “pós-colonial” português. Trata-se, essencialmente, de traçar um percurso histórico da teoria pós-colonial, enquanto conceito e crítica do período histórico da colonização, que (ainda) tem continuidades nos tempos pós-independências. Para levar a cabo este propósito, este trabalho sustenta-se nos autores já referidos, mas também na crítica pós-colonial portuguesa mais recente e que surge de várias disciplinas das Ciências Sociais e Humanas, tais como Boaventura Sousa Santos (2001, 2003), Manuela Ribeiro Sanches (2005, 2006), Margarida Calafate Ribeiro (2004), assim como José Carlos Venâncio (1987, 1992, 2000, 2005) e Paulo de Medeiros (2006). Pretende-se oferecer um panorama conceptual geral, mas dá-se primazia aos críticos pós-coloniais portugueses, porque estima-se que, para este tema, nem sempre as teorias “decalcadas” de realidades estrangeiras (como os impérios coloniais britânico, francês ou espanhol) se adequam ao objeto de estudo português, pelas especificidades histórico-culturais que apresentam. Nesta senda, depois de apresentar o conceito e âmbito dos estudos pós-coloniais, pretende-se delinear o “pós-colonial” português, partindo da “especificidade” do colonialismo português em comparação com o colonialismo britânico, apresentada por Boaventura Sousa Santos. Se o colonialismo foi diferente, certo será que o pós-colonialismo o seja também, apesar de haver um traço comum: a violência racial e a subjugação do “outro”.

1.1.Estudos culturais: linhas gerais

Pela amplitude do fenómeno, não se pretende uma historiografia exaustiva dos estudos culturais, mas sim aflorar a(s) perspetiva(s) desta área que melhor cumpre(m) os objetivos do presente estudo. Desde já, como foi referido, os estudos culturais não

A., e Willis, P. (1980) : Culture, media, language – Working papers in Cultural Studies 1972-1979. London e New York: Routledge e Centre for Contemporary Cultural Studies/University of Birmingham.

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formam uma disciplina, mas sim uma área onde diferentes disciplinas se entrelaçam com o objetivo de estudar os aspetos culturais da sociedade (Hall et al. 1980: 7), concentrando-se num determinado grupo, etnia ou condição social (Klinger 2007: 83). Acredita-concentrando-se ainda que os estudos culturais, “seja lá o que eles forem, nasceram como resultado da insatisfação com outras disciplinas, não meramente com seus conteúdos mas também com seus próprios limites enquanto tais” (Jameson 1994:13), verificando-se que a Antropologia já não detém o monopólio do estudo da cultura e que as fronteiras entre esta e a sociologia, os estudos culturais ou a crítica literária apresentam-se cada vez mais difusas (Klinger 2007: 83), pelo que o consenso nem sempre é fácil de encontrar. A perda da especificidade de cada disciplina e a dissolução dos limites disciplinares são, na realidade, segundo Diana Irene Klinger, a verdadeira aspiração dos estudos culturais, mas estes determinam sobretudo a “rejeição das hierarquias entre objectos nobres e não nobres” (Klinger 2007: 84), ampliando assim o campo de estudos. Embora não se encontre na crítica aos estudos culturais unanimidade em torno da característica “interdisciplinar” que os encerra, esta forma de abordagem ao vasto campo de estudos é fundamental, apesar dos riscos apontados por Carlos Reynoso (2000). O antropólogo argentino enumera várias “deficiências” dos estudos culturais, por exemplo, “a ausência de métodos e técnicas” ou “metodologias” e “o desenvolvimento fragmentário e insatisfatório dos marcos teóricos importados de outras disciplinas” (Reynoso 2000: 305 apud Klinger 2007: 85). De facto, é aqui que se verifica que os estudos culturais carecem de algum formalismo. Mas não será essa a pretensão? Esta falta não será coerente com os princípios que nortearam a criação dos estudos culturais? (Martino 2012: 79).

Apesar de as críticas de Reynoso se afigurarem plausíveis, encontra-se em Maria Manuel Baptista uma síntese das metodologias frequentemente adotadas nos estudos culturais: a metodologia etnográfica (vivência empírica ou observação participante); a abordagem textual, cujos resultados divergem consoante o método usado, isto é, se o texto é tratado na perspetiva semiótica é encarado como signo, onde o investigador procura ideologias e mitos; por outro lado, na perspetiva da teoria narrativa, “os textos são vistos e compreendidos como histórias que procuram explicar o mundo e fazem-no de forma sistemática”; e, finalmente, a abordagem desconstrucionista que “procura, quer nos campos da literatura quer no âmbito da teoria pós-colonial, surpreender os pares hierárquicos clássicos da cultura ocidental (homem/mulher, preto/branco, realidade/aparência, etc.), distinguindo o que um texto diz daquilo que ele significa”

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investigação parte da consideração de que o sentido do texto é activado pelo leitor, audiência ou consumidor” (2009: 458).

Feito o balanço das problemáticas que gravitam os estudos culturais, importa traçar, em moldes gerais, a génese deste Big Bang (Mattelart & Neveu 2006) da academia das Ciências Humanas e Sociais. Os primeiros manifestos dos estudos culturais surgem nos anos 50, em Inglaterra, com os autores Richard Hoggart, Raymond Williams e Edward Palmer Thompson, com The uses of literacy (1957), Culture and Society (1958) e The Making of the English Working-class (1963), respetivamente. Estes textos são, consensualmente, identificados como edificadores dos estudos culturais. Os fundadores dos estudos culturais, Hoggart, Williams e Thompson, embora distintos nas suas atuações, convergem nas preocupações no que respeita à cultura no enlace com a história e sociedade. Assim, o elo de ligação entre os autores está na insistência em afirmar que é através da “análise da cultura de uma sociedade – as formas textuais e as práticas documentadas de uma cultura – é possível reconstituir o comportamento padronizado e as constelações de ideias compartilhadas pelos homens e mulheres que produzem e consomem os textos e as práticas culturais daquela sociedade” (Storey 1997: 46).

Ao contrário de Else Vieira, que afirma haver um deslocamento dos estudos literários para os estudos culturais (2000: 9), pensa-se não haver tanto um deslocamento, entendido como forma invasiva, mas sim um intercâmbio que complementa quer uns quer outros na mesma medida. Já Ana Carolina D. Escosteguy, na cartografia que traça dos estudos culturais, no livro Cartografias dos Estudos Culturais: uma versão latino-americana (2001), depara-se com a impossibilidade de dar um desfecho conceptual aos estudos culturais no sentido lato. Segundo a autora, de uma forma geral e no contexto latino-americano, os eixos teóricos que sustentam os estudos culturais são “as relações entre cultura e ideologia; a opção pela análise da cultura popular, e a construção de identidades culturais contemporâneas mediadas intensamente, pelos meios de comunicação”; e os eixos-nodais são os que giram em torno do “conceito de hegemonia, o papel do intelectual na esfera da cultura e a problemática da recepção” (Escosteguy 2001: 20).

Hoje em dia, com a democratização do entendimento do conceito de cultura, outro conceito assente em pressupostos polissémicos e controversos, surgem novas perspetivas para o estudo da multiplicidade cultural das sociedades contemporâneas. Para o âmbito dos estudos culturais, a “cultura é não apenas uma esfera de conhecimento, mas sim, levando em conta a ótica antropológica, o processo social visto em seu conjunto e em sua

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multiplicidade” (Augel 2007: 33). Richard Hoggart fundou o Center for Contemporary Cultural Studies (CCCS) em 1964 e o grupo vem ampliar o conceito de cultura, admitindo que a cultura “não é uma entidade monolítica ou homogénea, mas, ao contrário, manifesta-se de maneira diferenciada em qualquer formação social ou época histórica” (Agger 1992: 89) e que a cultura “não significa simplesmente sabedoria recebida ou experiência passiva, mas um grande número de intervenções ativas – expressas mais notavelmente através do discurso e da representação – que podem tanto mudar a história quanto transmitir o passado” (Agger 1992: 89).

A definição dos estudos culturais por aquilo que configuram e não configuram, de Lawrence Grossberg (2010), talvez seja o caminho mais elucidativo a tomar. Grossberg não pensa que os estudos culturais são “sobre” cultura, mas concorda que a cultura é essencial para o projeto. Na verdade, na perspetiva do autor, os estudos culturais são sobre tudo e sobre nada, o que dificulta a delimitação deste domínio científico. Assim, segundo o autor:

I do not think cultural studies is about culture, although culture is crucial to its project. Cultural studies is not the study of texts or textuality; it does not aim to interpret or judge particular texts or kind of texts. It is not about reading social power off of texts, or reading social realities as texts. It is not the pratice of reading the world in a grain of sand. Nor is it the study of national cultures, nor a new approach to language or area studies, although I do think it has something to say to all of these. Nor can it be defined by a focus on mass culture, or popular culture, or subaltern cultures. It is not about theory as a metaphor for or a guarantee of the inscription of power, whether in texts or social life (Grossberg 2010: 8).

De acordo com Maria Manuel Baptista, os estudos culturais estão, na sua génese, “ligados a um modo de produção de análise cultural que faz convergir princípios e preocupações académicas com uma exigência de intervenção cívica, ou seja, articula inquietações simultaneamente teóricas e preocupações concretas com a polis” (Baptista 2009: 453). Aqui, o campo de estudos pode abarcar as relações entre a cultura contemporânea e a sociedade, nas suas formas culturais, instituições e práticas culturais, como também as relações com a sociedade e as mudanças sociais (Escosteguy 2007: 27). Neste sentido, os estudos culturais permitem o cruzamento dos diversos conceitos, a começar pelo inevitável e mais transversal, a noção de cultura enquanto processo social complexo e múltiplo onde se considera, de um modo geral, “os diferentes modos de viver, os usos e costumes de uma comunidade ou de um povo” como, essencialmente, “os diversos prismas pelos quais as pessoas captam, percebem, interpretam, vivenciam, organizam e constroem suas vidas” (Augel 2007: 33).

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Considerando o conceito de cultura, delimitado por Edmond Cros (1997), como espaço ideológico cuja função consiste em enraizar uma coletividade na consciência da sua própria identidade, lembra os trabalhos levados a cabo por António Ferro no âmbito da cultura portuguesa a partir dos anos 40 do século XX português. De facto, a cultura ou a “política de espírito” preconizada por Ferro é um espaço revestido de ideologia (de António de Oliveira Salazar) que visa traçar os caminhos identitários do povo português segundo as ideias do Estado Novo. De acordo com Cros, a cultura funciona “como una

memoria colectiva que sirve de referencia y, por consiguiente, es vivida oficialmente como guardiana de la continuidad y garante de la fidelidad que el sujeto colectivo debe observar para con la imagen de si mismo que de ese modo recibe” (Cros 1997: 11). Adotando as palavras de Cros, esta perspetiva de “cultura” é paradigmática no período histórico em estudo, e nos documentos literários que compõem o corpus em análise, por ser uma “construção” que se pretendia, à partida, para uma memória coletiva de referência: a “excecionalidade” do colonialismo português.

Os conceitos surgem para dar resposta a interrogações e defini-los é assumir que o campo conceptual é estanque. Ora, o que se verifica no campo das Ciências Sociais e Humanas, e no caso concreto desta investigação, é a volatilidade dos conceitos que se adaptam à evolução dos tempos, pois tal como refere Stuart Hall, “no trabalho intelectual sério e crítico não existem ‘inícios absolutos’ e pouco são as continuidades inquebrantadas” (2003: 131). Neste sentido, no decorrer deste trabalho, é de absoluta pertinência dar conta, a pari passu, do estado da questão dos conceitos contíguos ao tema em análise, alguns em construção e outros em estado de necessidade de revisitação, tais como literatura colonial, lusotropicalismo, negritude, identidade, alteridade e subalternidade inseridos no universo do colonialismo, do anticolonialismo e do pós-colonialismo, procurando alargar a discussão para intersticialidade ou hibridismo cultural. Por isso, ao longo dos capítulos, as construções conceptuais usadas são essencialmente assentes nas teorias e nos estudos recentes (de várias disciplinas) da academia portuguesa de Valentim Alexandre, José Carlos Venâncio, Pires Laranjeira, Cláudia Castelo, Arlindo Barbeitos, Miguel de Almeida Jerónimo, José Luís Lima Garcia, Daniel Melo, Manuela Ribeiro Sanches e Margarida Calafate Ribeiro e da academia internacional, tais como os estudos de Homi Bhabha, Russel Hamilton, Moema Parente Augel, Abdala Benjamin Júnior, entre outros. Estas referências bibliográficas, que sustentam também a globalidade da presente tese, inserem-se nas disciplinas de História,

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Sociologia, Literatura ou Antropologia, o que lhe confere uma abordagem transdisciplinar ou interdisciplinar pretendida pelos estudos culturais e estudos pós-coloniais.

1.2.O estudos pós-coloniais

Nos estudos pós-coloniais, para se entender o pós-colonialismo, ter-se-á de conceptualizar, nos planos geopolíticos, económicos e culturais, o que foi o colonialismo e quando começou o pós-colonialismo. Mas, depois de vários conflitos epistemológicos, a questão do tempo cronológico já não se levanta, uma vez que o prefixo do termo “pós-colonial” pressupõe um “após” a guerra, um “após” o colonialismo, ou seja, o fim do colonialismo. Ora, como afirma Stuart Hall, “o rompimento com o colonialismo foi um processo longo, prolongado e diferenciado” e em certos casos, “o ‘colonial’ não está morto, já que sobrevive através dos seus ‘efeitos secundários’” (Hall 2003: 109-110).

Nos inícios dos anos 80, surge o conceito de “pós-colonial” no meio académico anglófono, que desde então resiste a uma definição concreta. Os estudos pós-coloniais são, segundo Boaventura Sousa Santos, um “produto da ‘viragem cultural’ das Ciências Sociais” (Santos 2001: 30). É uma corrente, protagonizada essencialmente por autores diaspóricos, nascidos nos países colonizados e fixados no Ocidente, que vem propor uma releitura crítica do colonialismo e uma reflexão sobre a experiência colonial. Trata-se de uma análise vanguardista “dos processos de cristalização de estereótipos e de juízos de valor que dominam a formação de opinião, quanto dos mecanismos pelos quais certas ideias se difundem como indiscutíveis e generalizantes” (Augel 2007: 127). Logo, numa pluralidade de propostas, os estudos pós-coloniais pretendem descentralizar e reescrever a travessia histórica colonial (Leite 2014: s/p).

O pós-colonialismo tem como âncora a interrogação sobre as consequências da dominação europeia (Clavaron 2015: 7) e pretende “interromper eficazmente os discursos hegemónicos ocidentais” e contribuir para “destruir a subalternidade do colonizado” (Santos 2001: 31). Segundo Yves Clavaron, citando Bouda Etemad, mais de 80% das populações dos países desenvolvidos têm um passado colonial, seja como ex-colonizadores seja como ex-colonizados. Georges Balandier, nos anos 50 do século XX, conclui que o pós-colonial designa “une situation qui est celle, de fait, de tous les contemporains” (Balandier apud Clavaron 2015: 7). Também na obra The Empire Writes Back (1991), emprega-se o termo “pós-colonial” para descrever toda a cultura afetada

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pelo processo imperial desde a colonização aos dias atuais. Talvez pelo caráter heterogéneo e problemático, os estudos pós-coloniais nem sempre foram bem aceites na academia, apesar dos mesmos proliferarem. Aliás, como refere Graham Huggan, em The Post Colonial Exotic (2001), os estudos pós-coloniais tornaram-se “distinctly fashionable; ‘postcolonial’ is a word on many people’s lips, even if no one seems to know quite what it means” (2001: 1). Ella Shobat, citada por Stuart Hall, critica o pós-colonial pela “ambiguidade teórica e política”, pela “multiplicidade vertiginosa de posições”, pelos “deslocamentos universalizantes e anistóricos” e pelas “implicações despolitizantes” (apud Hall 2003: 102). Também Anne McClintock é crítica em relação ao termo por considerar que “o pós-colonial funde histórias, temporalidades e formações raciais distintas em uma mesma categoria universalizante” (McClintock apud Hall 2003: 102). Ambas as autoras consideram que “o conceito é utilizado para marcar o fechamento final de um período, como se o colonialismo e seus efeitos estivessem definitivamente terminado” (2003: 102). A periodização epistemológica ou cronológica a que o conceito se refere é também criticada por Arif Dirlik, que considera o pós-colonial “uma celebração do chamado fim do colonialismo” (2003: 102).

A crítica pós-colonial tem o seu fundamento, para além de Edward Said (2004), em Homi Bhabha (1998), Aimée Césaire (2011[1955]), Frantz Fanon (1961), Albert Memmi, Amílcar Cabral (1975), Gayatri Spivak (1999) ou Stuart Hall (2003, 2006)2. A

base do pensamento pós-colonial está no mundo francófono, com os autores Césaire, Fanon e Memmi e com os textos anticolonialistas de Jean Genet, Henri Michaux ou Jean-Paul Sartre (a historiografia anglo-saxónica dos “postcolonial studies” tem tendência para esquecer esta dimensão francófona).

Em Portugal, e atualmente, há já um conjunto de autores e trabalhos que dá corpo à crítica pós-colonial; são eles Boaventura Sousa Santos (2003), Manuela Ribeiro Sanches (2005, 2006), Margarida Calafate Ribeiro (2004), assim como José Carlos Venâncio (1987, 1992, 2000, 2005), para referir os primordiais3.

2 Trata-se, de igual forma, do núcleo teórico essencial no qual se fundamenta a presente investigação. Para

esta temática, são ainda úteis os contributos do grupo de trabalho composto por Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin (1991), de Moema Parente Augel (2007) e de Jean-François Bayart (2010), só para citar alguns.

3 Os trabalhos de referência são “Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialidade e

inter-identidade” (Santos 2003), Descolonizar a Europa. Antropologia, arte, literatura e história na pós-colonialidade (Sanches 2005), ‘Portugal não é um país pequeno’, Contar o império na pós-pós-colonialidade (Sanches 2006), Malhas que os impérios tecem, Textos anticoloniais, contextos pós-coloniais (Ribeiro 2011), Uma história de regressos. Império, guerra colonial e pós-colonialismo (Ribeiro 2004).

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A teoria do pós-colonialismo não é estanque, e pode oferecer uma dupla consciência da situação colonial e pós-colonial. De abordagem transdisciplinar, os estudos pós-coloniais são um resgate da memória e uma desconstrução de “inverdades” históricas ou culturais que sustentam e legitimam a hegemonia cultural do Ocidente. Por outras palavras, trata-se de uma dinâmica de desconstrução da colonialidade. Em Postcolonial studies: modes d’emploi, considera-se que os estudos pós-coloniais são uma espécie de laboratório onde se experimentam perspetivas pluridisciplinares, mas que têm em comum as questões das relações entre dominador e dominado e as respetivas bases culturais, como também as tomadas de posição em contexto de dominação (Collectif Write Back 2013: 7).

Para esclarecer o termo pós-colonial, opta-se pela definição oferecida por Ashcroft, Griffiths e Tiffin, em The Empire Writes Back: Theory and Practice in Post-Colonial Litteratures (1991), que o usam para “to cover all the culture affected by the imperial process from the moment of colonization to presente day” (Ashcroft, Tiffin, Griffiths 1991: 2), ou seja, a fixação do termo é anacrónica; a independência das ex-colónias não significa a conquista da condição de pós-colonialidade (Pimenta e Ribeiro 2013: 9). Como também refere Manuela Ribeiro Sanches, atribuir ao “pós” uma conotação cronológica4 é supor que o “colonial” está finalmente ultrapassado, o que

poderia permitir, em Portugal, “uma revisitação mais ou menos pacificada de um passado que se deseja definitivamente morto e enterrado” (Sanches 2011: 10), o que não se verifica:

[pois] A memória da guerra colonial, os conflitos sobre uma descolonização apelidada de ‘exemplar’ ou ‘desastrosa’ revelam, no caso português, o modo como as feridas continuam abertas, sobretudo nas gerações que as presenciaram. As memórias dos ‘retornados’ afloram timidamente, sempre em termos de um debate controverso que parece longe de encerrado (Sanches 2011: 10).

O pós-colonial diz antes respeito à reflexão que é feita do processo da colonização e ao estudo dos efeitos deste, seja na era colonial seja na era da pós-independência. Os estudos pós-coloniais surgem assim para um desmascaramento do etnocentrismo europeu e imperialista, numa espécie de escalpelização do colonial. Neste sentido, o pós-colonial pode ser ainda a “expressão de uma produção tanto ficcional ou poética quanto teórica

4 Também em França, a discussão em torno da pós-colonialidade, que surge no ímpeto das sociedades de

“banlieues”, não é isenta de controvérsia, a começar pela própria grafia dos termos “post-coloniale” e “postcoloniale”. O primeiro designa o que é cronologicamente após a descolonização, enquanto o segundo implica a reflexão sobre o que advém da situação colonial sem distinção de temporalidade (Bayart 2010:

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que espelha e questiona [a] herança e as relações dentro dos binómios colonizador/colonizado, centro/periferia, Primeiro/Terceiro Mundo” (Augel 2007: 125). Esta viragem ocorre com a descoberta da negritude, a partir dos anos 50, um movimento que aponta as primeiras propostas anticoloniais, a reivindicação do direito à independência e a afirmação da identidade africana. De certa forma, esta revolução é um dos marcos determinantes para vincular “o pensamento e as práticas políticas que também contribuíram decisivamente, não para o fim do (neo)colonialismo, mas para o seu questionamento radical” (Sanches 2011: 11), pois sem a negritude o anticolonialismo ou a visão pós-colonial não existiriam. Pensar a negritude permitiu “questionar os preconceitos raciais e culturais que (…) continuam a assolar as sociedades contemporâneas” (Sanches 2011: 11). Manuela Ribeiro Sanches afirma que ainda existe discriminação racial, nomeadamente em Portugal, onde se verifica que “impera um consenso não só em torno de tradicionais ‘brandos costumes’ lusotropicalistas, mas também da ideia de que há que não falar em ‘raça’, para se evitar o racismo” (Sanches 2011: 11-12).

O passado imperial é visto como um “passado-presente”, e o campo conceptual que o engloba tem como objetivo revelar publicamente “cette présence spectrale du passé dans le présent” (Collectif Write Back 2013: 7-8). Sobre a questão da memória pós-colonial e sobre o peso que o passado exerce sobre as relações sociais do presente, Marie-Claude Smouts afirma ter havido um silêncio, um eclipse de memória, até há pouco tempo (Smouts 2008: 91). Referente à França, (mas que se pode transpor para o contexto português), a autora denuncia o atraso na discussão pública do passado colonial e a relutância em relação aos estudos pós-coloniais na academia e na política francesas. Por um lado, a explicação, segundo Smouts, passa pelas condições dolorosas da descolonização, pelo conservadorismo das instituições de investigação e pelas clivagens disciplinares, pelo antiamericanismo e o insucesso da French Theory que sustentou os Postcolonial Studies britânicos nos inícios. Por outro, a abordagem dos estudos pós-coloniais implica introduzir a questão racial, a discriminação étnica na análise da prática colonial e das desigualdades sociais, o que a França, no dizer da autora, “répugne à reconnaître” (2008: 93). Assim, a tendência era considerar as relações sociais sob o prisma da classe. Atualmente, reivindica-se uma memória pós-colonial por força das migrações e por força do fenómeno geracional: os atores sociais implicados rompem com o silêncio dos ascendentes e querem saber “qui était qui, qui a fait quoi, de connaître leur histoire à côté de celle – assez franco-française – qu’on leur enseigne” (2008: 93). Ainda

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de acordo com Smouts, também existe esta reivindicação por parte de investigadores que têm um passado colonial e dos que consideram o pós-colonial um objeto científico relevante, legítimo e socialmente necessário. Apesar destas movimentações, “l’émergence du postcolonial dans la sphère sociale et l’émergence du postcolonial dans la science se font à des rythmes différents” (2008: 93). Ao contrário do contexto anglófono, onde o pós-colonial partiu da academia, em França o pós-colonial é uma demanda dos próprios atores sociais, que exigem uma memória, mesmo que não seja uma “mémoire heureuse”, usando a expressão de Paul Ricoeur (2000). Marie-Claude Smouts conclui que a construção da memória e a instrumentalização do passado devem ser distintos e que construir uma memória colonial não significa abrir uma guerra de memórias nem exige arrependimento, mas antes a construção em conjunto de uma história em comum e partilhada; e termina dizendo: “C’est du vivre ensemble qu’il s’agit” (2008: 94). Myriam Suchet (2013), evocando Johannes Fabian, afirma que, durante muito tempo, a construção do “outro” implicava a recusa em partilhar com ele um tempo comum, um património comum. Daí que devolver a história àqueles que dela foram privados constitui um projeto de relevância no âmbito dos estudos pós-coloniais. Os estudos pós-coloniais, tal como afirma Nicolas Bancel, podem não ser uma panaceia, mas abrem indubitavelmente novas perspetivas (Bancel 2013: 63).

De uma forma mais particular e numa primeira leitura, Boaventura Sousa Santos entende os estudos pós-coloniais como um “conjunto de práticas e discursos que desconstroem a narrativa colonial escrita pelo colonizador e procuram substituí-la por narrativas escritas do ponto de vista do colonizado” (Santos 2003: 26); numa segunda perspetiva, assente nos estudos culturais, linguísticos e literários, Santos apresenta o pós-colonial como uma hermenêutica dos sistemas de representação e dos processos identitários das práticas performativas e das narrativas, onde se supõe uma crítica aos “silêncios das análises pós-coloniais” da primeira (2003: 26).

De forma irónica, e evocando Arif Dirlik, Jean-François Bayart defende que a pós-colonialidade (postcolonialité) é a condição do que se pode denominar de uma “intelligentsia compradore: un groupe relativement restreint d'écrivains et de penseurs de style occidental et formés à l'occidentale, qui servent d'intermédiaires dans le négoce des produits culturels du capitalisme mondial avec la périphérie” (Bayart 2010: 7). No contexto francês, segundo o mesmo autor, a pós-colonialidade procura decifrar a sociedade sob o prisma da herança colonial, postulando uma continuidade, da época

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forma mais abrangente, Georges Balandier é da opinião de que o mundo globalizado vive em situação pós-colonial – “nous sommes tous, en des formes différentes, en situation postcoloniale” (Balandier apud Bayart 2010:7).

Como se denota, a teoria do pós-colonialismo é tanto vasta quanto controversa, mas essencial, pois, segundo Manuela Ribeiro Sanches, “falar de um ponto de vista pós-colonial, a partir de uma perspectiva europeia, corresponde a sublinhar não tanto o fim efectivo do colonialismo quanto, sobretudo um outro modo ler o passado e o presente” (Sanches 2005: 8)5. De facto, os estudos pós-coloniais apresentam várias facetas,

dependendo do lugar de onde são perspetivados. Assim, segundo os autores6 que

compõem o Collectif Write Back:

Face à cette diversité, les chercheurs qui s’en réclament sont contraints de faire des choix: ils tentent de les adapter à un ou plusieurs champs disciplinaires, tels qu’ils se sont constitués dans le monde universitaire de leur société. Mener une recherche dans le domaine des postcolonial studies implique ainsi bien souvent de prendre parti, de se ranger aux côtés d’un groupe de chercheurs constitué ou d’en appeler à une tradition intellectuelle extérieure (Collectif Write Back 2013 : 10).

Recorde-se, por outro lado, o texto “O papel da cultura na luta pela independência”, de Amílcar Cabral escrito em 1975. Segundo o pensamento político de Cabral, é essencial a mudança ou transformação social e criação de um “homem novo”, não apenas africano: um homem que transcenda as dicotomias dominador/dominado ou colonizador/colonizado (Venâncio 2005: 137). Nesta transformação, a cultura, principalmente a do colonizado, desempenha um importante papel. Ao valorizar-se e ao ser reconhecida como tal pelo colonizador, acaba por libertar este de “um elemento negativo de sua própria cultura: o preconceito da supremacia da nação colonizadora sobre a nação colonizada” (Cabral apud Venâncio 2005: 137). Antecipando um dos axiomas dos estudos ou da teoria pós-colonial, Cabral apresenta, segundo José Carlos Venâncio, “o colonialismo como uma teia de interdependências, como um círculo vicioso de que se sai apenas a partir do momento em que se aceita o Outro” (Venâncio 2005: 137)7.

5 É nesta senda que esta investigação se propõe a “reler” o passado colonial, através das narrativas ficcionais

de Reis Ventura, Guilhermina de Azeredo e Castro Soromenho, para, num primeiro momento, o compreender e posteriormente entender o presente e futuro que se sente ser, como afirma Inocência Mata, um “tempo infinito da pós-colonialidade” (Mata 2012: 34).

6 Florian Alix, Anne-Sophie Catalan, Claire Ducournau, Tina Harpin, Estelle Olivier, Myriam Suchet, Cyril

Vettorato.

7 Antes deste postulado político cabralista, já Castro Soromenho o havia entendido, embora de forma

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Assim, à pós-colonialidade importa sobretudo equilibrar a consciência do passado, corrigir silêncios e tornar visíveis elementos pertencentes aos campos colonial e anticolonial que permitam uma discussão crítica em equidade. Estimular o debate em torno dos “passados” do império colonial é, no contexto português, “propiciar os meios para uma reflexão mais fundamentada sobre o que somos e queremos ser” (Sanches 2011: 13) numa sociedade da denominada “era da globalização”. De acordo com Manuela Ribeiro Sanches, a situação pós-colonial alimenta-se precisamente de “um novo modo de se entender o passado e o presente, olhando-os de um modo alternativo, numa revisitação, porventura, incómoda – e, por isso mesmo, tanto mais necessária – de um imaginário” (Sanches 2006: 8) fundado em circunstâncias históricas concretas, mas que os regimes discursivos também ajudaram a construir, tal como a literatura, a história ou a antropologia, responsáveis pela criação de “comunidades imaginadas” e, em parte, pela construção da identidade cultural do povo português.

Não menos importante é perceber a construção da identidade cultural do povo ex-colonizado. Segundo Adu Boahen (1989), em African Perspectives on Colonialism, um aspeto positivo do impacto colonial “was the generation of a sense of nationalism as well as the intensification of the spirit of Pan-Africanism” (Boahen 1989: 98), aspeto positivo, mas também um dos “acidental by-products of colonialism”, uma vez que conscientemente nenhum sistema colonial promoveu essa consciência identitária ou nacional no povo colonizado. Pensar a pós-colonialidade é ultrapassar a barreira nacional e pensar igualmente o presente das antigas colónias. A historiografia portuguesa apresenta (ainda) uma memória seletiva do período da colonização. Nota-se uma ausência de métodos pluridisciplinares, caraterísticos dos estudos culturais, na abordagem ao “outro”. A fixação do investigador nos discursos oficiais já não é suficiente para pensar a “cultura do império”.

Gayatri Chakravorty Spivak teoriza no campo da literatura e da crítica literária. A perspetiva pós-colonial de Spivak é dupla. Da resistência à dominação, a autora pretende articular uma crítica literária feminista com o imperialismo, mas também com as relações neocolonialistas instauradas pelo Ocidente no sistema capitalista mundial, passando pelo racismo e pelo sexismo.

No texto emblemático “Can the subaltern speak” (1996), Spivak apresenta a condição de subalterno, designação usada para todos os grupos de oprimidos na sociedade pós-colonial indiana (classe, casta, idade, género), que são as vozes silenciadas e as

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duplamente sacrificada na sociedade patriarcal e (pós-)colonial. Segundo Spivak, a função do crítico pós-colonial é contribuir para a destruição da subalternidade do colonizado. Para tal, exige-se um trabalho político que vai além da narrativa académica. Assim, para Spivak:

working for the subaltern is precisely to bring them, not through cultural benevolence, but through extra-academic work, into the circuit of parliamentary democracy. Because the subaltern, any subaltern anywhere, is today, de jure, a citizen of some place or the other. (...) Working for the contemporary subaltern really means putting one's time and skills on the line (...) that working for the subaltern means the subaltern's insertion into citizenship, whatever that might mean, and thus the undoing of subaltern space (Spivak 1996: 317).

Edward Said, baseado essencialmente no pensamento de Michel Foucault, apoia o seu estudo na produção literária e romanesca do Ocidente sobre o Oriente, que constitui uma espécie de formação discursiva da época colonial. Os seguidores desta corrente são sobretudo intelectuais de origem dos países do Sul, instalados nas universidades anglo-saxónicas e nos Estados Unidos, dispostos a adotar uma posição crítica em relação à textualidade do colonialismo.

Edward Said, na introdução ao livro Orientalismo (2004), afirma que “a relação entre o Ocidente e o Oriente é uma relação de poder, de domínio, com diferentes graus, de uma complexa hegemonia”, sendo o Oriente “orientalizado” porque “se descobriu ser ‘oriental’, segundo estereótipos do europeu médio do século XIX, mas também porque podia – isto é, poderia ser obrigado a – tornar-se oriental” (2004: 6). O autor ilustra a afirmação com o exemplo da relação entre a cortesã egípcia, Kuchuk Hanem, e Gustave Flaubert, que originou o paradigma de mulher oriental: “ela nunca falava de si própria, nunca representava as suas emoções, presença ou história. Ele falava por ela e representava-a” (Said 2004: 6) e dava-a a conhecer aos seus leitores como sendo “tipicamente oriental”. O orientalismo nasce, assim, da imagem virtual do “oriental” construída no seio intelectual e académico ocidental e consequente de dois elementos essenciais, desde o século XVIII, na relação entre Oriente e Ocidente. O primeiro é o crescimento do conhecimento sistemático do Oriente por força do encontro colonial e “pelo interesse generalizado pelo alheio e inusual” por parte das ciências emergentes como a etnologia, a anatomia comparativa, a filologia e a história, a que se acrescenta um corpus considerável de literatura produzida por romancistas, poetas, tradutores e viajantes (Said 2004: 45). Desta forma, e acordo com Said, este “conhecimento do Oriente, porque gerado a partir da força, cria num certo sentido o Oriente, o oriental e o seu mundo”. O

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oriental, na sua potencial imagem, era “irracional, depravado, infantil ou diferente”; e havia também a premissa de que “o Oriente e tudo a ele referente era de cáracter inferior, sendo necessário estudá-lo para o corrigir”, escrutinar, estudar, julgar, disciplinar ou governar (2004: 46).

Como funciona o “orientalismo”? Segundo Said, o orientalismo, enquanto forma de pensamento para lidar com o outro/ estrangeiro, parte de um “grande centro de poder no Ocidente, a partir do qual se ramifica uma grande máquina que se estende para o Oriente, sustentando a autoridade central e sendo comandada por ela” (2004: 51), forjando assim uma “monstruosa cadeia de subordinação” à imagem descrita por Kipling:

Uma mula, um cavalo, um elefante ou bezerro, obedecem ao seu condutor, o condutor ao sargento, o sargento ao lugar-tenente, o lugar-tenente ao capitão, o capitão ao major, o major ao coronel, o coronel ao brigadeiro que comanda três regimentos, o brigadeiro ao general, que obedece ao vice-rei, que por seu turno serve a imperatriz (Kipling apud Said 2004: 51-52).

O “orientalismo baseia-se na exterioridade, isto é, no facto de que o orientalista, poeta ou erudito, faz falar o Oriente, descreve o Oriente, torna claros os seus mistérios para e pelo Ocidente” (Said 2004: 23) o que resulta, segundo Said, na representação ao invés da factualidade; pelo que, na sua análise do texto orientalista, “dá enfâse à evidência, não invisível, de que estas representações são representações e não descrições ‘naturais’ do Oriente” (2004: 24).

Said publicou também Culture et Impérialisme (2000 [1993]) onde demonstra, através de autores como Austen, Conrad, Kipling ou Camus, como a cultura e a literatura participam na dinâmica imperial. No geral, as literaturas europeias fazem da ideia imperialista uma prática política e cultural. Segundo Clavaron, o interesse da tese de Said reside em expor a importância geopolítica das diferentes manifestações da cultura, como também apresentar o papel da cultura imperial na construção da hegemonia ocidental (Clavaron 2015: 27).

Defendendo a estreita ligação entre imperialismo e cultura no contexto colonial, Said considera a ficção, nomeadamente o romance, a expressão cultural que mais influencia a “formação de atitudes, referências e experiências imperiais”, pois “as histórias estão no cerne daquilo que dizem os exploradores e os romancistas acerca das regiões estranhas do mundo”, de que a literatura colonial é o melhor exemplo ilustrativo, pelo que uma revisitação destas narrativas permite “compreender para curar” (Said 2004: 12-13).

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Homi Bhabha, autor de O Local da Cultura (1998), é o terceiro elemento da tríade pós-colonial Said/Spivak/Bhabha. Bhabha recusa o realismo e o historicismo e propõe uma teoria alternativa para a construção do sujeito colonial, apresentando as figuras de colonizador e colonizado como sendo ambivalentes e ambíguas (Clavaron 2015: 31). Para além das dicotomias identidade/alteridade e centro/periferia, Bhabha postula uma interdependência entre colonizador e colonizado e uma construção mútua das subjetividades, levando-o aos conceitos de “imitação”, “hibridez” e de “terceiro espaço”. É a partir da posição do indígena “mediador”, que os europeus criaram/europeizaram sobretudo desde o século XIX, que o autor desenvolve o conceito de imitação: o outro, portador de uma identidade “imperfeita”, europeizado, é um imitador, um intermediário entre duas culturas divergentes. Bhabha define a mímica colonial como o “desejo de um Outro reformado, reconhecível, como sujeito de uma diferença que é quase a mesma, mas não exatamente”; e acrescenta ainda que a mímica é “marcada por uma indeterminação: a mímica emerge como a representação de uma diferença que é ela mesma um processo de recusa” (Bhabha 1998: 130). Daqui, constrói-se o plano da hibridização que designa novas formas transculturais nas zonas de contacto produzidas pela colonização. Em O local da cultura (1998), o conceito de hibridez está associado à teoria da diferença, onde o autor distingue “diversidade cultural” de “diferença cultural”. Apesar de divergentes, estes conceitos operam em simultâneo num novo espaço cultural, que Bhabha denomina de “terceiro espaço de enunciação”, onde se encontram as minorias, os migrantes, os excluídos que vêm perturbar a homogeneidade da nação. Esta subversão é pensada fora das lutas categorizadas – classe, raça ou género; Bhabha coloca-a antes num espaço intersticial onde se negoceia as sobreposições e os ajustamentos das diferenças culturais.

Segundo Homi Bhabha, as perspetivas pós-coloniais “tentam dar ‘normalidade’ hegemónica ao desenvolvimento irregular e às histórias diferenciadas de nações, raças, comunidades”, formulando as revisões críticas em torno de problemáticas como diferença cultural, autoridade social e discriminação política. Com isto pretende-se “revelar os momentos antagónicos e ambivalentes no interior das ‘racionalizações’ da modernidade” (Bhabha 1998: 239). Evocando Jürgen Habermas, Bhabha afirma que o projeto pós-colonial, de um modo geral, intenta “explorar aquelas patologias sociais – ‘perda de sentido, condições de anomia’ – que já não simplesmente ‘se aglutinam à volta do antagonismo de classe, [mas sim] fragmentam-se em contingências históricas amplamente dispersas” (1998: 239-240).

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1.3.Portugal: que pós-colonialismo(s)/pós-colonialidade?

Em Portugal, e atualmente, há já um conjunto de autores e trabalhos que dá corpo à crítica pós-colonial numa perspetiva literária ou interdisciplinar; são eles, por exemplo, Boaventura Sousa Santos (2001, 2003), Manuela Ribeiro Sanches (2005, 2006), Margarida Calafate Ribeiro (2004), assim como José Carlos Venâncio (1987, 1992, 2000, 2005) e Paulo de Medeiros (2006). Os trabalhos de referência são “Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialidade e inter-identidade” (Santos 2001, Santos 2003), Uma história de regressos. Império, guerra colonial e pós-colonialismo (Ribeiro 2004), Descolonizar a Europa. Antropologia, arte, literatura e história na pós-colonialidade (Sanches 2005), ‘Portugal não é um país pequeno’, Contar o império na pós-colonialidade (Sanches 2006), Excepção Atlântica. Pensar a literatura da Guerra Colonial (Vecchi 2010), Malhas que os impérios tecem, Textos anticoloniais, contextos pós-coloniais (Sanches 2011). Parte destes trabalhos, na maioria coletivos, vem colmatar uma lacuna na abordagem do pós-colonial: a perspetiva portuguesa (Santos 2001, Ribeiro 2004, Sanches 2006, Vecchi 2010). Paulo de Medeiros, no texto “Apontamentos para conceptualizar uma Europa pós-colonial” (2006), defende uma “atenção particular às especificidades históricas dos vários colonialismos” (do britânico, do francês, do espanhol, do português), pois acredita que, no caso português e referindo-se ao estudo sobre literaturas de expressão portuguesa, a “adesão aos preceitos da crítica pós-colonial anglófona implica uma redução do seu potencial inovador” (Medeiros 2006: 348). De facto, Medeiros afirma que grande parte dos estudos sobre a situação pós-colonial europeia é feita no âmbito da academia anglófona (Reino Unido e ex-colónias), dando o exemplo de trabalhos de fundo, como Empire: A Very Short Introduction (2002), de Stephen Howe ou Postcolonialism: a Very Short Introduction (2003), de Robert J. C. Young, onde as referências ao império português são rudimentares, referindo-se apenas a Portugal como “uma das nações envolvidas no processo colonial, sem avançar um único pormenor” (Medeiros 2006: 344). Ora, para se abordar as dinâmicas coloniais e pós-coloniais da Europa, ter-se-á de conhecer e compreender a singularidade histórica de cada país e ligá-la ao todo europeu.

Boaventura Sousa Santos, no estudo sobre os processos identitários no espaço-tempo da língua portuguesa, “Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade” (Santos 2001, 2003), dá conta daquela singularidade e analisa “as

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impregnaram os regimes identitários nas sociedades que dele participaram, tanto durante o período colonial como depois da independência das colónias” (2001: 26). O autor apresenta a “especificidade” do colonialismo português, que não é mais do que um desvio à norma oferecida pelo colonialismo britânico, tornando o português duplamente subalterno:

A subalternidade do colonialismo português é dupla, porque ocorre tanto no domínio das práticas coloniais, como nos discursos coloniais. No domínio das práticas, a subalternidade está no facto de Portugal, enquanto país semi-periférico, ter sido ele próprio, durante um longo período, um país dependente da Inglaterra, em certos momentos, quase uma ‘colónia informal’ da Inglaterra. (…) No domínio dos discursos coloniais, a subalternidade do colonialismo português reside no facto de, a partir do século XVII, a história do colonialismo ter sido escrita em inglês e não em português (Santos 2001: 26-27).

A subalternidade ou a “especificidade” do colonialismo manifesta-se essencialmente na economia política, numa situação semiperiférica, mas também “nos planos social, político, jurídico, cultural, no plano das práticas quotidianas de convivência e de sobrevivência, de opressão, de resistência, de proximidade e de distância, no plano dos discursos e narrativas, no plano do senso comum e de outros saberes, das emoções e dos afectos, dos sentimentos e das ideologias” (Santos 2001: 27-28). Para além de se manifestar em vários planos, também se manifestou durante muito tempo, o que “redundou numa estranha suspensão no tempo, numa anacronia que, aliás, havia de revelar-se dupla: por ter existido antes e por ter continuado a existir depois do colonialismo hegemónico”; o que vai interferir com “sociabilidades e identidades, tanto do colonizador, como dos colonizados”, porque “a colonialidade das relações não terminou com o fim do colonialismo das relações” (Santos 2001: 29).

Para Sousa Santos, o pós-colonialismo apresenta dois sentidos. O primeiro é a de um marco histórico que sucede à independência dos países colonizados e onde se analisam, essencialmente, as questões económicas, sociológicas e políticas dos novos Estados; o segundo é “um conjunto de práticas (predominantemente performativas) e de discursos que desconstroem a narrativa colonial, escrita pelo colonizador, e procuram substituí-la por narrativas do ponto de vista do colonizado” (Santos 2001: 30). Nesta segunda perspetiva, o pós-colonialismo reveste-se de um “recorte culturalista”, inserindo-se nos estudos culturais, linguísticos e literários, onde inserindo-se analisa os sistemas de representação e os processos identitários. Aqui há “uma crítica, implícita ou explícita, aos silêncios das análises pós-coloniais” (Santos 2001: 30) do primeiro sentido.

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Falar em pós-colonialismo é falar, em liberdade, de liberdade, anulando binómios e dicotomias de hierarquia vertical do tempo colonial. A horizontalidade do debate pós-colonial oferece, na contemporaneidade, uma riqueza cultural que aponta cada vez mais para uma maior aproximação sociocultural dos países de língua portuguesa; uma releitura do passado eficaz e descomprometida assim o permitirá. O passado de um “império”, revestido de “exceção” e tapado por uma cortina “lusotropical”, é hoje tema ainda em discussão, pela ligação que tem ao presente e certamente ao futuro. Aliás, tal como afirma Miguel Vale de Almeida, “a revisitação das narrativas coloniais portuguesas – do estado, dos saberes, das artes, das pessoas – é um empreendimento fundamental para compreender como se configura a comunidade de sujeitos e cidadãos debaixo da República Portuguesa hoje” (Almeida 2006: 367).

Falar em pós-colonialismo é falar de memória, mas também do esquecimento. Ao pensamento da pós-colonialidade importa sobretudo equilibrar a consciência do passado, corrigir silêncios e tornar visíveis elementos pertencentes aos campos colonial e anticolonial que permitam uma discussão crítica em equidade. Estimular o debate em torno dos “passados” do império colonial é, no contexto português, “propiciar os meios para uma reflexão mais fundamentada sobre o que somos e queremos ser” (Sanches 2011: 13) numa sociedade da denominada “era da globalização”. De acordo com Manuela Ribeiro Sanches, a situação pós-colonial alimenta-se precisamente de “um novo modo de se entender o passado e o presente, olhando-os de um modo alternativo, numa revisitação, porventura, incómoda – e, por isso mesmo, tanto mais necessária – de um imaginário” (Sanches 2006: 8) fundado em circunstâncias históricas concretas, mas que os regimes discursivos também ajudaram a construir, tal como a literatura, a história ou a antropologia, responsáveis pela criação de “comunidades imaginadas” e, em parte, pela construção da identidade cultural do povo português.

Falar em pós-colonialismo é reinterpretar lusotropicalismos que porventura ainda pairam naquelas comunidades imaginadas. Falar em pós-colonialismo é desligar a memória cultural da nostalgia, causadora de vícios nefastos à interpretação cultural (Medeiros 2012: s/p). Segundo João Leal, “cada nação assenta num consenso centrado não só sobre o que recordar mas também sobre o que esquecer” (Leal 2006: 79). Se observarmos o pós-colonialismo português, uma das ideias estruturantes que os portugueses têm de si mesmos, segundo o antropólogo, pode ser resumida à expressão “somos pequenos, mas já fomos grandes”, ou seja, “a nostalgia do Império é uma das

Referências

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