• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2: Cultura e império: a construção da imagem do Império

2.2. A literatura colonial: um produto de hegemonia cultural

Todos os homens, segundo Antonio Gramsci, são intelectuais, mas não cabe a todos desempenhar o papel de intelectual na sociedade (Gramsci apud Said 1996: 23), sobretudo numa época condicionada pelo panorama político-cultural ditatorial revestido de censura, onde os escritores e a literatura tinham perdido, em parte, autonomia para dar lugar uma literatura propagandística a favor do império colonial português26. Este facto torna-se

evidente nos intelectuais ditos ultramarinos, maioritariamente militares, administrativos ou colonos e mulheres de colonos, e na chamada literatura colonial. Neste campo, há fortes evidências de correlação entre a ideologia e a cultura, melhor dizendo, entre a ideologia e as práticas culturais, nomeadamente a literatura, e que visam fortalecer a ideia de uma identidade portuguesa própria.

É a partir do Ultimatum Inglês de 1890 que os portugueses se consciencializam da existência do território ultramarino, o qual consideram tê-lo adquirido por um direito histórico e que qualquer ataque assume uma feição de ofensiva à sua própria identidade cultural. Há, portanto, uma “invenção de um império” e uma construção de uma imagem dos portugueses em África, nomeadamente a do “aventureiro colonizador”, cujo compromisso é civilizar os negros, nativos de uma terra “selvagem”, apontada como uma terra de degredo (Baptista 2013: 272).

Com o início da Ditadura Militar, principalmente após a declaração do Estado Novo em 1933, depois das fronteiras estabilizadas e as populações “pacificadas”, Portugal entra na construção ideológica e imaginária do império, que se prolonga até meados da década de 50, momento em que as vozes da crítica internacional de cariz anticolonial se começam a levantar. No imaginário português, e o que a ideologia preconiza, o português de África passa de “aventureiro” a “herói colonial” (Baptista 2013: 272); por outro lado, o colono enquanto “génio civilizador” transforma o negro “selvagem” em “assimilado”, processo legitimado pelo “Estatuto Político, Social e Criminal dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique”, em 1926, (revogado em 1954 pelo “Estatuto

26 Luís Trindade, em O estranho caso do nacionalismo português. O salazarismo entre a literatura e a política

(2008), refere que a literatura, que Salazar considerava a “boa linguagem”, “jogava com a política em reciprocidade: exprimia uma autenticidade que sustentava uma boa prática política e só podia ser expressa por uma boa prática política” (2008: 29). No início do século XX, na estreita relação entre política e literatura, veja-se, a título de exemplo, os casos de Agostinho de Campos e Fidelino de Figueiredo, políticos e críticos literários responsáveis por antologiar as obras nacionais portuguesas. Segundo estes autores, “o poder político e literário não se organizava para o [o povo] governar”; na verdade, o que os preocupava era o “grupo social novo que escapava ao controlo directo dos letrados”, que se encontrava nas cidades e que tendia para a

dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique”), pelo “Ato Colonial” de 1930 (revogado em 1951) e pela “Carta Orgânica do Império Colonial Português” (1933).

A imagem do império como “centro” densifica-se com a construção de autorrepresentações identitárias dos portugueses (Ribeiro 2004; Baptista 2013). A imagem do império e a representação identitária da comunidade colonial estão, marcadamente, expressas na literatura colonial produzida, cronologicamente, ao longo do século XX até à Revolução do 25 de abril de 1974 ou à Independência das nações africanas.

Partindo da conceção de Luís Forjaz Trigueiros (1963), a literatura colonial é uma “proposição, senão de uma moral ou de uma filosofia, de uma dada ressonância humana” (apud Oliveira 1997: 228). Ao que acrescenta ser uma “transfiguração ideal das narrativas de viagem; dramatização do real vivido, na aventura individual, poetização do oral – (…) nódulos de um tronco idêntico cuja raiz se poderia filiar nas crónicas, roteiros e relações de viagens dos nossos navegadores” (Oliveira 1997: 228-229). A literatura colonial27 serve de

meio de divulgação privilegiado do “mundo português”, do “Portugal não é um país pequeno” e do “modo de estar português”, criando textos e paratextos que exaltam Portugal enquanto “centro imperial”, mas que na verdade sofre da complexidade de ser um país periférico ou semi-periférico. Na ficção, as colónias são reproduções exóticas de um país, que se recusa “pequeno”28, detentor de um império tanto real como imaginado.

Alberto Oliveira Pinto oferece duas definições, uma de âmbito lato e outra de âmbito mais restrito. Na primeira, o autor considera literatura colonial “toda aquela literatura que, versando sobre os espaços e/ou os povos colonizados e independentemente da vontade, da sensibilidade e dos sentimentos dos seus autores, foi utilizada como veículo de propaganda colonial, ou seja, de legitimação ideológica do facto colonial”; na segunda, “tendo em conta a sensibilidade e os sentimentos do autor da obra literária, é literatura colonial toda aquela literatura que, versando sobre uma realidade colonial, é produzida por alguém que se identifica com o colonizador” (Pinto 2010: 126).

27As categorizações de Francisco Noa e Lima Garcia da produção cultural colonial, da literatura colonial e

concurso literário respetivamente, são úteis para perceber a evolução da política cultural nas e para as colónias.

28 Segundo A.H. Oliveira Marques “1940 representou, para o Estado Novo em toda a sua pureza, o ponto

máximo de apogeu. A fim de comemorar o oitavo centenário da nacionalidade e o terceiro centenário da Restauração, o regime organizou um conjunto de cerimónias, exposições, congressos e publicações, de que a súmula gloriosa foi a Exposição do Mundo Português. (…) a Exposição constituiu, para além dos seus notáveis aspectos estéticos, uma típica manifestação fascistizante no modo de interpretar o passado e de abusar dele para testemunhar o presente e anunciar o futuro.” (Cf. A.H. Oliveira Marques (2006): Breve História de Portugal, Editorial Presença, 6ª edição: 631).

O cenário narrativo da literatura colonial tem personagens brancas em espaços africanos, onde o homem negro é elemento da paisagem. De acordo com Margarida Calafate Ribeiro, “o homem europeu é o herói, o desbravador de África, aquele que carrega, segundo Kippling, o ‘fardo do homem branco’, colocando-se de facto, real e metaforicamente, nos ombros do colonizado e sobre esta imagem instaura-se a autoridade colonial” (2013: 516). Contudo, a realidade colonial não é assim narrada. A imagem do que atravessa a literatura colonial não é de opressor ou esclavagista, mas sim do “militar ou ser superior, o agente dinâmico de civilização, cuja missão – civilizacional, política, religiosa – o liga à sua pátria europeia” (2013: 516). A colonialidade desta literatura é parte ativa da construção e definição da identidade cultural portuguesa, pelo que exige uma análise contextualizada político-cultural, pois “o texto corresponde a um determinado contexto – o colonialismo – e veicula um conceito – a colonização” (2013: 516). Assim, a literatura colonial equaciona as relações entre literatura e política, literatura e poder, literatura e história, literatura e identidade e literatura e propaganda, esta última devidamente legislada nos documentos da criação do Concurso de Literatura Colonial da Agência Geral das Colónias/Ultramar.

O Estado Novo, no quadro das políticas ditatoriais, regulariza o género literário que é usado como instrumento de propaganda política. A propaganda do “império” ou território “ultramarino” é feita, embora em menor escala do que os impérios vizinhos, como o francês, o belga ou o britânico, com o apoio de instituições criadas para o efeito, tais como a Agência Geral das Colónias (1924), denominada por Agência Geral do Ultramar a partir de 1951, que promovia eventos e publicações de índole científica, literária ou informativa sobre as colónias: exposições, imprensa, literatura, cartazes, postais ilustrados, sistema de ensino, cinema, expressão artística ou teatro (Matos 2012: 69). A agência atua essencialmente no eixo cultural do império ultramarino, com forte influência no campo da comunicação social, impressa (jornais e revistas), radiofónica ou televisiva, e também nas vertentes cinematográfica29 e literária. É sobretudo na literatura que a AGC une esforços no sentido

de “estimular o interesse dos intelectuais pelos assuntos de Além-Mar” (Garcia 2011: 178). A literatura de temática africana ou ultramarina, até então com pouco interesse e parcos interessados, ganha relevo com a implementação do Concurso de Literatura Colonial30,

29 Sobre o uso da imagem do Outro nas artes visuais (fotografia e cinema), propõe-se a consulta de Patrícia

Ferraz de Matos (2012): As Cores do Império. Representações raciais no Império Colonial Português. Col. Estudos e Investigações 41. Lisboa: ICS.

30 Antes denominado Concurso Literário da Agência Geral das Colónias, criado na época da República.

promovido pela Agência Geral das Colónias a partir de 1932, através da publicação do Boletim Geral das Colónias/Ultramar e da criação dos Cadernos Coloniais31 pela mesma

agência.

José Luís Lima Garcia, em Ideologia e Propaganda Colonial no Estado Novo: da Agência Geral das Colónias à Agência Geral do Ultramar 1924-1974 (2011)32, traça de

forma pormenorizada o trajeto e a contribuição da agência para a implementação da literatura colonial como arma de promoção da ideologia e da propaganda do Estado Novo. O panorama literário português, para além das narrativas de viagens dos séculos XV e XVI, detém uma “literatura pouco interessada” nas riquezas e imensidão das fontes de inspiração das geografias tropicais, o que contraria a tendência “dum povo com formação antropológica tão complexa e diversa” voltada sobretudo para a aventura e para o mar (Garcia 2008: 131). A Agência Geral das Colónias, sensível a esta pobreza literária, cria e promove anualmente o já referido Concurso de Literatura Colonial, sob a alçada do Ministério das Colónias, de acordo com a Portaria n.º 4.565, publicada no Diário do Governo, 1.ª série, n.º 10, de 12 de janeiro de 1926. As razões do concurso são indicadas no preâmbulo da referida portaria:

considerando que é necessário intensificar por todos os meios a propaganda das nossas colónias e da obra colonial portuguesa; (…) que a literatura na forma de romance, novela, narrativa, relato de aventuras, etc., constitui um excelente meio de propaganda, muito contribuindo para despertar, sobretudo a mocidade, o gosto pelas cousas coloniais; (…) que êste género de literatura está muito pouco desenvolvido entre nós, provavelmente por falta de estímulo e iniciativa; (…) que se tem encontrado da parte das várias entidades com interesses mais ou menos ligados às colónias uma manifesta boa vontade em auxiliar pecuniariamente esta ideia (Portaria nº 4.565, 1926)

Com isto, o governo legisla o Concurso de Literatura Colonial para “activar e desenvolver a propaganda das colónias portuguesas” (Portaria 4.565). Este concurso é indubitavelmente, segundo a agência, o caminho mais certeiro para despertar os espíritos dos portugueses para os assuntos coloniais. Para além disso, em termos monetários, o concurso é aliciante para os escritores coloniais; os dois prémios anuais, no valor de cinco mil escudos para o primeiro e de dois mil e quinhentos para o segundo, são patrocinados inicialmente por empresas que têm interesse em promover as colónias portuguesas. O júri é constituído por um funcionário da Ministério das Colónias, um membro da Sociedade de

31 Disponíveis na Biblioteca Digital da Memória de África: http://memoria-africa.ua.pt .

32 A este propósito, ver também do mesmo autor “Propaganda no Estado Novo e os Concursos de Literatura

Geografia, um da Academia das Ciências, um agente geral das colónias, dos quais, segundo a conclusão de Ilse Pollack, nenhum demonstra competência em avaliar os textos submetidos.

Garcia (2008) divide o referido concurso em três fases, sendo a primeira de influência republicana, do exotismo ideológico da valorização do indígena (1926-1931); a segunda, denominada fase do Império e do exotismo pitoresco das raças inferiores que evidencia a superioridade do etnocentrismo civilizacional e evangelizador do colonizador (1932-1951); por fim, na terceira fase, a partir de 1954, os prémios são atribuídos pelo cariz paternalista das obras candidatas, onde se valorizava a fraternidade cristã, a igualdade racial e a empatia com os indígenas, como preconizava a teoria lusotropicalista, de Gilberto Freyre.

Guilhermina de Azeredo, Reis Ventura e Castro Soromenho são três dos inúmeros premiados33 do Concurso de Literatura Colonial, entre 1926-1974. Em 1935, Guilhermina

de Azeredo vence o primeiro prémio, na primeira categoria, com a obra Feitiços e em 1955, ganha o prémio Fernão Mendes Pinto, com Brancos e negros; em 1965, com Engrenagens malditas, Reis Ventura é laureado com o prémio Fernão Mendes Pinto; Castro Soromenho foi galardoado três vezes com as obras Nhari – drama de gente negra, 2º prémio da 1ª categoria em 1939, com Rajada o 1º prémio da 1ª categoria, em 1942 e com Homens sem caminho, com o 2º prémio, da 1ª categoria, em 1943.

Sob o olhar atento da “política do espírito”, as obras literárias da época colonial portuguesa transmitiam uma imagem do “Outro” assente na dicotomia identidade/alteridade e no binómio colonizador/colonizado, numa relação de “poder e de irradiação cultural face a esse ‘Outro’, que os europeus [no geral] interpretaram, imaginaram e construíram em sucessivas metáforas de contraste, conforme as épocas e as respectivas percepções políticas da diferença” (Ribeiro 2004: 21). Como bem relembra Margarida Calafate Ribeiro, na literatura portuguesa a inferioridade do “Outro” em relação ao “Europeu” está desde cedo presente, ou em todo o caso, citando Pessoa, desde que “a primeira descoberta foi a descoberta da ideia de Descoberta” (Ribeiro 2004: 21)34.

33 Na sua investigação, José Luís Lima Garcia elenca os prémios literários e os respetivos laureados do

Concurso de Literatura Colonial, no período compreendido entre 1926 e 1974 (Garcia 2011: 757-760).

34 É importante salientar que, após a II Guerra Mundial e com o surgimento do movimento anticolonial nasce

uma nova tendência literária, a chamada literatura pós-colonial, protagonizada, no plano internacional, por Chinua Achebe, George Lamming, Ana Ata Aidoo, Alice Munro, Margaret Atwood, Patrick White, Wole Soyinka, J. M. Coetzee, Peter Carey ou Nadine Gordimer. No contexto lusófono, a literatura pós-colonial surge “da experiência de colonização, afirmando a tensão com o poder imperial e enfatizando suas diferenças

Em jeito de conclusão, o imaginário colonial veiculado através da literatura colonial, segundo Alberto Oliveira Pinto, “exprime sempre o sentimento de relação intercultural, positiva ou negativa, entre o colonizador ou colonizado”, uma vez que “interpreta, representa e visa dominar a cultura do Outro através da manipulação da memória colectiva e da sua reorganização em função dos interesses do colonizador (2010: 125). Assim, e de acordo com Francisco Noa, esta realidade pode ter provocado “uma escrita reactiva que se reconhece nas literaturas nacionais que surgiram nos países africanos” (2002: 22).